No Brasil, o crescimento do interesse pela filosofia está muito ligado à ação de multiplicadores populares do discurso filosófico, como o professor e filósofo Mario Sergio Cortella – um ex-jesuíta pop

Antes visto com distanciamento e desinteresse, nos últimos anos o discurso filosófico vêm ocupando momentos do dia a dia de crianças e adultos. A filosofia voltou ao currículo escolar, os seus aconselhamentos se tornaram opções às sessões de terapia, cafés e clínicas filosóficas passaram a abrir espaço para debater e conhecer a matéria, cursos acadêmicos e extracurriculares se multiplicaram e a mídia tem oferecido cada vez mais programas de cunho filosófico indireto ou explícito.

Um dos maiores multiplicadores desse interesse se chama Mario Sergio Cortella. O seu mais recente livro, Não se desespere (Editora Vozes, 2013), foi lançado em fevereiro e atingiu a terceira edição (cada uma com dez mil exemplares) na última semana de março. Com 31 “pensatas” sobre temas da vida cotidiana, a obra completa uma trilogia de Provocações filosóficas com as anteriores Não espere pelo epitáfio (Vozes, 2005) e Não nascemos prontos (Vozes, 2006), que estão na 14a e na 16a edição, respectivamente.

Entre os grandes méritos de Cortella está a habilidade de simplificar temas complexos interligando as questões da atualidade com as questões mais antigas e eternas da humanidade. Nesta entrevista, você pode ter uma pequena amostra.

Em 2008, a filosofia voltou a ser disciplina obrigatória no ensino médio. O que você acha da mudança?
A disciplina se ausentou da grade curricular a partir do final dos anos 1960, o que é usual em ditaduras. Isso porque ela propõe, assim como a psicologia e a sociologia, muito mais diversidade do que a unicidade desejada por esse tipo de regime. Ela se ausentou como matéria, mas não como conteúdo curricular. Durante todo esse tempo, a filosofia era ensinada em escolas públicas e privadas dentro de outras matérias ou com outros nomes. Temos de saudar alegremente o seu retorno aos currículos, por ela ter sido reconhecida como conteúdo decisivo, e não secundarizado ou camuflado na escola.

O que a filosofia ensina?
Ensina a produzir indagações em relação aos “porquês”, em vez de se satisfazer com aquilo que as ciências fazem bem, que é lidar com os “comos”. A filosofia lida com as indagações em relação às razões das coisas e não em relação apenas à sua factualidade. Por exemplo, uma questão filosófica antiga – “qual é a origem do mal?” – não é apenas a observação prática que o direito faz ou a tipificação de natureza psiquiátrica pela medicina, mas, sim, o pensar sobre a origem. É preciso lembrar que, muitas vezes, se dizia que a filosofia era necessária para ensinar as pessoas a pensar. Isso não faz sentido, porque pensar é um atributo natural da nossa espécie. A filosofia não ensina a pensar, mas o pensar crítico.

A filosofia está ganhando adeptos. Estar na moda é bom ou é ruim?
Está aumentando o número de pessoas que buscam fazer filosofia, seja por conta do campo de atividade, seja porque a reflexão filosófica retornou com maior densidade numa sociedade que sofre com certo esgotamento tecnológico no cotidiano. O modismo, embora seja eventual e evanescente, pode criar uma condição de interesse. Se aqueles que lidam com filosofia aproveitarem a vibe – para usar uma linguagem dos jovens –, a gente pode surfar, sim, em direção a um pensamento mais sistemático, mais organizado, mais estruturado e que componha um pensar filosófico de seriedade e não de superficialidade.

Quando você se decidiu por fazer filosofia, com que futuro sonhava para sua carreira?
Com 16 anos, eu queria entrar na universidade para fazer filosofia. Queria também uma experiência mais intensa de vida religiosa e de meditação. Passei no vestibular da USP, PUC e Nossa Senhora Medianeira, a faculdade dos jesuítas (hoje parte da PUCSP). E escolhi os jesuítas. Minha formação filosófica é aristotélico-tomista, aliás, a minha e a do Papa Francisco. Quando entrei na universidade, com 18 anos, entrei para a Ordem dos Carmelitas Descalços. Vivi três anos na clausura de um convento, só saía para as aulas. Fui convidado no último ano para dar aula de Ética Social na faculdade. E aos 22 anos de idade fui convidado para ser professor da PUC-SP, onde estou há 36 anos. A docência, a escrita e a pesquisa eram as minhas intenções desde o começo.

Muita gente acha que você virou um guru. Essa era a sua intenção?
Virar um guru não era uma intenção, mas é claro que qualquer pessoa gosta de ser admirada, né? Seria uma tolice dizer que não me sinto acarinhado, quando alguém me procura para dizer que gosta dos meus livros. Eu não recuso o termo guru, quando ele é usado no sentido original de alguém que ajuda a orientar. Recuso quando tem uma conotação santificada que põe a pessoa num patamar exclusivo. Não acho isso verdadeiro no meu caso, nem no de ninguém.

Você se considera católico?
Sim, por história, por sintonia e por simpatia. Mas não sou um frequentador de culto. Não tenho um culto nem uma igreja exclusiva de qualquer natureza. Não sou alguém que trabalha com uma religiosidade self-service, em que se colhe uma resposta no I Ching e depois se vai a uma sessão espírita. Não acho isso diversidade, acho que é confusão religiosa. Religião é uma coisa mais séria.

Você participa de programas de tevê, de rádio, dá entrevistas, está sempre na mídia, que é um ambiente contraditório em questões éticas, principalmente. Qual é a sua percepção da mídia?
Claro que a mídia é contraditória, tal como uma empresa, uma família e uma igreja também são. A mídia é uma amplificação da minha sala de aula. Por exemplo, de segunda a sexta, às 6h32, eu entro no ar na rádio CBN e milhares de pessoas me ouvem. Quando eu vou ao programa do Faustão, do Jô Soares ou da Xuxa, na Globo, tenho a oportunidade de dialogar com milhões de pessoas. Mas eu não tenho nenhum temor [de estar na mídia]. Ao contrário, me encanta a possibilidade de levar adiante ocasiões de partilha de saber, de conhecimento e de debate. Gosto de ser alguém que tem um canal possível para a difusão do pensamento filosófico.

Apesar de interessante, a filosofia costuma parecer chata. Além do seu dom de oratória, como transformou a matéria em algo instigante?
Agradeço o elogio, mas quero fazer um reparo filosófico. Quando você diz que eu tenho o dom, está dizendo que não tenho mérito nenhum, porque dom é algo que se recebe de fora. Ocorre que Deus não me escolheu e disse “você vai ser o cara”. Tudo bem, sei que não foi isso que você quis dizer. Mas eu diria que tenho a prática, a intenção e o gosto. Minha intenção é fazer com que a filosofia seja simples sem ser simplória. Em outras palavras, que seja compreensível sem ser banalizável. Por exemplo, na semana da Rio+20, eu participei de um programa especial da Xuxa sobre sustentabilidade. Antes de entrar no ar, uma pessoa da produção me pediu para não usar o termo “biocídio” [eliminação de variadas formas de vida, inclusive a humana], porque não ia ser entendido. Então eu disse: “Lamento, não ajo dessa forma. Vou usar e explicar”. Se eu recuso o uso, furto das pessoas o acesso a um conceito importante. Se uso sem explicar, estou dando uma demonstração tola de sabedoria. Mas, se uso e traduzo, estou partilhando. Eu quero que a filosofia seja compreensível.

Os filósofos antigos passeavam pelos mercados para conhecer a realidade do seu tempo. Como você faz seu estudo de campo?
Eu faço de diversas maneiras. Eu sei que só é bom ensinante quem é bom aprendiz. Eu gosto muito de ouvir. Do ponto de vista profissional, sou um falante. Mas, do ponto de vista vivencial, sou um ouvinte. Eu tenho muito mais interesse em prestar atenção, ver, conversar com pessoas e saber sobre elas. Cultivo o hábito de andar pelos lugares. Por exemplo, quando fui dar uma conferência na cidade de Colatina (ES) e, assim que cheguei, fui andar a pé durante uma hora. Para quê? Pra ver o que as pessoas estão vendo. Para ver se a cidade tem mais farmácias do que bares, porque ter mais bares é um indicador de qualidade de vida. Olho se as pessoas sentadas na praça estão lendo ou não, procuro ouvir o que estão falando no banco do jardim e escuto o motorista de táxi que me trouxe até o hotel. Isso permite saber quais são os temas que estão no ar e que não são pautados só pela mídia. São os temas do cotidiano. Eu gosto de filosofia do cotidiano. É claro que não me desinteresso pelos temas clássicos de filosofia, como ética, estética, metafísica e lógica. Mas prefiro, na minha ação docente do dia a dia, lidar mais com o cotidiano das pessoas.

Você costuma fazer referências a músicas, ditados populares, pensadores e intelectuais contemporâneos. Este é um recurso intencional para atrair o público?
Sim, porque se trata da vida real das pessoas. Outro dia fiz uma palestra inteira em cima da música composta pelo Chorão, Nada é impossível. Tratei da diferença entre o impossível e o inviável; o impossível e o inexistente; a diferença entre o concreto, o empírico e o experimental. Não quero pegar a realidade do jovem e ficar nela. Quero partir dela para chegar aos lugares que outros pensadores chegaram. Posso gerar o interesse para ler Platão discutindo a temática da imortalidade da alma. Mas, para chegar a isso, tenho que começar conversando sobre o suicídio. Sócrates foi condenado ao suicídio. É uma coisa muito estranha alguém executar esse tipo de pena. Tem qualquer coisa de Harry Potter. Já a imortalidade pode ser abordada por meio da saga dos vampiros ou da suposição de que há seres que vivem para sempre. Isso pode levar alguém a se interessar pela leitura das obras de Platão ou de Tomás de Aquino.

Seu último livro trata de temas como ganância, futuro, prepotência, biodiversidade e biocídio. Esse é um trabalho voltado para a questão da sustentabilidade?
Sem dúvida. Por isso se chama Não se desespere. Depois dos dois livros anteriores, este está ligado à ideia da sustentação de uma esperança ativa que recusa de fato o biocídio. Uma ideia que diz não àquilo que desertifica a nossa esperança, que apodrece o futuro e esteriliza nossos sonhos.