Silvio Meira, cientista-chefe do C.E.S.A.R, do Recife, conhece bem o poder das comunidades interligadas pela internet que facilitaram as manifestações de rua e estão mudando as regras do jogo político

Apesar de ser da geração das máquinas de escrever mecânicas, Silvio Meira tem enorme afinidade com o mundo digital. O paraibano engenheiro de software é referência em tecnologia e inovação no Brasil – já tendo recebido as comendas da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República (1999) e da Ordem Rio Branco (2001).

Pesquisador do CNPq por 15 anos, foi um dos fundadores do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.) e do Porto Digital, parque tecnológico de Pernambuco. Tem 164 mil seguidores no Twitter, é autor de diversos trabalhos científicos e colaborador de jornais e revistas há vários anos. Na descrição de seu blog, também gosta de destacar que é fundador do tradicional grupo de maracatu “A Cabra Alada”, na prosaica condição de “batuqueiro”.

Atualmente, Meira trabalha como consultor de empresas privadas e do setor público desenvolvendo diagnósticos para entender, por meio da tecnologia, as mudanças de comportamento e os recentes protestos e manifestações de rua em todo o Brasil. Com sinceridade “arretada” de paraibano, dividiu com a PLANETA algumas das conclusões às quais chegou até agora.

Por que a articulação popular que gerou os recentes protestos de rua funcionou agora e não em outro momento?
Porque tem que ter uma gota d’água e toda gota d’água depende de massa crítica, né? Vamos pegar a população típica que estava nas passeatas: jovens entre 15 anos (que estão no ensino médio) e 24 anos (que acabaram de sair da faculdade). Nessa faixa de idade, no Brasil, 70% têm smartphone em todas as faixas de renda, e eles estão conectados sete horas, em média – segundo dados de pesquisa do Financial Times e da Telefônica. Ainda por cima, a média dessas pessoas, bem acima de 50% no caso do Brasil, acha que pode mudar o mundo. Eis aí uma massa crítica: conexão possibilitada por dispositivos baratos e planos de internet de R$ 0,50 por dia.

Para completar o quadro, vários debates recentes chegaram à conclusão de que uma parte significativa e determinante do comportamento da sociedade passa a ser conduzida pela internet quando a taxa de penetração de rede ultrapassa o “número mágico” de 40%. No Brasil de hoje, são mais de 50%: 102 milhões de brasileiros estão na rede, segundo o Ibope. Se com uma taxa de conexão como essa não existisse ativismo digital, o Brasil estaria morto.

Mas ninguém previu que iria acontecer?
Ninguém previu. Esse é o problema da emergência dos comportamentos em rede. Essa é, talvez, a nova norma. Estou recebendo solicitações de análise e diagnóstico de empresas, governos e até das Forças Armadas, para entender o que está acontecendo. E também por que não souberam antes. Não quero puxar sardinha pro meu lado, mas escrevi sobre isso quando a Globo proibiu jornalistas e artistas de comentarem negócios e notícias sobre a rede de tevê no Twitter. Para mim, o Twitter é a nova mesa de bar. O que estávamos discutindo na mesa de bar estamos agora discutindo no Twitter. E alguma coisa vai sair dessa mesa de bar.

Como os acontecimentos dessa mesa de bar se tornam “virais” (se espalhando rapidamente)?
Depois de um início com movimentos estruturados e fragmentados em muitos lugares, há um processo natural de espalhamento das manifestações, numa escala que vai do difícil de entender ao ininteligível. Passamos de alta velocidade para a velocidade infinita, com 3 mil tweets por segundo e centenas de câmeras transmitindo no tweetcam. Nesse ponto, você já tinha inúmeros hashtags como #protestosBR, #protestoRJ, #protestoSP, #vemprarua, #ogiganteacordou. Esses virais já estavam no topo do Twitter, 100% do tempo. As pessoas tinham passado a seguir hashtags. Já não estavam mais seguindo pessoas.

Você atribuiu os protestos na Turquia ao “abismo entre povo e governo”. No Brasil seria o mesmo?
A gente foi deixando pra lá e a democracia representativa deixou de ser representativa. O sistema entrou em colapso porque perdeu a conexão com as pessoas. Em 1968, em 1975, e assim por diante, existia uma União Nacional dos Estudantes, por exemplo, que era parte do bloco crítica à situação. Hoje ela é basicamente um braço do poder estabelecido. Nos últimos dez anos, em função da tentativa de criação de uma unicidade programática – que poderíamos chamar de “nacional trabalhismo” –, pelo qual se você é contra o PT você é contra o Brasil, um número grande de instituições que engrossavam a oposição foi reduzido à mínima expressão ou foi cooptado. Não é por outro motivo que hoje existem 39 ministérios. Se todo mundo que potencialmente podia ser oposição vira posição, por onde o descontentamento vaza? Vaza pelas redes sociais, de forma desarticulada, ou na rua e na depredação do patrimônio público e privado. Estamos vivendo uma situação esquisita na qual o que desaguou na rua não podia desaguar em nenhum espaço. Não havia por onde esse pessoal se manifestar. Mas acho que a articulação por meio das redes sociais ainda não está funcionando.

Por quê?
O poder das redes sociais é muito menor do que os jornalistas propalam, porque o governo continua com os 39 ministros e se fala pouco de reforma ministerial, diminuição de gastos públicos ou de aumento da eficiência dos gastos públicos. O que está se falando é o seguinte: vamos pegar mais impostos sobre royalties do pré-sal e colocar em determinados lugares, como educação e saúde. Mas ninguém está propondo analisar o que está sendo gasto, nem como controlar o que está sendo mal gasto. Não se ouve falar disso. As redes sociais não resolvem todos os problemas. Até aqui, temos um sucesso muito parcial das manifestações. Se a rede tivesse o poder que muita gente imputa a ela, o Aldo Rebelo não era mais ministro e estaria exilado na Albânia.

Mas as manifestações parecem ter sacudido a letargia da população.
As pessoas foram para a rua. Acho que isso é massa, é uma beleza! Mas você não muda um país simplesmente porque coloca 20 mil, 70 mil ou 1 milhão de pessoas nas ruas. Somos 200 milhões. Mudanças não acontecem de um dia para o outro. Acontecem no longo prazo e isso implica capacidade de articulação, coordenação, colaboração, cooperação, compartilhamento de valores e de princípios. Vai levar muito mais tempo do que as pessoas estão achando. Elas descobriram que podem se articular e levar um grupo de 200 – não precisa ser 2 mil – para a avenida Paulista toda vez que quiserem. Se isso virar uma norma, aí começamos a mudar o país. Mas, em curto prazo, a mobilização popular deve perder força e um número grande de instituições contra as quais as pessoas estão se manifestando vai assumir uma parte das manifestações como propriedade delas. E não vão mudar as práticas. Vão continuar fazendo o que já estavam fazendo. É exatamente o que mostra o vídeo Reunião de Emergência, do grupo Porta dos Fundos, quando dizem no YouTube: “Vamos diminuir só 20% o volume de roubo; só por um tempo, até esse pessoal se aquietar, depois a gente volta ao normal.”

O brasileiro está mais politizado?
Não. O povo perdeu a paciência. É daí que vem a revolta perigosa. Não a de quem reclama, mas a de quem destrói e não tem nenhuma proposta de construção. A mensagem é: “não só sou contra isso aí, eu quero é destruir esse negócio.” Isso gera uma reação potencialmente violenta. Se eu saio disposto a bater, é óbvio que alguém também pode bater em mim. Quando o Estado tem que partir para reações violentas, estamos com problemas seríssimos. Eu não acho que derrubar o Estado na marra seja o meio ou o método a ser usado, em nenhum estágio. Eu me recuso a aceitar que temos que partir para a violência estrutural para fazer mudança social.

Pode-se criar um novo formato de democracia por meio de tecnologias como as redes sociais?
Você pode acabar com a política representativa. Tem quem diga que não podemos ter democracia sem partidos. Esse é o pessoal que não leu direito o livro do economista inglês John Stuart Mill sobre democracia representativa. Em momento nenhum ele diz que democracia representativa é a única forma de democracia que existe. Nem que ela é melhor que a direta. Em 1860, a mediação era necessária pela única e simples razão de que era inviável pelo correio reunir todos os cidadãos para discutir organizadamente. O que estamos vendo agora é que podemos reunir todas as pessoas. Será – este é um grande “será” – que a gente pode exercer democracia direta? Dizem que não porque temos 75% de analfabetismo funcional, e a minoria de 25% vai dominar a outra parte. Se isso for mesmo verdade, já é melhor do que 0,0001% representando todo mundo, como é hoje. Eu tenho certeza absoluta de que não vamos precisar de 518 deputados. A gente não vai precisar escutar o “nobre representante de Itaperoá”, vai poder escutar o povo de Itaperoá. Se os partidos não atendem à demanda popular por representação, por que ter partidos? Vamos imaginar que a gente more numa cidade, onde todo mundo está na rede social, e quer reformar uma ponte. Podemos tomar uma decisão conjunta sobre isso. E não deixar um “cabra” mandar fazer outra ponte e aumentar meu imposto sem me perguntar – sendo que o mais importante não era a ponte, mas o contrato com a construtora. E lá vamos nós como cordeirinhos para o abatedouro. Acho que a gente tem que olhar pro futuro e ver o que pode influir nesse sistema. Se dessa quantidade de manifestações só tirarmos de lição de que o Brasil às vezes explode, será muito triste.