No começo de dezembro do ano passado, vários clãs das 22 etnias indígenas que habitam o noroeste do Brasil se reuniram em frente ao Pontão de Cultura, em São Gabriel da Cachoeira (AM), para uma cerimônia que poucos imaginariam possível. Naquela manhã chuvosa, receberam de volta uma centena de ornamentos, na verdade um conjunto heterogêneo de peças de caráter cerimonial – os basá busá –, em sua maioria adornos usados pelos indígenas durante a execução de rituais de danças sagradas. Apesar de quase um século fora de seu local de origem, esse material nunca deixou de ter grande importância para a história e a cultura das etnias de fala tucano do rio Uaupés (afluente do rio Negro) e do povo tariano. Entre essas peças estão acangataras (espécie de cocar) de penas de arara, tucano, japu e garça, cordas de pelos de macacos, cintos e colares de dentes de onça e de capivara. Todas essas peças, originariamente, eram conservadas pelos indígenas em caixas especiais, confeccionadas em palha. As caixas eram mantidas suspensas na parte superior das antigas e grandes moradias coletivas – as malocas – e ficavam sob os cuidados dos bayá, guardiões dos cantos sagrados. As caixas só eram baixadas e abertas por ocasião dos principais rituais da tribo, como o da iniciação dos jovens e o do renascimento dos mortos.

Pela tradição, esses ornamentos constituem um legado dos ancestrais que os trouxeram desde o mítico Lago de Leite – ventre materno de todos os povos – até o rio Uaupés. Segundo a mitologia indígena, foram trazidos de lá em longa e aventurosa jornada pela costa brasileira e ao longo dos rios Amazonas e Negro, viajando no interior de uma “cobra-canoa”. O objetivo dessa jornada era povoar a região com uma nova humanidade, que se distinguia exatamente porque tinha tais adornos em seu poder. Todos os grupos indígenas do Uaupés possuíam conjuntos idênticos desses objetos.

A pilhagem dos basá busá e outros objetos sagrados indígenas representou uma verdadeira amputação da multissecular tradição indígena. Ela ocorreu durante as décadas de 1920 e 1930 e foi praticada por missionários salesianos. Esses religiosos chegaram à região, a pedido do então presidente Getúlio Vargas, a fim de implementar a catequese e aculturar os nativos. Desde aquela época, vários objetos indígenas foram levados para museus ou vendidos, pois simbolizavam “coisas do diabo” para os religiosos católicos. Muitos outros adornos e objetos cerimoniais foram adquiridos ou roubados por comerciantes e hoje integram coleções e acervos particulares.

Por obra do destino, décadas atrás, algumas das peças sagradas retiradas das tribos foram reconhecidas por uma servente indígena do Museu do Índio, em Manaus. Sem poder de fogo, os chefes das aldeias não tinham como recuperálas. Sofriam ainda as consequências opressoras da mentalidade colonialista e não sabiam como reivindicar o que lhes pertencia. Há cinco anos, porém, a cachoeira sagrada de Iauaretê – lugar de criação de todos os povos indígenas – sofreu a ameaça de desaparecimento total: moradores não indígenas da região queriam construir ali uma pista de pouso para aviões. Foi a gota d’água. Sem arredar pé do lugar, com a cara e a coragem, várias tribos se rebelaram e uniram-se em defesa da sua cachoeira sagrada.

O direito dos índios de preservar a cachoeira encontrou aliados de peso: o Instituto Socioambiental (ISA), com ampla experiência no trabalho antropológico na região, uniu-se ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e ambos, com os indígenas, conseguiram preservar esse lugar sagrado.

Localizada no distrito de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira, e considerada lugar sagrado dos povos indígenas do rio Uaupés, a Cachoeira de Iauaretê foi registrada pelo Iphan como “patrimônio cultural brasileiro de natureza imaterial” e inscrita no Livro dos Lugares desse instituto. Sua preservação, além disso, desencadeou uma decisão inédita em nosso país: a devolução dos basá busá a seus legítimos proprietários. Estimulados pela vitória alcançada em Iauaretê e sentindo confiança em seus novos parceiros, os indígenas manifestaram seu desejo de reaver as peças cerimoniais “guardadas” no Museu do Índio, instituição mantida pelas religiosas do Patronato de Santa Terezinha, em Manaus.

No histórico dia da restituição, vários chefes de tribos e numerosos indígenas do rio Negro estavam presentes. Muita gente e muita emoção. “Chegou a nossa hora”: essa era a mensagem subliminar das declarações dos anciões ao rever suas peças.

“Para nós, esses objetos não são apenas obras de arte”, explica Adriano de Jesus, 62 anos, que trabalhou para a recuperação dos objetos. “Mais profundamente, elas têm uma dimensão espiritual e um poder de renascimento. Com a dispersão de nossos adornos de dança, criou-se um vazio. Tínhamos perdido nossa honra e nossos valores. Tivemos de enfrentar graves problemas sociais, como suicídio, drogas, alcoolismo e prostituição. Neste momento, as pessoas sentem que sua honra e dignidade também lhes foram restituídas. Nem todas as peças foram recuperadas – faltam o troka (tambor) e o bastão (forquilha para segurar o cigarro) –, mas já é o início de uma nova época”, ele completa.

POR OBRA DO DESTINO, DÉCADAS ATRÁS, ALGUMAS DAS PEÇAS SAGRADAS RETIRADAS DAS TRIBOS FORAM RECONHECIDAS POR UMA SERVENTE INDÍGENA DO MUSEU DO ÍNDIO, EM MANAUS

Outro indígena, Laureano Maia, 71 anos, vai mais longe em seus sentimentos: “Hoje tenho muita alegria em meu pensamento. Onde eu iria reencontrar meu pai, ele não estava. Agora meu pai pode ressuscitar.” Maia foi um dos três chefes que estiveram no Museu do Índio, dois anos antes, para reconhecimento dos objetos retirados pelos missionários. “Nunca entendi esses padres. Disseram que iam queimar esses objetos, pois eram coisas do diabo. Em vez disso, ganharam dinheiro mostrando e vendendo nossas peças aos turistas. Quando falei isso para a freira-diretora, ela deixou cair lágrimas. Então eu disse: ‘Hoje a senhora derramou duas lágrimas, mas meu povo chora há três gerações.’”

André Fernandes, 37 anos, da etnia baniwa, proclama que este é um momento histórico para os povos do rio Negro. “Continuaremos lutando para reaver nossas peças espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Com essa devolução, podemos nos orgulhar de não ser apenas índios e brasileiros, mas iguais a todo o mundo.”

“MAIS DO QUE A RELEVÂNCIA DESSA REPATRIAÇÃO DE PEÇAS SAGRADAS ESTÁ O DIÁLOGO QUE INCORPORA O RESPEITO A TODOS OS CIDADÃOS BRASILEIROS”

LUIZ FERNANDO DE ALMEIDA, presidente do Iphan

 

Os jovens também estavam contagiados pelo entusiasmo de seus pais e avós. Sergio de Jesus, 20 anos, não tirava os olhos de uma acangatara de penas vermelhas. “Meu avô me falava que elas eram muito bonitas, mas são mais do que isso, parece que enfeitiçam. E pensar que agora, nos rituais de iniciação dos jovens de minha tribo, elas estarão presentes, o que não ocorreu durante minha cerimônia”, completou Sergio, num misto de felicidade e tristeza. Por seu lado, Pedro Garcia, 47 anos, da etnia tariana, proclama, empolgado: “Nossa cultura não morreu, ela foi contida. Mas agora vamos redescobri-la.”

Não será fácil ajustar dois valores tão radicalmente opostos: o dos museus e instituições que zelam pelos objetos indígenas e o dos valores espirituais e religiosos dos povos a que pertencem tais objetos. Mas, como diz Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan, um “gigantesco avanço” foi conseguido. Presente à cerimônia de restituição em São Gabriel da Cachoeira, Almeida deixou claro que trabalha para encontrar a chave desse entendimento. Para ele, “maior do que a relevância dessa repatriação de peças sagradas é o diálogo que incorpora o respeito a todos os cidadãos brasileiros”.