Fim de ano e a pergunta é inevitável: no cômputo geral, estou feliz? Novas descobertas no campo da ciência lançam luz sobre a natureza de um objetivo universal: a saciedade em relação à própria vida. Concentradas em suas linguagens, a filosofia, a religião, a medicina e a psicanálise podem ser impotentes para dar conta da questão. Mas o desenvolvimento da neurologia e das tecnologias de imageamento cerebral está mapeando pistas consistentes para, pelo menos, anunciar os termos da equação da felicidade.

Desde os anos 1980, o movimento da psicologia positiva vem estudando os traços construtivos da personalidade, e não mais as doenças, projetando o trabalho pioneiro de pesquisadores como os americanos Ed Diener, professor da Universidade de Illinois, e Martin Seligman, diretor da Universidade da Pensilvânia. Graças à contribuição das ciências médicas, está se tornando possível conhecer as possibilidades neurológicas da felicidade sem cair em reducionismo.

No campo da genética, por exemplo, descobriu-se que o DNA é determinante. Na Universidade de Edimburgo, Escócia, uma pesquisa liderada pelo psicólogo Timothy Bates, baseada na avaliação de 837 pares de irmãos gêmeos, univitelinos e bivitelinos, demonstrou que as características genéticas do indivíduo influenciam mais que o ambiente no grau de felicidade alcançado. Parte da aptidão para ser feliz está inscrita nos genes. Por meio dos estudos de Sonja Lyubomirsky, professora de psicologia da Universidade da Califórnia, estima-se que a genética explique 50% da predisposição à plenitude, outros 40% dependam do comportamento e cerca de 10% sejam condicionados pelas circunstâncias favoráveis, como viver em um país sem guerra ou ser bonito.

Em outras palavras, a felicidade se aprende, como qualquer outra habilidade. “Desde Aristóteles já se sabe que a felicidade é consequência de ações”, argumenta Silvia Helena Cardoso, neurocientista e fundadora do Instituto da Ciência da Felicidade, vinculado ao Instituto de Teleneurociência de Campinas. É o que também garante Richard Davidson, professor de psicologia e psiquiatria da Universidade Harvard. No livro Transforming the Emotional Mind, ele afirma: “Cultivar a felicidade não é diferente de tocar um instrumento musical ou de praticar um esporte. Se treinarmos, dá para melhorar.”

Otimismo e fé

Como preparar esse treino à luz da ciência? Sendo a felicidade “um arrastão emocional”, passível de contagiar os outros por contato social na proporção de 15%, como estima Nicholas Christakis, professor de sociologia médica da Escola de Medicina de Harvard e autor de um estudo com 4,7 mil voluntários, quanto mais gente feliz gravitando em volta, mais probabilidade se tem de atingir esse estado de graça.

Em segundo lugar, para ser feliz, é preciso aprender a lançar um olhar permanentemente positivo pela janela da vida e cultivar a gratidão. O velho chavão segundo o qual a maneira de encarar o mundo condiciona o que se sente ganhou comprovação científica e foi confrontado com numerosos estudos de caso por Sonja Lyubomirsky no livro A Ciência da Felicidade.

Bastaria, então, ajustar as lentes da forma como se enxerga a vida para colher um leque maior de cores, numa espécie de livrearbítrio sobre os pensamentos? O Instituto da Ciência da Felicidade acredita no poder da terapia do otimismo. Sendo a felicidade “um sistema com componentes químicos, neurológicos e psicológicos”, é do domínio da psicoterapia cognitiva examinar as crenças que podem levar alguém a cultivar o negativismo e, graças a ela, “provocar até mesmo alterações na rede neuronal, quando se trabalha para evitar pensamentos negativos”, afirma Silvia Helena.

Ao lado de bons sentimentos atrelados à amizade, à cooperação e ao companheirismo, elevar o espírito pela fé é outra forma de alcançar a felicidade, sustentam os especialistas. De fato, pesquisas realizadas em quase 100 países ao longo de um quarto de século revelaram que, além de beneficiar as pessoas com temperamento mais flexível e estilo de vida positivo, a felicidade está muitas vezes associada a algum tipo de conexão espiritual que o indivíduo faça: amor, fé, ética, busca pela excelência, transcendência moral, responsabilidade social, etc. Os resultados do estudo, comentados no livro Happiness: Unlocking the Mysteries of Psychological Wealth, de Ed Diener, levaram-no a afirmar que ninguém é obrigado a seguir uma religião, mas ter algum tipo de fé ou elevação moral induz a um bem-estar perene.

Em momentos de grande tensão, é inegável a importância da rede de proteção que as religiões formais podem oferecer – até mesmo ao mais dogmático ateu. Por causa delas, os crentes são mais saudáveis e se recuperam melhor depois de um trauma na comparação com os ateus, dizem as pesquisas. Silvia Helena ressalta um estudo realizado com pais que haviam perdido seus bebês por síndrome da morte súbita. Para eles, a crença em um deus ou na vida após a morte é o anteparo emocional que ajuda a alimentar o otimismo e a perseverança.

Saúde e longevidade

Elevação espiritual significa gente mais feliz, mais saudável e vida longa. Diener chegou a essa conclusão depois de analisar oito tipos de estudos, num total de 160 trabalhos de longo prazo, com humanos e animais, sempre tentando inter-relacionar felicidade e estado de saúde. As provas, segundo ele, são “claras e convincentes”: pessoas felizes tendem a viver mais e com mais saúde do que indivíduos infelizes. “A conclusão é que o bem-estar subjetivo – ou seja, estar feliz com a vida, não estressado e não deprimido – contribui para a longevidade e melhor saúde em populações saudáveis”, afirma no artigo “Happy People Live Together”, publicado na revista Applied Psychology.

Um dos estudos de casos v a s culhado s acompanhou 5 mil estudantes universitários por quatro décadas e, ao cabo do período, apontou que aqueles que eram mais pessimistas quando jovens morreram mais cedo que os colegas. Outro experimento mostra que o bom humor reduz os hormônios relacionados ao estresse, aumenta a função imunológica e promove a rápida recuperação do coração após o esforço. Esse é, por excelência, o embate entre a endorfina, hormônio da saciedade, e a dinorfina, que atua na sensação de desprazer. “Fiquei surpreso ao ver que todos os estudos apontam para a mesma conclusão”, diz o psicólogo da Universidade de Illinois. “A felicidade pode não ser uma poção mágica, mas as provas são claras de que ela influencia as chances de alguém ficar doente ou morrer jovem.”

 

ENGRENAGEM EVOLUCIONISTA

Se existe uma história que perpassa a própria história da humanidade, é a da felicidade. Pois se houve guerra ou paz, descobertas, invenções, arte e ciência, em última instância tudo isso teve como único objetivo prover bem-estar ao homem, garantir sua satisfação e plenitude. Desde tempos imemoriais, a fórmula da felicidade intriga. É volátil, pessoal, intransferível. Ao longo de sua evolução, ser feliz induziu o homem a uma interlocução com pelo menos quatro atores: Deus, o Estado, a sociedade e si mesmo. Desse diálogo resultaram distintos olhares sobre o conceito de felicidade. Em todos eles, porém, permaneceu embutida a ideia de superação.

Na Grécia Antiga, defender a pátria com coragem e bravura, superando os perigos da vida, ser reconhecido pela valentia e morrer com honras em nome do coletivo era o suprassumo de uma vida feliz. Assim, o conceito de felicidade que nos legaram os gregos está associado à perfeição heróica de unir o destino às virtudes. Trata-se de uma deferência do divino, um presente aos heróis. Gira em torno de valores como merecer o bom daimon – o emissário dos deuses, espécie de anjo da guarda que zela pelo seu protegido, obrando em favor do seu bem e guiando-o na direção da virtude.

Quando a Grécia entrou em decadência, depois do seu apogeu político e cultural, a partir do século II a.C., a cultura greco-romana produziu uma filosofia sintonizada com as aflições humanas, da qual são exemplos o estoicismo e o epicurismo. Nasceu a ideia de despojamento e a percepção de que, para ser feliz, é necessário não ter apego a nada. Novamente, o homem foi chamado a se transcender, refreando paixões e desejos – entenda-se o medo da morte e do aniquilamento.

Enquanto isso, no Oriente, o hinduísmo, base para outras religiões vigorosas, também enunciava uma alternativa para o dilema entre possuir mais ou desejar menos: o autoconhecimento, a sabedoria espiritual. Conhecer a si mesmo, libertando-se dos desejos e bens materiais, era o caminho traçado para o ideal da felicidade.

Com a Idade Média, acreditou-se que merecer a graça divina, praticando uma militância religiosa, levaria o homem a experimentar a plenitude. Ser um bom cristão, em nome do bem, era, portanto, a máxima da era medieval. Com o Iluminismo, porém, todas as premissas anteriores caíram por terra, abrindo caminho para o apogeu do pensamento científico, do progresso das ciências e da fé na razão. A chamada “viabilidade hedonista” pregou que era tempo de ser feliz – aqui e agora –, contrariando os preceitos cristãos de uma vida supostamente plena após a morte, depois da prática da beatitude.

O casamento entre a instituição política e a felicidade selou, na declaração dos direitos humanos e na Constituição Francesa de 1793, o direito natural do homem a um dos mais nobres objetivos da sua existência. A ordem social passou a conspirar a favor da qualidade de vida, da responsabilidade sociopolítica e da  visão holística. Desde então, a felicidade não mora mais no campo do misticismo. Tornou-se ciência exata.

Hoje, por mais que a pesquisa científica associe essa sensação de bem-estar à ação dos hormônios e ao código genético, o fato irretorquível é que não basta ter um DNA ou uma boa química no cérebro para ser feliz. Fatores externos, como a expectativa de vida, a distribuição de renda e o respeito aos direitos humanos, também são levados em conta por especialistas para mensurar o nível de plenitude alcançado.

Mais do que nunca, entre os prérequisitos enunciados pela sociedade capitalista para fazer jus à felicidade está o poder de compra e, nele, a ideia de emancipação socioeconômica. Muito embora haja consenso de que “um vestido novo ou uma casa espaçosa podem fazer as pessoas felizes apenas por um período de tempo curto”, como diz o físico Stefan Klein, autor de A Fórmula da Felicidade, o fato é que esse mecanismo, chamado de “adaptação hedonista”, que proporciona ao homem moderno um sentido de realização pessoal a cada conquista nova, atende aos desígnios do evolucionismo. Explica-se: “A felicidade foi projetada para se evaporar”, alfineta o escritor Robert Wright, autor de O Animal Moral: Psicologia Evolucionária e o Cotidiano. “Se a alegria que se tem após o sexo nunca acabasse, os animais só copulariam uma vez na vida.”

Seria por isso – contrariando a ideia de que a sensação de plenitude deve ser perpétua (uma vida na qual não cabe revés algum) – que a natureza aperfeiçoou, ao longo de milhões de anos, um estratagema com o objetivo de impulsionar o homem para a frente. Dotou-o de insatisfação e ambição. Criou a “esteira hedonista” – processo psicológico pelo qual ele assimila os graus de conforto e contentamento que vai conquistando ao longo da vida e segue desejando mais e mais.

Ao agir de modo a aumentar suas chances de sobreviver ou procriar, o homem se sente naturalmente bem, de maneira que deseja repetir a experiência outras vezes. Perseguindo incessantemente essa sensação, acaba multiplicando suas chances de transmitir seus genes. Por isso, sustenta Robert Wright, o conceito de felicidade estabelecido entre os homens se presta aos imperativos da evolução genética.

A necessidade de se sentir realizado e a dependência psicológica dessa sensação química de bem-estar movem o mundo e impulsionam o homem. Mas atenção: para manter sob tensão contínua os projetos de vida e a disposição para lutar por eles, toda a energia humana canalizada na busca da felicidade precisa, a priori, ser em parte represada por ilusões de ótica e reveses. Os obstáculos, os retrocessos e as derrotas fincados ao longo do percurso têm o objetivo de fortalecer o indivíduo e assegurar que ele caia e levante. A felicidade é uma espécie de truque para seguir adiante. Ou, como diria o diretor de cinema Woody Allen, referindo-se à inevitabilidade do sofrimento humano: “Como eu seria feliz se eu fosse feliz?”