Certa vez, relembrando seus dias em Paris, o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) disse: “Trabalhávamos de nove da manhã até o meio-dia, quando saíamos para almoçar. Às duas estávamos de volta e ficávamos de prosa com os amigos até as quatro da tarde, quando voltávamos a trabalhar até às oito. Depois do jantar as pessoas vinham nos ver, com hora marcada.”

Um desavisado poderia pensar que o local a que se refere Sartre era a sua casa, ou seu escritório, mas não. O filósofo existencialista, que influenciou a cultura do século 20, referia-se ao Café de Flore, um pequeno estabelecimento localizado no bairro parisiense de Saint-Germain-de-Prés, com mais de mais de 100 anos de história.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Café de Flore serviu como “escritório” para o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (no detalhe).

Não é de hoje que uma das imagens clássicas de Paris é a dos cafés com varandas espalhadas nas calçadas, bons para bebericar ou para ler um jornal. Eles são uma instituição francesa, um espelho do modo de viver do parisiense, e guardam mais de 300 anos da memória da cidade que foi o centro cultural do mundo por séculos. Muitas das reflexões, teorias e idiossincrasias que mudaram a vida moderna nasceram sob o teto desses estabelecimentos charmosos, onde é servida essa bebida energizante que acelerou a roda da história – café.

Entre eles destaca-se logo o Le Procope, inaugurado em 1673 e considerado o primeiro café do mundo. Ele foi o quartel-general de intelectuais como o dramaturgo Molière (1622-1673), o renomado e irônico escritor e pensador Voltaire (1694-1778) e o filósofo iluminista Denis Diderot (1713-1784). Todos eram vistos com frequência no Le Procope, que se orgulha de manter os salões e a decoração que marcaram época. Bastante preservado, esbanjando luxo e um excelente cardápio, o estabelecimento, localizado próximo ao Café de Flore, é hoje um dos pontos turísticos da cidade, atraindo gente de toda parte.

Para homenagear os antigos clientes, cada sala apresenta nas paredes uma frase discretamente estampada, que destaca pensamentos emblemáticos. Na entrada da Sala Voltaire vê-se em francês: “Qu’est-ce que c’est la tolérance? C’est l’apanage de l’humanité” (O que é a tolerância? É o atributo da humanidade), máxima do escritor. Foi com a pregação da tolerância, da liberdade religiosa e do livre comércio que Voltaire influenciou o mundo. Muitos dos seus pensamentos podem ter nascido nas mesas do Le Procope.

Le Procope, inaugurado em 1673, é considerado o “primeiro café do mundo”. Um dos seus frequentadores era Voltaire (abaixo). Os balcões e o interior preservam o “décor” antigo.

Bares modernos

No século 19 o Le Procope ganhou muitos concorrentes, depois da abertura dos grandes bulevares e das esplanadas que mudaram Paris por completo. Uma empreitada de Napoleão III, que resolveu converter a cidade, ainda de ares medievais, ruas escuras e estreitas, em uma metrópole moderna e ampla, tal como a vemos hoje.

A abertura das avenidas fez com que o parisiense fosse para as ruas e, consequentemente, surgissem mais locais de encontro, como cafés. Nessa época, os bairros de Madeleine e Opéra eram os preferidos dos modernos, por serem ícones de novos costumes e ideias.

 

Um dos grandes destaques era o Café de La Paix, fundado em 1862 e que funciona até hoje defronte à Opéra Garnier, a mais importante casa de ópera da França. Hoje, ali se misturam parisienses, artistas e turistas, mas esse também já foi o local predileto de celebridades como Émile Zola (1840-1902), autor do livro Germinal, um dos grandes clássicos da literatura universal, lançador do movimento literário do Naturalismo. Em Germinal, Zola descreveu com realismo e crueza as condições de trabalhadores nas minas de carvão da França e preparou o mundo para mais mudanças na literatura e na história.

Quando o avanço dos grandes bulevares chegou ao bairro de Montmartre, mais distante do centro da cidade, rapidamente o local se tornou reduto dos artistas que fugiam das áreas mais movimentadas e buscavam locais tranquilos para encontros. Com eles vieram mais cafés, e com os cafés, mais encontros, discussões e celebrações que geraram movimentos como o Impressionismo, uma revolução nas artes plásticas.

O Les Deux Magots, no Boulevard Saint-Germain, também já foi quartel-general existencialista. No interior, as esculturas dos dois magos que deram nome ao restaurante.

 

O pintor Édouard Manet (1832- 1883) tinha seu estúdio próximo ao Café Guerbois, que frequentou durante anos, quase diariamente. Ali se encontrava com Auguste Renoir (1841-1919), Paul Cézanne (1839-1906), Edgar Degas (1834-1917) e outros nomes da pintura e da escultura francesa. Entre um gole e outro, os artistas mudaram as formas de ver e de fazer arte. Embora o Café Guerbois hoje já não exista, Montmartre ainda é um bairro frequentado por artistas e recheado de cafés charmosos.

Aflição entre guerras

No início do século 20, Paris começou a se modernizar de novo. Em 1911, o metrô chegou a Pigalle, bairro próximo a Montmartre. Fugindo novamente da agitação, muitos artistas resolveram explorar uma nova área e se mudaram para Montparnasse, do outro lado da cidade.

 

Nas mesas do La Rotonde, Lênin discutia os problemas do mundo, durante horas, e tramava a revolução russa de 1917.

Nesse ínterim, muita coisa havia mudado. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, Montparnasse tornou-se não só reduto de artistas, mas de exilados, de filósofos e de um monte de gente envolvida nas reviravoltas da história. São dessa época cafés como o La Rotonde e o Le Dôme, que tiveram como fregueses assíduos Vladimir Lênin (1870- 1924) e Leon Trotsky (1879-1940), revolucionários russos que passavam horas discutindo os problemas do mundo.

Os dois bares continuam preservados e são grandes atrações. A diferença é que hoje os frequentadores ilustres de outrora são representados por fotos e quadros que ajudam a contar o que ocorreu por ali. No Le Dôme há fotos espalhadas em painéis próximos às mesas às quais sentaram os pintores Salvador Dali (1904-1989) e Pablo Picasso (1881-1973), o fotógrafo Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e o cineasta espanhol, naturalizado mexicano, Luis Buñuel (1900-1983).

Ernest Hemingway passou fome em Paris, mas amava o cordeiro ao curry do La Coupole, que ganhou o nome pela cúpula do seu interior.

Fundado em 1898, o café também funciona como restaurante. Goza de muito prestígio pela excelência dos seus pratos à base de peixes e crustáceos. A decoração art déco, além de preservar o clima de uma época memorável, mantém o ambiente perfeito para se passar horas lendo o jornal, não fazendo nada ou batendo papo com alguém especial.

Cruzando o Boulevard Montparnasse, na outra esquina, chega-se ao La Rotonde, que também foi um ímã da intelligentsia parisiense. Fundado em 1910, guarda as marcas da Belle Époque francesa, movimento cultural ligado à urbanidade e às novas tecnologias, que predominou do final do século 19 até o término da Primeira Guerra Mundial.

Boemia esfumaçada

Por volta de 1920, nasceram o La Coupole e o La Closserie de Lilás, cafés que abrigaram os ideais de jovens escritores que iam a Paris em busca de reconhecimento. Entre eles estava o norte-americano Ernest Hemingway (1889-1961), que passou fome na cidade ao abandonar o jornalismo para tornar-se escritor. Muitos procuraram a inspiração e a efervescência de Paris, como o irlandês James Joyce (1882-1941) e três norte-americanos, o escritor Scott Fitzgerald (1896- 1940), o poeta e crítico literário Ezra Pound (1885-1972) e o cineasta Orson Welles (1915-1985).

 

Famoso por ter despendido grande parte da vida em cafés e bares, Hemingway podia passar fome, mas não deixava de tomar um trago, ou um café, em locais como o La Coupole, que ganhou o nome pela bela cúpula do seu interior. É a sua marca principal, além de uma especialidade gastronômica servida desde 1927: cordeiro ao curry.

Entre as duas grandes guerras, o centro intelectual da capital mudou-se para os cafés do bairro de Saint-Germainde- Prés. Ventilaram-se novas ideias e proliferaram nomes ligados à nova filosofia do existencialismo. Jean-Paul Sartre, sua mulher, Simone de Beauvoir, e amigos do casal eram frequentadores assíduos de dois cafés boêmios e esfumaçados, praticamente vizinhos no Boulevard Saint- Germain: o Café de Flore e o Les Deux Magots.

No canto, à direita, o Café Le Dôme, que atraía pintores como Dali e Pablo Picasso (no detalhe)

O último, fundado em 1887, ganhou o nome por possuir duas grandes estátuas de magos, esculpidas em madeira. No início da Segunda Guerra Mundial, Sartre converteu o Café de Flore em quartel-general. Seu vínculo com o lugar era tão forte que passou a viver boa parte do tempo ali, nas mesas do Flore, como costumava dizer. “Podia parecer estranho, mas o Flore era como um lar pra gente: mesmo quando soava o alarme antiaéreo, nós apenas fingíamos sair dali, subindo na verdade ao primeiro andar, onde prosseguíamos com o trabalho”, disse Sartre, autor de obras-primas como A idade da razão, A náusea e O ser e o nada.

Hoje, o Café de Flore é frequentado por parisienses e turistas, que disputam as mesas do lado de fora, ponto privilegiado para o movimento de um dos mais importantes bulevares de Paris. Cada vez menos gente fuma, mas esse ainda é um lugar perfeito para tomar um café e, entre um gole e outro, pensar que ali se sentaram nádegas geniais.