Esquecido pelo mundo durante séculos e temido por turistas, o Iêmen começa a se abrir e a surpreender os raros visitantes. Não é a toda hora que se descobre um país intocado, em que a mitologia islâmica e a história se mesclam em cada olhar.

 

Apesar de pouco conhecido hoje, o Iêmen é tão antigo quanto a Bíblia. Sua história se entrelaça com os mitos dos filhos de Noé, com a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh e com a famosa Rainha de Sabá, de árabes e cristãos. Seu território, localizado no canto sul da Península Arábica, entre Arábia Saudita, Omã e uma faixa de mar que o separa da África, é um dos berços da humanidade, mas foi esquecido pelo mundo durante séculos. Com o tempo, o Iêmen também se esqueceu do resto do mundo. O isolamento secular manteve viva a magia exótica do país até os dias atuais.

Não é de hoje que o Iêmen impressiona os visitantes. Ao pisar nos confins do Oriente Médio e se deparar com a calorosa hospitalidade dos seus habitantes, os romanos chamaram a região de “Arábia Feliz”. O profeta Maomé, ao passar pelo território, registrou ter encontrado ali as pessoas mais gentis que conhecera. Ainda hoje os visitantes elegem o Iêmen como um de seus destinos favoritos, não só por sua singular beleza natural, mas, especialmente, pela hospitalidade e simpatia da população, que vive de forma simples e alegre apesar da pobreza – sempre com o costume de mascar, todo dia, após o almoço, a popular folha do estimulante qat.

Percorrer o país é refazer os passos do lendário explorador árabe Ibn Battuta (1304-1377), sabendo que pouco mudou desde o século 14 até hoje. O fato de a região ter sido habitada durante séculos por um povo nômade obrigado a contar com a hospitalidade dos outros para se manter em movimento pelo deserto, a influência dos preceitos do Corão (que recomendam tratar e receber bem os viajantes, como se fossem sábios) e o relativo desconhecimento da região pela indústria turística tornam o Iêmen o destino ideal para quem valoriza autenticidade, cultura e uma hospitalidade há tempos perdida na maioria dos países.

Olíbano e mirra

Apesar de tão antigo quanto a história da humanidade, o país só entrou no mapa global no século 1 antes de Cristo, graças a sua produção de olíbano, uma resina vegetal também chamada de franquincenso – o incenso verdadeiro –, e da extração de mirra, outra resina usada em medicamentos e como incenso em tempos bíblicos. Na época, a doce fumaça de tais commodities valia ouro. De lá para cá, as aromáticas resinas perderam seu valor e o Iêmen empobreceu e passou a sofrer a influência de outras culturas. A lista dos que tentaram colonizar o país é grande e inclui egípcios ptolomaicos, abissínios, persas, portugueses, otomanos e ingleses. Nenhum teve muito sucesso, o que até hoje é motivo de orgulho para os iemenitas.
Durante séculos o território se manteve na mão de líderes tribais e religiosos. Apenas no século 20, a geo­grafia do país começou a ser redesenhada graças à descoberta de petróleo, a principal receita da economia iemenita atual, que continua a ser a mais pobre do Oriente Médio. Depois da colonização otomana e britânica, o Iêmen foi dividido em dois, e durante décadas o Iêmen do Norte, capitalista, duelou contra o Iêmen do Sul, socialista. A parte sul, primeiro e único Estado marxista do mundo árabe, foi derrotada na década de 80 e, em 1990, o país foi unificado como República do Iêmen, sob a presidência de Ali Abdullah Saleh.
A ausência de um governo democrático induziu às revoltas recentes, sintonizadas com o movimento da Primavera Árabe, para tirar Saleh de seu mandato sem fim. Em fevereiro, o presidente aceitou deixar o cargo, assumido por seu vice, Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi, depois de uma eleição. Tudo indica que, apesar da eventual violência terrorista, o país vive o início de uma nova fase política, na qual estará mais aberto para o cenário internacional. Mesmo com a revolução, é bem provável que o Iêmen continue sob grande influência tribal e religiosa, a qual tem mais poder na vida dos iemenitas do que o próprio governo.

Burcas e jambias

Quem chega ao Iêmen tem a impressão de entrar em um universo paralelo. Os homens são maioria pelas ruas, quase todos usando turbantes, túnicas, bigodes, saiotes e paletós, sempre com um largo cinto que sustenta a tradicional jambia, uma espécie de adaga, símbolo do mundo árabe. A imagem impressiona, especialmente pela faca que sugere que estão prestes a duelar a qualquer momento.
Conforme se conhece a cultura, tudo muda. Simpáticos, os iemenitas logo se mostram abertos a conversar e desarmam qualquer receio. É fácil perceber que ali se está muito mais seguro do que em muitos lugares do mundo. A própria jambia nem corte tem, sendo tão letal quando um garfo ou uma colher. Na verdade, só é usada em danças tradicionais, em que homens bailam entre si batendo uma faca na outra.

No segundo momento, descobre-se a inocência e a simpatia do povo. Provavelmente por conta da sharia, o rígido código de conduta do islamismo, a criminalidade é próxima de zero, o que explica a serenidade e despreocupação de todos, os carros abertos na rua e os inúmeros convites para tomar um café, provar tâmaras frescas ou apenas falar sobre a vida.
Mesmo na capital e maior cidade do país, Sanaa, a sensação é de tranquilidade. Isso também vale para as mulheres, submetidas às leis religiosas. Ao contrário de outros países islâmicos, o Iêmen costuma ser seguro inclusive para mulheres estrangeiras que viajam sozinhas. Apesar de normalmente usarem longas burcas de cores escuras, e de serem bastante reservadas, as iemenitas podem ser mais liberais do que parecem. Um sinal é a presença de inúmeras lojas de roupas íntimas, bastante ousadas e visíveis nas ruas de Sanaa. A primeira sensação é de que estão no lugar errado, mas logo se percebe que há mais coisas debaixo de uma burca do que os olhos podem ver.

Manhattan do Deserto

Sanaa, a 2.300 metros de altitude e com 1,7 milhão de habitantes, é a mais antiga cidade do mundo continuamente habitada. A lenda diz que foi fundada por Sem, filho de Noé. A ciência comprova que é mesmo antiga, pois o centro fortificado existe desde o ano 500 a.C. Apesar do rápido crescimento dos últimos anos, a cidadela continua igual há séculos, com milhares de casas de cinco a seis andares, construídas com tijolos e barro, decoradas com linhas brancas. Mesmo as mesquitas e os minaretes não são diferentes e se misturam com os tons ocres da cidade, declarada patrimônio da humanidade pela Unesco em 1986.

A labiríntica Sanaa é uma atração à parte. É fácil se perder por suas ruas e vielas e descobrir traços de séculos de história islâmica. Grandes mercados de especiarias, tâmaras e incenso, restaurantes a céu aberto, mesquitas que entoam cânticos juntas, cinco vezes ao dia, como se participassem de uma sinfonia, pequenas portas que conduzem a universos particulares onde tudo parece ser diferente do que é visto pelas ruas, mulheres com burcas misteriosas, os sorrisos e a curiosidade mútua fazem de uma mera caminhada uma viagem por um cenário digno dos contos das Mil e Uma Noites.
O grau de adaptabilidade das cidades iemenitas com o deserto e as montanhas é notável. Desafiando a gravidade e outras leis da física, surgem vilarejos construídos no alto de montes, como Manakhah, e casas levantadas sobre pedras gigantescas, como o palácio Dar al-Hajar, que parece estar equilibrado sobre uma enorme rocha. Os iemenitas sabem o quanto sua arquitetura é peculiar. Atualmente, o “palácio da rocha” é um dos símbolos do país e da ousadia de habitar lugares improváveis.
No leste está o fértil Vale Hadramaute, uma região diferente das montanhas que rodeiam a capital. Ali, as cidades se espalham ao pé de grandes encostas e frondosas plantações crescem ao longo dos leitos de rios. Entre as cidades do vale está Shibam, conhecida como a “Manhattan do Deserto”. O título é curioso, mas Shibam impressiona: são centenas de prédios de sete a oito andares, todos construídos com tijolos e barro, há 2.500 anos. Mais impressionante ainda é o fato de todos continuarem em pé e habitados, como se o tempo não passasse.

Qat e mokha

O Iêmen não é só montanha e deserto. Seu litoral é banhado pelo Golfo de Áden de um lado e pelo Mar Vermelho de outro. Pela costa é fácil encontrar praias e ilhas com mar azul-turquesa, desertas. Como os banhistas são obrigados a entrar vestidos no mar, a atividade não é das mais populares. Cidades litorâneas como Áden estão entre os maiores núcleos­ urbanos do país e apresentam uma atmosfera mais liberal e descontraída, inclusive com mulheres em trajes mais liberais do que a burca.
Áden é um dos portos mais antigos do mundo e um ponto de encontro de culturas. Talvez por isso tenha sido a primeira cidade iemenita a proibir o qat, uma planta com propriedades estimulantes que, de tão consumida legalmente, tornou-se um problema. Pesquisas mostram que cerca de 80% dos homens a consomem frequentemente, mascando a folha verde no canto da boca, sobretudo depois do almoço. Nem mulheres e crianças escapam.

Tal como a folha de coca, o qat contém um alcaloide. É popular na Etiópia e tida como droga legal na Holanda e no Reino Unido, mas na Somália é proibida. Os efeitos não são bem definidos, variando entre o estimulante, o alucinógeno e o afrodisíaco, conforme a pessoa. Em geral, os turistas mascam, mascam, se entreolham e não sentem nada. O notório é que a produção e o consumo geram impactos negativos na economia do país. Por se tratar de uma droga social, os usuários parecem preferir jogar conversa fora e consumir qat, pondo folha após folha na boca, a trabalhar. Quase todas as plantações de café do país estão virando plantações de qat, que geram prejuízo em vez de lucro. Assim, a terra que batizou o café de mokha, graças ao porto de mesmo nome, está assistindo ao gradual desaparecimento dessa milenar cultura. Seja mascando as folhas de qat, seja tomando uma xícara de café raro, os iemenitas estão, sem dúvida, entre os povos mais hospitaleiros do mundo. Eles são responsáveis por manter aberto o livro de histórias fantásticas do Iêmen.