No porto pesqueiro de Luís Correa, localizado no delta do rio Parnaíba (PI), o biólogo Mário Magalhães Neto, do Projeto Cetáceos do Maranhão/Instituto Ilha do Caju Ecodesenvolvimento e Pesquisa (Procema/ Icep), anota com interesse o relato do pescador Francisco Damasceno Santiago. Recém-chegado do mar, com o filho nos braços, Santiago narra uma história fascinante:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acima, no sentido horário, a bióloga Geórgia monitora cetáceos na Praia do Sal; Ingrid Clark, gestora do Procema e dona da Ilha do Caju; crânio de bototucuxi; cachaloteanão encontrado nas águas do Delta do Parnaíba. Ao lado, no cais do porto de Luis Correa, o biólogo Mário Magalhães Neto entrevista o pescador Francisco Damasceno Santiago.

“Os botos são muito inteligentes. Quando estamos em alto-mar, esperando para recolher as redes, alguns deles chegam bem perto do barco, põem a cabeça fora d’água e passam um tempão olhando para nós com a mesma curiosidade com que olhamos para eles. Certa vez, ajudaram a salvar um pescador do meu barco. Ele caiu na água quando já era noite escura e voltávamos para o porto. A bordo, todo mundo dormia, menos o piloto, que não viu nada.

“Horas depois, quando estávamos perto de Luís Correia, nos demos conta de que nosso companheiro desaparecera. Ficamos desesperados e imediatamente voltamos para tentar encontrá-lo. Sem muita esperança, pois nem sequer estávamos certos do rumo a seguir. Foi aí que um grupo de botos-tucuxi pôs-se a nadar junto à proa do barco, como costumam fazer esses bichos. De repente, notamos que eles saltavam no ar e davam uma clara guinada para a esquerda. Alguém gritou: ‘Estão nos indicando a direção correta!’ Viramos à esquerda e os botos pararam de saltar. Algum tempo depois, começaram a saltar à direita, e entendemos que tínhamos saído do rumo certo e deveríamos corrigir a rota segundo a orientação deles.

Ao lado, no sentido horário, Wennys Dean Sousa da Silva, Mário Magalhães Neto, Alexandra Fernandez Costa, Jacqueline de Oliveira Vieira e Geórgia de Oliveira Aragão. Abaixo, Alexandra e Jacqueline dissecam um boto-tucuxi.

 

 

“E assim foi, durante cerca de duas horas. De súbito, eles pararam de saltar e começaram a nadar em círculos. Desligamos o motor do barco e, logo depois, começamos a ouvir a voz do nosso companheiro, vinda de algum ponto na escuridão do mar. ‘Estou aqui, estou aqui. Acudam!’ Chegamos finalmente até onde ele estava, boiando sobre as águas, e o recolhemos ao barco.”

Uma história incrível, confirmada pelos outros pescadores. “E aí”, perguntou Magalhães Neto, “depois de testemunhar fatos como esse, o que você acha: os botos são peixes ou alguma outra coisa?” Santiago acaricia a cabeça do filho, pensa durante algum tempo e responde: “Não, peixe não pode ser. É inteligente demais para ser peixe. Deve ser alguma outra coisa!”

No sentido horário, aula do Procema para crianças das comunidades de pescadores; biólogas cuidam de um jovem cetáceo ferido; trabalho de campo com boto que morreu em rede de pesca e foi atirado à praia pelos pescadores. Na página abaixo , esqueleto de baleia montado no centro de estudos da Ilha do Caju.

O relato de Santiago é apenas um entre os muitos que os pesquisadores do Procema ouvem e gravam a respeito dos hábitos e peculiaridades dos botos, baleias, golfinhos, peixes-boi e outros

habitantes dos mares do Piauí e do Maranhão. Esses biólogos saem cedo de

Parnaíba (PI), munidos de seus gravadores, cadernos de notas e câmeras fotográficas, rumo às pequenas comunidades de pescadores da região. Conversam com eles nas horas em que estão de folga, e às vezes são convidados para acompanhá-los ao alto-mar, durante as pescarias.

“Os pescadores se sentem valorizados ao ver que nós os procuramos e damos importância ao acervo de informações e de experiência que eles carregam”, observa a educadora ambiental Jacqueline de Oliveira Vieira, integrante do Procema. “Chegamos a eles de igual para igual, como especialistas que conversam com especialistas. Frequentamos as casas deles, sentamos no chão, tomamos café, comemos peixe frito, nos tornamos alguém da família. Tudo isso produz um grande efeito na autoestima dos pescadores.”

Na opinião de Jacqueline, esse contato rende dividendos para os dois lados. “Eles certamente aproveitam as informações e as técnicas que procuramos passar para eles. Porém, acho que nós mesmos, pesquisadores, aproveitamos muito mais. Quase tudo que sabemos vem do aprendizado teórico. Mas eles aprendem tudo na prática, e isso faz com que desenvolvam uma sabedoria de valor inestimável.”

Uma equipe de biólogos abnegados (e felizes)

Em Parnaíba, durante uma semana, juntei-me aos pesquisadores do Procema para participar de trabalhos de campo: coleta de vestígios de cetáceos encalhados nas praias, avistamento de animais no mar, visitas a comunidades de pescadores. Todos esses biólogos são jovens, simpáticos, saudáveis e apaixonados pelo que fazem. Como todo biólogo que atua no Brasil, trabalham muito e ganham pouco. Sua profissão é uma espécie de sacerdócio. Mas levam uma vida de sonho para quem tem uma vocação real de atuar em estreito contato com o mundo natural. “Escolhi a biologia por curiosidade e sentimento de contato com a natureza”, diz Geórgia de Oliveira Aragão, encarregada de monitoramento e encalhe de animais. “Trabalho com cetáceos e no contato com as comunidades de pescadores. A boa qualidade de vida que meu trabalho proporciona também foi fator importante na minha escolha.” Mário Magalhães Neto, por seu lado, dá ênfase ao trabalho de contato com as comunidades de pescadores. “As pessoas dessas comunidades são muito carentes de informação e nem sequer conhecem a diferença entre peixe e cetáceo. Apenas sabem que estes últimos ‘são mais inteligentes’.”

Jacqueline de Oliveira Vieira, especialista em educação ambiental, amplia a colocação do colega: “O fator primordial na minha escolha foi a liberdade real que a profissão nos proporciona. Embora tenhamos de adotar metodologias bem precisas, sobretudo para o trabalho de campo, a própria atividade nos deixa livres para tomar atitudes e decisões. Por exemplo, no contato com os pescadores, no ato de colher informações e de ouvir relatos.”

Wennys Dean Sousa da Silva, técnico em geoprocessamento, sintetiza a posição do grupo. “Sou, por enquanto, o mais novo do projeto. Faço a faculdade de engenharia de pesca. Essa área tem pouco ou nenhum interesse em conservação. O que interessa é a produção. Participei da montagem dos esqueletos de cetáceos na Ilha do Caju e comecei a me envolver de um jeito diferente com esse universo. Fui convidado a participar do Procema. Como conciliar conservação e produção? Vou ter de escolher. Mas, com certeza, se for para a produção, ela será sustentável. Acho que a pessoa deve escolher livremente a sua atividade, deve fazer o que a deixa feliz. Não tenho a mínima vontade de ficar trancado num escritório, isolado do mundo. Por isso escolhi uma atividade que proporciona maior liberdade.”

Contatar as comunidades de pescadores é apenas uma das muitas atividades desenvolvidas pelo pessoal do Procema. No Centro de Educação Ambiental da Vida Marinha, na Ilha do Caju, entidade irmã do Procema, já foram montados esqueletos completos de boto-tucuxi (também conhecido como boto-cinza), baleia minke-anã, cachalote, baleia-de-bryde. O Centro é o maior do Nordeste em diversidade de espécies. Na montagem dos animais foi utilizada tecnologia europeia: cabos de aço suspensos e barras de alumínio para sustentar o esqueleto axial. São realizadas visitas agendadas de grupos de crianças e adolescentes.

A pesca do tucuxi é proibida, mas…

O boto-tucuxi, ou boto-cinza (Sotalia guianensis), é um cetáceo encontrado em águas costeiras e estuarinas das Américas Central e do Sul. Dos mamíferos marinhos que frequentam as águas do delta do Parnaíba, ele é o mais numeroso. Possui ventre branco (adultos), com dorso e parte lateral cinza, e chega na maturidade a 2 metros de comprimento. Os botos-tucuxi são polígamos e podem formar grupos com até 90 indivíduos. Pesam em média 50 quilos.

Mamífero situado no topo da cadeia alimentar, o boto-tucuxi come peixes e lulas; estas, por sua vez, alimentam-se dos zooplânctons e estes, dos fitoplânctons. O único predador do boto é o próprio homem – sobretudo porque morre asfixiado em suas redes de pesca – e, eventualmente, quando o animal está machucado ou muito enfraquecido, o tubarão. Mas, em geral, o boto não tem predador natural.

Animais totalmente adaptados à água, muito inteligentes, eles não dormem – “descansam”, reduzindo o metabolismo corporal, quando ficam próximos à superfície, em processo de flutuação.

 

Criado em 2005 por Ingrid Clark, da família proprietária da Ilha do Caju, o Procema/Icep foi contemplado pelo Programa Petrobras Ambiental na seleção pública de 2006. O patrocínio permitiu que a entidade se estruturasse e é vital para a continuidade de seus trabalhos. Desde sua fundação, o Procema vem realizando monitoramentos regulares ao longo do litoral do Maranhão e do Piauí, registrando e informando pescadores e comunidades ribeirinhas a respeito da importância de preservar não somente os cetáceos, mas todo o ecossistema que engloba a região. O Procema tem organizado também seminários, cursos e oficinas, muitas vezes em parceria com as prefeituras dos municípios da região.

Apesar do número ainda exíguo de membros ativos, as ações do Procema na região têm se multiplicado.

Na região de Alcântara (MA), por exemplo, verificou-se que a ocorrência de efeitos causados pela ação do homem, tais como pesca, ruídos de embarcações ou incremento do turismo em pontos de ocorrência dos botos, é muito grande. Os biólogos também constataram uma grande ocorrência de consumo da carne do boto-tucuxi (empregada como isca para captura de tubarão) e retirada dos olhos e das gônadas do animal (órgãos que são utilizados como amuleto). Em decorrência dessas ações predatórias, hoje esse tipo de boto integra a lista dos animais ameaçados de extinção.

Para complicar ainda mais a situação, existe captura acidental e incidental indiscriminada, tanto no Maranhão quanto no Pará. Diante de tal quadro, os biólogos entenderam que é preciso realizar um amplo trabalho de conscientização ambiental junto à população, para evitar a destruição desses animais.

O Procema também fechou parcerias com diversas universidades, entre as quais figuram a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e a Universidade Estadual do Maranhão (Uema), e está costurando outros apoios no setor acadêmico. Alguns estudantes já foram incorporados ao projeto. No momento, seis estagiários encontram-se em ação, cada qual desenvolvendo uma linha de pesquisa voltada para estudar uma atividade específica, principalmente relacionada ao boto- tucuxi

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Progresso, sim, mas de forma ordenada

A bióloga Alexandra Fernandes Costa é coordenadora técnica do Procema. “Na Amazônia trabalhei em dois grandes projetos, sempre ligados a cetáceos e a sirênios. Trabalhei no Museu Goeldi, corri a Amazônia toda. Agora trabalho na região do delta do Parnaíba, que possui pouquíssimos estudos sobre cetáceos. Nosso projeto está centralizado no conhecimentos registros de ocorrências desses animais no Delta.”

Por que isso é tão importante? “Porque, embora o litoral do Piauí seja o menor do Nordeste (apenas 66 quilômetros), ainda não foi objeto de estudos específicos sobre o tema. Os biólogos da nossa região saíam diretamente da escola para dar aulas. Não havia nenhuma possibilidade de pesquisa e de trabalho de campo.”

Ela elogia a relação entre o Procema e o Instituto Ilha do Caju: “É uma oportunidade fantástica ter um instituto (o Ilha do Caju) que proporciona logística, espaço físico e a própria Ilha do Caju, um santuário ecológico absolutamente extraordinário. Trata-se de uma grande ilha, que oferece condições privilegiadas em termos de ecossistemas – é uma microrregião muito importante e em muitos aspectos única no Brasil. Melhor ainda é o fato de Ingrid Clark, da família Clark, proprietária da ilha, identificar o Procema e a Ilha do Caju como partes fundamentais do seu projeto pessoal de vida. Ingrid é a nossa grande idealizadora. A ilha é uma RPPN, uma reserva particular do patrimônio natural. Antes dela não havia na região nada nem ninguém que agregasse forças para um trabalho de grande porte na área ambiental.” Sem a parceria com a Petrobras, o Procema simplesmente não existiria, explica Alexandra. “Graças a esse patrocínio, dispomos hoje de uma boa infraestrutura, uma logística privilegiada, tudo no âmbito do Programa Petrobras Ambiental. Os resultados já alcançados são bem relevantes e serão apresentados em alguns meses. O projeto nos permite manter os olhos voltados para a nossa região. Se o Delta ficar aberto apenas à especulação imobiliária – que aqui chegou como um verdadeiro tsunami de interesses políticos, financeiros e econômicos -, isso significará grandes riscos e preocupações ambientais. Se não houver iniciativas locais de acúmulo de conhecimento e know-how específico a respeito das reais características ambientais do Delta e arredores e das suas condições de sustentabilidade, o risco será ainda maior. Nós, do Procema, também queremos que o progresso chegue, porém de forma ordenada. Se essa ocupação for feita de modo desordenado e predatório, o Delta como um todo será palco de uma catástrofe.”

Ela considera vantagem a pouca idade da equipe: “Isso é muito promissor. Vários outros estudantes vêm à nossa procura em busca de oportunidades de trabalho e de estudos. Isso nos agrada, pois uma das nossas ações é justamente aproximar os meios acadêmicos do Procema, através de ações como minicursos, palestras e encontros.”

Para saber mais

Sites: www.procema.blogspot.com

www.projetobotocinza.com.br

Site em preparação: www.procema.org.br