Os imigrantes italianos que vieram para o Brasil não chegaram aqui apenas com a roupa do corpo e o desejo de trabalhar para construir uma nova vida. Como todas as demais comunidades de imigrantes, a dos italianos também trouxe, no coração e na mente, o antigo e rico acervo dos costumes e tradições da terra de origem.

, madona da devoção dos habitantes da cidadezinha de Rossano, na Calábria, é um desses tesouros guardados na bagagem. Veio para São Paulo entre os séculos 19 e 20, trazida por imigrantes rossaneses que atravessaram o Atlântico para se estabelecer no bairro paulistano da Bela Vista, também conhecido como Bexiga. Veio para ficar.

Hoje, sobre o altar-mor da igreja que leva o seu nome, na rua 13 de Maio, nº 438, no Bexiga, a imagem da Senhora Aquiropita, em madeira de lei, trazida da Calábria, recebe o ano todo as homenagens dos seus devotos. Menos em agosto. Ao redor do dia 15 – data em que é realizada a sua festa –, ela sai às ruas em procissão, arrastando consigo dezenas de milhares de pessoas. Este ano, a procissão acontecerá a partir das 15 horas do dia 17, domingo. Como sempre, percorrerá durante algumas horas as ruas do bairro. Ao cair da noite, quando o céu escurece e as velas nas mãos dos devotos se acendem, o imenso cortejo de fé irá adquirir ares de antigo rito de mistério, exatamente como era praticado na Calábria em tempos italianos, romanos antigos e… gregos.

À esquerda, a imagem em madeira de lei de . Abaixo, devotos fazem suas preces à madona italiana. Tanto as orações quanto a procissão em homenagem à santa são organizadas pelos padres da igreja que leva o seu nome.

É justamente a sua origem grega/bizantina um dos aspectos mais interessantes do rito da Aquiropita transplantado para São Paulo. A começar pelo nome: aquiropita, em grego, significa “o que não foi pintado por mão humana”. Por que em grego? Simplesmente porque, nos primeiros séculos da era cristã, esta era a língua mais falada em várias províncias do sul da Itália, sobretudo na Calábria e Apúlia. Elas tinham feito parte da Magna Grécia, poderoso império mediterrâneo que, nos últimos séculos antes de Cristo, colonizou e dominou a maior parte das terras do sul da Europa, do norte da África e do Oriente Próximo. No sul da Itália, a influência grega foi tão grande que, ainda hoje, dialetos gregos são correntemente falados em muitas aldeias da região.

O que, na Aquiropita, não foi afinal pintado por mãos humanas? O próprio retrato dessa madona. As origens do seu nome se confundem entre os véus da história, da fantasia e da lenda e remontam ao século 6 de nossa era, quando, na cidade bizantina de Edessa (hoje na atual Turquia), um ícone pintado da madona se tornou objeto de veneração. Por ter origem misteriosa – conta-se que, da noite para o dia, sua imagem apareceu pintada numa porta da igreja –, essa figura foi chamada pelos cristãos ortodoxos de “aquiropita”. A imagem ficou em Edessa até o ano 944, quando Constantino VII, imperador de Bizâncio, mandou buscála, para com ela fazer uma procissão em volta das muralhas da cidade, a fim de protegê-la do ataque dos turcos. Parece que esse expediente teve sucesso. Até hoje, no dia 15 de agosto celebra-se a festa da transladação de Edessa para Constantinopla do ícone Aquiropita.

Aquiropita, em grego, significa ‘o por mão humana’ que não foi pintado

NÃO SE SABE BEM como o mito bizantino da Aquiropita chegou à remota aldeia de Rossano Cálabro. O certo é que, desde o século 12, essa devoção passou a ser oficialmente celebrada no dia 15 de agosto. Até hoje, no mundo inteiro, há somente duas igrejas dedicadas a : uma em Rossano, na Itália, que atualmente é catedral; a outra é a Paróquia de , no bairro da Bela Vista, em São Paulo.

Todos os anos, sempre no mês de agosto, o bairro da Bela Vista é palco de uma das principais manifestações religiosas e de aculturação da cidade de São Paulo, a festa de Nossa Senhora de Aquiropita, a madona trazida ao Brasil pelos imigrantes italianos.

A imagem da Aquiropita que se tornou paulistana tem as bochechas cheinhas e rosadas. Os dedos roliços seguram uma criança que em tudo se parece com a mãe. O rosto, queimado pelo sol, tem uma tonalidade escura. Por esse motivo, estudiosos suspeitam que ela tenha alguma relação com as célebres “madonas negras” européias, imagens da Virgem de coloração muito escura cuja origem certamente remonta aos antigos ritos pagãos e précristãos de adoração à mãe-Terra.

Para os italianos e seus descendentes devotos da Aquiropita, a imagem é a de uma mulher tipicamente calabresa. “Toda italiana do sul é morena, de baixa estatura e meio gordinha”, dizem. As vestes são fartas. Mãe e filho usam coroas douradas e brincos de brilhante: “Não importa com que roupa esteja vestida, a calabresa sempre está com brincos.”

Neste ano, a Paróquia da Aquiropita comemora 82 anos de existência

A festa da Aquiropita, hoje, mantém-se como um grande atrativo da cidade de São Paulo no mês de agosto e atrai gente de todo o Brasil. A grande procissão só sai no dia 17, mas a festa se mantém animadíssima durante o mês todo. Acontece em três momentos: na rua, na cantina e na igreja, durante os finais de semana. Nesses dias, o Bexiga se transforma num verdadeiro bairro italiano. Há muitas barracas vendendo comidas típicas – fogazza, macarrão, polenta, fricazza – e o vinho corre solto. Junto à paróquia, na rua 13 de Maio, foi criada uma cantina de grandes dimensões. É onde se reúnem os convidados – autoridades, beneméritos e eclesiásticos – para os comes e bebes mais requintados e os shows nos quais se exibem os melhores músicos e cantores da canção italiana tradicional. É hora de “O Sole Mio”, de “Santa Lucia” e do indefectível “Funiculi Funicula”. E haja tarantela. A Senhora Aquiropita gosta e os devotos também.

A grande procissão para a Senhora Aquiropita só sai no dia 17, mas a festa se mantém animadíssima durante o mês todo. Ela acontece em três momentos: na rua, na cantina e na igreja, nos fins de semana.

OS FESTEJOS DA Aquiropita constituem o cimento da comunidade italiana do Bexiga e dos bairros vizinhos. Eles não se destinam, no entanto, unicamente à alegria e à diversão dos participantes. Proporcionam, desde a primeira metade do século 20, importantes recursos para a criação e a manutenção de obras sociais desenvolvidas pela comunidade. Com eles, aos poucos, a paróquia comprou as velhas casinhas que existiam ao redor da igreja. Em março de 1954, foi inaugurado o Orfanato . Quinze anos depois, começou a funcionar a creche paroquial. Conforme as salas se tornavam pequenas em relação ao número de crianças, outros imóveis foram comprados com os lucros obtidos na quermesse e suas paredes, derrubadas, a fim de expandir a creche. No início da década de 1980, a comunidade – capitaneada pelo padre Geraldo Cruz – colocou em prática uma decisão: derrubar as casas, que estavam em péssimo estado, e construir um prédio no lugar. Surgiu, então, o Centro Educacional Dom Orione, que hoje oferece a mais de 420 crianças atendimento pedagógico e psicológico, atividades lúdicas e artísticas, possibilidade de iniciação profissional, entre outros trabalhos.

No final de 1993, foi inaugurada a Casa Dom Orione, que promove atividades com homens de rua e abriga o Grupo da Terceira Idade, os Alcoólicos Anônimos e a Pastoral Jurídica, além de prestar assistência psicológica, médica e odontológica. Na mesma época, instalou-se também um centro comunitário na rua Rocha. Lá são celebradas missas e celebrações da Palavra, funciona o curso de corte e costura e acontecem bazares e bingos, organizados pelos próprios membros do centro.

Neste ano, a Paróquia comemora 82 anos de existência, colhendo os frutos semeados pelos imigrantes italianos – em especial, os calabreses. Eles fizeram da devoção à Senhora Aquiropita o pilar da caminhada da sua comunidade. A santa agradece.

Nos fins de semana em que a festa da Aquiropita é realizada, o bairro paulistano do Bexiga veste-se de cores e sabores tipicamente italianos. Tudo regado ao som de sucessos clássicos da música italiana e – é claro – muita tarantela.