A discussão é antiga. Em 1928, o filósofo alemão Max Weber afirmou que era preciso transferir ao Estado a função de resolver os conflitos de seus cidadãos em nome da civilidade. Esse monopólio da autoridade – um dos princípios fundamentais de todos os Estados modernos – é frequentemente questionado por grupos que defendem o direito à defesa pessoal. Em todo o mundo, há exemplos de políticas restritivas e permissivas ao porte de arma civil, com resultados diversos e pouco consenso. No Brasil, a política de controle de armas de fogo, adotada em 2003, foi apontada por especialistas em segurança pública ouvidos por PLANETA como uma medida determinante na redução no número de crimes em território nacional.

Segundo entidades como o Sou da Paz, esse avanço está ameaçado pelo projeto de lei (PL) 3.722, em análise na Câmara dos Deputados, que, entre outras medidas, vai revogar a proibição do porte. O projeto é defendido por deputados ligados à “bancada da bala”, parlamentares financiados pela indústria de armas. Uma sociedade que permite a seus cidadãos se armarem não é necessariamente mais violenta. Mas essa não é a realidade brasileira, que apresenta um dos índices mais altos de homicídios do mundo. Um estudo realizado pelo Mapa da Violência (entidade independente) revelou que, entre 2004 e 2007, o número de mortes ligadas aos 12 maiores conflitos armados do planeta foi menor do que o de assassinatos no Brasil.

Nesses combates (em países como Iraque e nos territórios palestinos) foram feitas 169.574 vítimas fatais durante esse período. No Brasil, 192.804 pessoas foram assassinadas no mesmo período. Desse total, 147.373 foram executadas com armas de fogo. A escalada homicida no país começou a se intensificar na década de 1970 e seguiu em ritmo acelerado até o fim dos anos 1990. Em dezembro de 2003, em reação a esse quadro calamitoso, entrou em vigor a lei conhecida como “Estatuto do Desarmamento”. Desde então, o porte de armas de fogo é proibido a civis. A lógica da legislação era simples: diminuir o volume de armas disponíveis reduziria as fatalidades.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), uma fundação pública federal, e o Mapa da Violência, nos anos subsequentes ao estatuto (2004 e 2005) o número de homicídios por armas de fogo caiu em 12%. “Não existe nenhum outro elemento externo que pode ter influenciado essa queda a não ser a diminuição do número de armas em circulação”, explica Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz. Para ele, o projeto de lei 3.722, caso aprovado, será um retrocesso no combate à violência porque vai derrubar mecanismos importantes do código de controle de armas.

Fogo amigo

Hoje, para conseguir o direito à posse e ao porte de armas, um cidadão comum tem de justificar o pedido e passar por testes psicológicos. O requerimento é analisado pela Polícia Federal, que avalia se a justificativa é procedente. Na prática, apenas casos muito específicos são atendidos. “A grande mudança com o PL é que você elimina a necessidade de justificativa. Qualquer um vai poder pedir uma arma e o governo não poderá negar”, diz Marques. Um dos principais argumentos pró-armamentistas é de que na ausência de um estado que proveja segurança pública, a sociedade civil deve combater ela própria a criminalidade. Esse é um dos maiores temores de setores da Polícia Militar e de Secretarias de Segurança Pública, como as dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, que se manifestaram contrárias ao projeto.

Para policiais como Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina, a tese é absurda. Segundo o policial, são frequentes os casos de fatalidades causadas por armas de fogo nas mãos de gente despreparada. “Já vi oficial ser ferido por civil que tentou intervir em um assalto. O papel da população não é se armar, é reivindicar ao poder público que lhes propiciem um aparato de segurança”, diz. O que explica então que em estados norte-americanos como o Texas, onde é permitido andar armado, os índices de criminalidade sejam baixos? De acordo com o cientista político da USP André Zanetic, o contexto.

“Em lugares com muita desigualdade, onde o Estado não está presente não só na resolução de conflitos, mas em outras políticas sociais, fatores ‘criminógenos’ (tráfico de drogas, grande presença de armas de fogo, etc.) exacerbam a violência”, diz Zanetic. Nesses locais, explica o cientista, “há uma cultura de resolução de conflitos de forma privada e uma pluralidade de fatores socioeconômicos que fazem com que exista esse risco grande de violência”. É o caso de regiões no Norte, Nordeste, e favelas das principais capitais brasileiras, que apresentam os maiores índices de criminalidade.