A vida e o sustento da humanidade dependem da água, e o crescimento populacional impõe uma busca contínua por esse líquido precioso. No entanto, muitas pessoas vivem em áreas onde falta água potável. Para suprir com qualidade a raça humana, além da agricultura e da indústria, é indispensável aproveitar a água subterrânea, a maior e mais segura de todas as fontes de água potável. É ela que responde por 80% da água potável consumida na Europa e na Rússia, e mais ainda no norte da África e no Oriente Médio.

A água subterrânea existe em todo o mundo. A possibilidade de extraí-la varia muito de lugar para lugar, dependendo das chuvas e da distribuição dos aqüíferos (as formações geológicas em que a água pode ser armazenada e que possuem permeabilidade suficiente para permitir que ela se movimente). Em geral, a água subterrânea é renovada apenas numa época do ano, mas pode ser extraída o ano inteiro. Desde que o reabastecimento seja adequado e a fonte esteja protegida da poluição, essa extração pode ser feita indefinidamente.

A água subterrânea integra o ciclo da água (ver pág. 50) e, portanto, está intimamente ligada a processos atmosféricos ou climáticos, ao regime de rios e lagos e às nascentes e às terras úmidas que essa água alimenta ao chegar à superfície. Todos esses recursos se complementam, estendendo-se das regiões áridas até os trópicos.

Os recursos de água doce da Terra são, principalmente, o gelo, a neve e as águas subterrâneas (os rios e lagos constituem apenas uma pequena parte desse total). O volume de água subterrânea fresca gira em torno de 10 milhões de quilômetros cúbicos – mais de 200 vezes o total dos recursos de água doce renovados anualmente pela chuva.

Nas zonas áridas, a escassez de água doce força as populações locais a usar a água subterrânea disponível. Mas a extração muito intensiva não é sustentável e pode originar riscos como subsidência (afundamento abrupto ou gradativo da superfície terrestre) e fissuração dos solos. A captação de água subterrânea só é praticável em casos (raros) nos quais a reserva estática do líquido é, proporcionalmente, muito maior do que a população.

Nos climas úmidos, as chuvas fazem com que grandes quantidades de água se infiltrem no solo e nas rochas, contribuindo para alimentar os rios nos períodos mais secos.

EMBORA FIQUEM atrás dos rios no que se refere à distribuição de toda a água doce existente, as águas subterrâneas são o maior regulador desse recurso. Elas constituem a parte invisível do ciclo da água, em que evaporação, precipitação, infiltração e descarga são os principais componentes. Os componentes “visíveis” são fortemente afetados pelas condições climáticas. Podem ser poluídos rapidamente, mas também podem recuperar-se em pouco tempo. Já os processos subterrâneos duram de anos a milênios. Porém, com uma gestão cuidadosa, todos podem ser usados para criar um sistema de fornecimento que faça frente a condições de seca.

O risco da poluição

Se poluída, a água pode transmitir doenças e transportar substâncias químicas venenosas. A água não contaminada é, assim, um importante tema transversal no âmbito dos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento da ONU (www.un.org/ milleniumgoals/).

Em geral, a água subterrânea é menos poluída, pois está protegida da contaminação na superfície proveniente dos solos e da cobertura rochosa. No entanto, o aumento da população, as mudanças observadas no uso da terra e a industrialização acelerada ameaçam as reservas. Por isso, a qualidade dessa água deve ser controlada antes, durante e após sua utilização.

OS REGIMES DE água subterrânea diferem de região para região (ver ilustrações da página ao lado). Em climas úmidos, as chuvas levam grandes volumes de água a infiltrar-se no solo e nas rochas, contribuindo ativamente para alimentar rios, fontes e zonas úmidas nos períodos de menor precipitação. Já nos climas áridos e semi-áridos quase não há trocas entre a água de superfície e a subterrânea, pois o reduzido volume de chuva raramente penetra nos solos espessos e secos. Nessas áreas, a recarga das reservas é mínima.

A disponibilidade de água subterrânea varia muito de acordo com a região. As condições climáticas – em especial a chuva – determinam o volume recarregado, que é controlado pelas características das rochas- reservatório. Os recursos hídricos apenas podem ser utilizados de forma sustentável se sua extensão espacial e sua variação ao longo do tempo forem bem compreendidas. Mas essa informação é em geral desconhecida, mesmo nos países desenvolvidos.

Cerca de 30% da área continental (exceto a Antártica) tem aqüíferos relativamente homogêneos com reservas importantes. Por volta de 19% envolve regiões geologicamente complexas bem providas de água subterrânea. Metade da área continental contém, em geral, reservas menos significativas, mas muitas vezes suficientes para sustentar cidades pequenas e médias.

Quinze por cento das terras do planeta recebem, em média, menos de 200 mm de chuvas por ano (cerca de 200 litros por m2). Nessas regiões há, normalmente, uma recarga muito baixa da água subterrânea; por isso, a quantidade usada não será reposta por centenas (ou milhares) de anos. Assim, a extração de água nessas áreas deve ser vista como a exploração de um recurso limitado.

A renovação dos estoques disponíveis de água é uma questão crucial no atual momento. Segundo a ONU, o volume médio anual de água renovável é de 43 mil quilômetros cúbicos – cerca da metade da água doce existente em todos os lagos naturais da Terra. A recarga de água subterrânea é de 10 mil km3 anuais (cerca de 0,1% de todas as reservas) – ou seja, uma pequeníssima proporção do volume total desses estoques é reposta a cada ano.

Nascidos sob climas muito mais úmidos, alguns sistemas de água subterrânea situados nas zonas áridas do mundo não são renováveis nas condições atuais, mas estão sendo explorados de forma cada vez mais intensa. Um deles é o Sistema Aqüífero do Arenito Núbio, cujos mais de 2 milhões de km2 estendem-se sob terras do Chade, do Egito, da Líbia e do Sudão, na África. Ele conteria cerca de cem vezes o atual valor anual do consumo de água no mundo.

O ciclo da água tem diferenças nas várias zonas climáticas do mundo. Acima, os exemplos da Alemanha (esquerda) e da Namíbia.

Sem fronteiras

A água subterrânea não pára à porta das fronteiras políticas. Explorá-la em determinado país pode afetar dramaticamente a água de outro. Por esse motivo, sua gestão requer cooperação internacional e instituições governamentais e legais apropriadas. Uma vez que a água subterrânea se desloca obedecendo a leis físicas, as estruturas hidrogeológicas devem ser investigadas, exploradas e geridas na sua totalidade. Isso significa que a investigação deve atravessar, igualmente, fronteiras nacionais – um fato muito importante em regiões áridas sensíveis, nas quais as áreas de captação da água dos rios à superfície podem ser bastante diferentes das ocorrências de água subterrânea, localizadas a profundidades maiores.

IMAGINA-SE QUE existam depósitos com dimensões idênticas a essas e recarga limitada em quase todos os continentes, mas a quantidade de água utilizável neles é desconhecida. É necessário obter informações sobre aspectos como idade, tempo de permanência e fluxo da água no subsolo, características geológicas e químicas e processos envolvidos. Duas iniciativas da Unesco colaboram nesse sentido: 1) O Programa Mundial de Avaliação e Cartografia Hidrogeológica (WHYMAP, Unesco – www.whymap.org), em cooperação com a Associação Internacional de Hidrogeólogos, a Agência Internacional de Energia Atômica e o Instituto Federal Alemão para as Geociências e os Recursos Naturais. 2) O Centro Internacional de Avaliação de Recursos de Água Subterrânea (Igrac – www.igrac.nl), co-patrocinado pela World Meteorological Organization.

A procura de água cresce à medida que aumentam a população, a atividade econômica e a irrigação. Mas as reservas mundiais acessíveis de água diminuem devido a sua superutilização e poluição. Mais de 30 países sofrem de uma séria e crônica falta d’água e recorrem cada vez mais à água subterrânea.

A agricultura é a maior consumidora de água no mundo (70%), seguida da indústria (20%) e das residências (10%). Esforços consideráveis têm sido feitos para reduzir o consumo na indústria e nos lares, mas ainda há muito a fazer quanto à irrigação.

A proporção de água usada nesses setores varia de região para região, em sintonia com a economia. Na Europa e na América do Norte, o principal consumidor é a indústria; na Ásia e na África, a agricultura. Em muitas regiões áridas e semi-áridas, cerca de 30% da água subterrânea é extraída para irrigação, e a tendência tem aumentado. Em boa parte dessas áreas, as atuais políticas de gestão da água agravaram o problema. Embora seja essencial reduzir a exploração dos aqüíferos não recarregados, muitos países em climas secos a subsidiam. O reúso de efluentes tratados oferece uma solução parcial para o problema.

Os temas-chave

Embora a extração da água subterrânea tenha crescido nas últimas décadas, ainda se sabe pouco sobre esse recurso e seu uso sustentável, uma vez que a hidrogeologia é uma área científica jovem. Em 2005, a ONU proclamou a Década para a Água a fim de encorajar temas transversais relativos à água implicados nos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento. A água subterrânea terá um papel significativo nesta Década.

Ações em desenvolvimento no âmbito desse programa:

*Cartografar e quantificar os recursos de água doce subterrânea, incluindo a identificação de bacias transfronteiriças partilhadas por vários países.

*Investigar os processos de recarga, fluxo e descarga em sistemas de água doce subterrânea e seu papel nos ecossistemas.

*Minorar os impactos ambientais oriundos da extração e degradação das águas subterrâneas, protegendo zonas úmidas afetadas, prevenindo a deterioração dos estoques em termos de quantidade e qualidade e monitorando seus sistemas a longo prazo.

*Reconhecer o valor da água em diversos ambientes e implementar estratégias para conservar e salvaguardar os recursos hídricos.

Questões-chave:

Quanta água subterrânea existe e como pode ser usada de forma sustentável?

Como a exploração inadequada das reservas “fósseis” de água pode ser identificada e gerida a fim de minimizar seu esgotamento e suas desastrosas conseqüências humanas/ecológicas? Isso requer um entendimento melhor da recarga em geral.

Como as reservas vulneráveis de água subterrânea podem ser protegidas da poluição? Como os recursos vitais poluídos podem ser recuperados?

INDEPENDENTEMENTE das medidas de conservação adotadas, a extração de água subterrânea é quase inevitável. Esses estoques significam, muitas vezes, o único fornecimento de água a um preço justo. Como os fluxos de água subterrânea são muito lentos, as conseqüências da superexploração só poderão ser visíveis daqui a alguns anos ou décadas. Assim, as estratégias futuras deverão incluir um monitoramento bem planejado da extração e da qualidade desse líquido.

A água subterrânea é o mais aproveitado recurso natural. Sua produção em 2004 ficou entre 600 e 700 bilhões de toneladas – no mesmo ano, o consumo mundial de areia e brita foi de aproximadamente 18 bilhões de toneladas. O caráter essencial desse recurso o torna, inclusive, propriedade pública em muitos países. Para manter o abastecimento sustentável, porém, os custos de exploração, tratamento e fornecimento precisam ser cobertos via pagamento de taxas.

A discussão sobre o fornecimento público, os lucros, a irrigação, a liberalização do mercado hídrico e o investimento privado continua em todos os níveis da sociedade. O Objetivo do Milênio para o Desenvolvimento, formulado pela ONU a fim de reduzir em 50% o número de pessoas sem acesso a água potável até 2015, será atingido apenas com um investimento hoje estimado em torno de R$ 38 bilhões anuais.

Se a sociedade continuar a usar a água subterrânea sem assegurar o necessário reabastecimento, a crise da água só se agravará. Estratégias de uso sustentável devem ter em conta as características de todos os reservatórios do ciclo da água e garantir que seu pleno uso seja feito segundo bases científicas.

Autores: William Struckmeier (Alemanha), com Yoram Rubin (Estados Unidos) e J.A.A. Jones (Grã-Bretanha).

PARA SABER MAIS

Site: www.yearofplanetearth.org