Um estudo recente da revista inglesa The Economist revela que se morre mal no mundo e muito pior no Brasil. A partir de um Índice de Qualidade da Morte, que exclui mortes violentas e acidentais, foram pesquisados 40 países, 30 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e outros dez com dados disponíveis.

O Brasil ficou em 38o lugar, à frente apenas de Uganda e da Índia. A Inglaterra – pioneira nos movimentos pela morte consciente, desde os anos 60 – ficou em primeiro. Embora não seja computado como tal, o grau de cuidado com a morte também poderia compor o índice de desenvolvimento humano.

“Com tanta tecnologia, acaba todo mundo na UTI, entubado e reanimado três vezes, um despropósito. A pessoa tem câncer, derrame, diabetes, tem 80 anos e está na UTI. Mas só se deveria mandar para ela quem tem condições de sair com alta”, afirma Valdir Reginato, médico de família e professor de Bioética e Medicina e na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Prolongar a vida enquanto for possível alimenta indústrias e corporações, médicos, cientistas, hospitais e tecnólogos.

“O momento da morte requer não uma medicina de intervenção, mas de cuidado com a dor, com a alimentação, com a higiene, com a pele sensível e com a locomoção”, diz a professora Júlia Kovacs, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte, da Faculdade de Psicologia da USP, e autora de Educação para a Morte – Temas e Reflexões. Entretanto, os tempos mudaram. “O idoso depende do cuidado familiar, mas as famílias são cada vez menores.”

“Não tendo educação para a morte, a gente dá um jeitinho. O brasileiro acha que vai ser malandro o suficiente para driblar a morte”, diz, sorrindo, a médica Ana Cláudia Arantes, especialista em Cuidados Paliativos e uma das fundadoras da Casa do Cuidar, que trabalha com assistência a pacientes e formação de profissionais.

Ana Cláudia ressalta que, ao cursar medicina na USP, não teve nem meia hora de aula sobre tanatologia, o estudo da morte. “Fui aprender com o Livro Tibetano do Viver e do Morrer, que ensina os sinais da morte.” Não há espaço para o sofrimento em uma sociedade que preza somente a beleza, a juventude, a felicidade.

Cuidados paliativos

Reconhecido em 2011 como subespecialidade da oncologia, da geriatria e da pediatria, Cuidados Paliativos é o campo da medicina que trata dos cuidados no fim da vida. Contempla a prevenção e o controle do sofrimento nas dimensões biológica, familiar, emocional, social e espiritual.

“O alicerce é o controle do físico, da dor, da falta de ar, dos problemas intestinais e da fadiga, para permitir à pessoa a expressão de outras dores: solidão, culpa, medo, raiva, ansiedade, tristeza. Trabalhamos em cima da autonomia do paciente e da intermediação com a família em seu benefício”, explica Ana Cláudia.

Direito de decidir

Os profissionais de Cuidados Paliativos diferenciam seu trabalho da eutanásia (quando o médico atua para dar fim à vida de um paciente, a pedido deste) e do suicídio assistido (quando médicos ou outros proveem os meios para pacientes terminarem a própria vida). A palavra eutanásia, de origem grega, significa literalmente “boa morte” e é vista por muitos como o direito de pacientes terminais a uma morte digna.

O debate, tão polêmico quanto o da interrupção da gravidez, ganhou um novo capítulo em janeiro passado, quando a Comissão Britânica para Suicídio Assistido defendeu que médicos possam ajudar doentes terminais a morrer. Ativistas em “defesa da vida” rejeitam uma mudança na legislação inglesa, que prevê penas de até 14 anos pela prática de eutanásia.

Mas a Justiça da Inglaterra sabe evitar esses processos: nenhum dos mais de 30 casos entendidos como suicídio assistido, desde 2009, foi a julgamento. Na maior parte do mundo, inclusive no Brasil, a interrupção da vida acaba acontecendo de modo sigiloso, quando os médicos não veem alternativa.

A tendência encontra eco nos Estados Unidos, onde o cinema popularizou a história do médico Jack Kevorkian, conhecido como Dr. Morte por ter ajudado 130 doentes terminais a morrer. Condenado por homicídio em 1999, Kevorkian cumpriu oito anos de prisão até obter liberdade condicional, em 2007. Morreu em 2011, não sem antes ver sua imagem recuperada nos filmes You Don’t Know Jack (Você Não Conhece Jack), com Al Pacino, e o documentário Kevorkian, ambos do HBO.

A eutanásia é legal em três países da Europa: em 2002, a Holanda aprovou lei que permite a pessoas sofrendo insuportavelmente requerer a eutanásia e protege os médicos que fazem os procedimentos, desde que sigam um protocolo rígido. A Bélgica adotou o sistema no mesmo ano e Luxemburgo o fez em 2009.

Na Suíça, o suicídio assistido – não a eutanásia – é legal desde 1941. Holanda e Luxemburgo também permitem o suicídio assistido. Os Estados de Oregon e Washington, nos EUA, permitem a adultos residentes se administrarem drogas letais prescritas por médico. No discreto Uruguai o “homicídio piedoso” é legal desde 1930.

A eutanásia não existe no Brasil. Já o suicídio assistido é tipificado no artigo 122 do Código Penal como a prática de “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”, e prevê de um a seis anos de prisão.

Contrária à eutanásia, a Igreja Católica deu à Campanha da Fraternidade de 2008 o tema “Escolhe, pois, a vida”, contra o aborto e a eutanásia. De dentro dela, porém, se levantaram vozes para defender práticas piedosas. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir, integrada por feministas cristãs, respondeu com um manifesto em que questiona a “defesa da vida”. “Por que uma pessoa deve ser obrigada a sofrer, condenando- se o acesso livre e consentido a uma morte digna pelo recurso à eutanásia?”, pergunta o manifesto.

O conceito de assistência paliativa pressupõe cuidados familiares, atendimento domiciliar e programas hospitalares. “O importante é o não prolongamento arbitrário da vida, para a pessoa poder morrer em paz. Não tem UTI nem ressuscitação, mas também não se vai dar uma injeção para a pessoa morrer”, diz Júlia Kovacs. “Se ela já professa uma fé, é preciso escutar as questões que surgem nessa hora. Não dogmatizar, mas conversar, escutar.”

Para a psicóloga, além de formar profissionais e informar o público, é preciso melhorar a política de distribuição de opiáceos no país. “Morfina, hoje, só na fase terminal”, diz ela.

A médica Ana Cláudia confirma: “O consumo de morfina no Brasil é muito abaixo da média. Na Inglaterra é de 6,6 mg per capita, aqui é de 2,2 mg. Precisamos de mais formação e menos preconceito de que vicia ou acelera a morte. Diante da dor e da falta de ar, o opiáceo forte é a única alternativa”, afirma.

“O médico tem medo de aumentar a dose do analgésico porque está sob a pressão do direito, tem medo de ser processado”, admite Valdir Reginato.

Continuidade e separação

Na natureza não há fim sem começo: tudo é continuidade, não separação. “A matéria circula de forma contínua através da teia da vida”, ensina Fritjof Capra em Vida Sustentável. Por que, então, seria a morte o fim de tudo, a aniquilação, como é percebida em nossa cultura?

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) ironizou a aflição humana num texto famoso, Metafísica da Morte, observando: “O não-ser após a morte não pode ser diferente daquele anterior ao nascimento, mas a infinidade que fluiu quando ainda não éramos não nos aflige de modo algum”.

O budismo também reconhece a natureza cíclica e contínua da existência de todos os fenômenos e “nos inspira a incluir a morte na vida”, ressalta Bel César, psicóloga que cuida de pacientes terminais. “Chegamos a esse ponto de não cuidar do futuro do planeta porque perdemos a noção de continuidade. Estamos viciados na relação com o exterior, nos falta contato interno.”

 

Rito de passagem

HISTÓRIA DE NILCE

Nilce Helena Carvalho é médica e música. Radiologista, dedica-se a doenças vasculares congênitas. Pianista, integra, com os dois filhos, o conjunto de música instrumental Baião de Cinco. A história da morte de sua mãe, a cearense Maria Nilce Carvalho, é exemplo do equívoco da obstinação terapêutica sem possibilidade de retorno.

“Um ano depois de morrer, encontramos escritos antigos dela se despedindo”, conta Nilce Helena. “Mamãe morreu no dia que escolheu. Vivia falando ‘relaxos’, os ditados populares do Ceará: ‘Comigo dá tudo certo’ e ‘Sou nova ainda, eu aprendo’. A gente dizia que ela era um anjo. ‘Mas anjo de uma asa só, que só voa abraçado ao outro’, respondia.”

Dois anos antes, Maria Nilce se desfez de tudo o que tinha, conta a filha. “Aos 81 anos levou um tombo e quebrou a coluna, a bacia e o braço direito. Ficou quase um ano sendo cuidada, ela que sempre cuidou. Tornou-se mais introspectiva. Então, sentiu o intestino e descobriram um câncer grande. Foi operada no dia seguinte. Era junho de 2010. Faleceu em outubro. Em quatro meses sofreu quatro cirurgias”.

“Minha mãe era evoluída, tinha preparo interno. Superou muitas dores emocionais. Mas dizia sempre: ‘Não me deixem sentir dor’. A sedação era limitada para preservar o fígado e o rim. Os médicos não conseguiam ver o ser, a pessoa. ‘Meu filho, deixa eu explicar, estou cansada. Não me faça mais nenhuma cirurgia. Meu corpo está se desintegrando. Está na hora, quero morrer’, falava”.

“Os médicos, o hospital e o aparato tecnológico só faziam perturbar seu encaminhamento”, afirma Nilce Helena. “Estava com obstrução intestinal e eles diziam ‘vamos investir, vamos investir’. Eu estava desesperada, tinha entrado em atrito com os amigos que escolhi a dedo para cuidar dela. Pedi pelo amor de Deus para sedarem minha mãe. ‘Sabe o que significa essa sedação?’, perguntou um deles. ‘Eutanásia. Dá prisão.'”

“Deu tudo errado, até que chamamos a pessoa de Cuidados Paliativos. Sou médica, eu via que não tinha mais solução. Ela estava preparada, lúcida, devia ser dona da própria vontade. Queriam suspender a música que ela adorava: ‘Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida’. ‘Quero ir descansar, mamãe, mamãe’, chorava. Foi horrível ver uma mulher forte, espiritualizada, destruída desse jeito.”

“Estava cercada pela família. Ela teve o que muitos não têm. Um dia os netos foram tocar no hospital. Começou a falar que queria morrer no dia de Nossa Senhora Aparecida. Quando a médica de Cuidados Paliativos entrou e sedou-a, ela relaxou, dormiu. Sem medicação, não se alimentava mais, respirava só com cateter de oxigênio. Mas não morria. Passei a noite de 11 para 12 de outubro ao lado dela. Botei música e dizia ‘pode ir, está tudo bem’. De manhã chegaram meus irmãos e fui descansar. Morreu com os filhos e netos em volta, todo mundo se abraçando, orando. Só eu não estava. Dormia, sonhando com ela.”

“Quem está morrendo ensina para quem assiste como é o processo. Este deixa de ser rabo para virar cabeça, é o próximo da fila. Trabalho com consciência de que aquela morte vai influenciar toda uma linhagem familiar”, diz Bel. Para ela, autora de Morrer Não se Improvisa, a boa morte é aquela sem arrependimento: é preciso se preparar para a morte.

Ana Cláudia concorda. “Mamãe tem seis meses de vida? Pois não se trata só de colocar um batom e dar uma ajeitadinha no cabelo. Há gestos de amor e reconciliações que podem ser feitos na hora da saída”, diz ela, com senso de humor peculiar.

“Às vezes o paciente está sem pulso, sem pressão, inconsciente, e não morre”, ressalta a médica. “O que está pendente? É hora de dizer ‘vai tranquilo, eu cuido para você, no seu lugar’. Em alguns pacientes a gente percebe que a morte não foi legal. Em outros, a gente vê a família inteira de olho vermelho, mas sorrindo. Se teve amor, tem dor…”

Bel gosta de recordar o ensinamento do lama Gelek Rimpoche, um dos mestres atuais do budismo tibetano. “Podemos nos preparar para a morte como para uma viagem: se nos prepararmos com antecedência, teremos chance de lembrar tudo que queremos levar. O que você quer levar?”

Quando eu for, não quero ir com raiva, insatisfação ou arrependimento, nem apego. Quero ir como um pássaro que levanta voo do topo da montanha, sem ninguém segurando meus pés, nenhuma carga nas costas. Quero ir como um espírito livre.”