Toda manifestação espiritual convive com elementos da música e da dança. Os dervixes sufis giram para estabelecer uma maior conexão com o Divino. Os cantos gregorianos inspiram o sentimento místico católico. Os mantras hindus e budistas enfocam a mente para que o poder dos sons eleve a consciência. Em todas as culturas e civilizações existem exemplos de como a arte sonora e rítmica permeia e tempera as tradições religiosas.

Nos cultos afro-brasileiros, a presença da música e da dança é essencial. Não podemos imaginar uma gira de umbanda ou um ritual de candomblé sem atabaques propagando seu ritmo impetuoso ou sem o coro de vozes cantando pontos e ngorossis (orações). “A música transporta o ser humano a uma dimensão espiritual e expande sua consciência”, afirma Carlos Buby, babalorixá do Templo Guaracy de Umbanda. “Na umbanda, a simplicidade melódica e a pureza das letras são expressões divinamente encantadoras.”

Fascinado pela música desde os 9 anos, quando ganhou um carrinho de plástico por ter vencido um festival de calouros em Santo Amaro (bairro de São Paulo), Carlos Buby esperou meio século para realizar seu sonho: gravar suas próprias composições. O CD “Terra de Deus Repentista” , com 15 faixas de sua autoria, foi lançado em dezembro, em um show no Sesc Pompéia, na cidade de São Paulo.

Cerca de 600 pessoas lotaram a choperia do espaço para acompanhar o ritmo contagiante de Buby. Seu repertório inspirou-se tanto na umbanda como nos contrastes de sua terra natal, o sertão nordestino. O resultado é uma rica mistura, revelando um música popular vibrante, temperada com ritmos africanos, e que passeia do xote ao baião, da balada ao samba.

Carlos Buby nasceu em Alagoas como o menino nordestino Sebastião Gomes de Souza, na fazenda Belo Horizonte, ex-propriedade da usina de cana Santa Terezinha, em Colônia Leopoldina. Com 7 anos, sua família trocou Alagoas por São Paulo. Viveu sua infância e adolescência na Vila das Belezas, em Santo Amaro.

Foi nesse bairro paulistano que o jovem artista compôs sua primeira música (“Negro, que Tens Para Estar Triste?”), aos 15 anos. “Não tinha instrumento, batucava na mesa para dar o ritmo e guardava a melodia na memória”, diz. Marcado pelas injustiças sociais do Nordeste e pela opressão do regime militar instaurado em 1964, o conteúdo de suas letras era político. Mesmo sendo jovem, sua alma já se preocupava com o sofrimento humano.

O RESULTADO de seu repertório é uma música vibrante, temperada com RITMOS AFRICANOS, e que passeia do xote ao baião, da balada ao samba

Em 1967, participou do Primeiro Festival Colegial da Música Popular Brasleira, promovido pelo radialista Mário Ferraz. O prêmio era promissor: um elepê seria gravado com as 12 melhores canções. Dentre as 600 músicas inscritas, duas eram de sua autoria. Ambas foram premiadas: “Onde Está Deus que Não Vê?” ganhou o primeiro lugar e “Última Razão” levou o terceiro.

Mas seu tom não estava de acordo com a ditadura. “Fui obrigado a levar minhas músicas para a censura antes da gravação. Quando voltei para buscar a aprovação, fui retido e interrogado”, recorda ele. Depois de quatro horas, as autoridades o liberaram. Porém, suas músicas foram proibidas. “Fui fortemente encorajado a não compor mais letras desse gênero. Fui embora calado. Essa castração gerou um período de frustração e sofrimento que me levou à busca da espiritualidade.”

Buby, no entanto, nunca abandonou a música. Inspirado pela vanguarda da época – Chico Buarque, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Vinícius de Moraes -, continuou compondo músicas reivindicatórias, como “Terra de Deus Repentista”, que dá nome ao recém-lançado CD.

Nos anos 70, montou o conjunto “Marechais da Vila” – mais uma alfinetada nos generais. O grupo da Vila das Belezas cantava sambas na noite paulistana. Mas seu sonho continuava ser gravar suas próprias músicas.

Carlos Buby fundou o Templo Guaracy em agosto de 1973. “Em 1977, parei de me apresentar como músico e passei a me dedicar integralmente à umbanda. Com o crescimento do templo, pensei que jamais poderia retomar a carreira artística”, conta.

Em 1985, entrou em cena Mario Campanha, maestro e produtor musical. Casado com a Mary da dupla sertaneja Irmãs Galvão, o maestro passou a ficar de olho nas composições do Buby. Nos anos 90, as irmãs gravaram “Coração Laçador”, de sua autoria, inspirada na vida dos boiadeiros. O sucesso da composição levou Campanha a solicitar outra música para ele, “Menino Canoeiro”.

Em dezembro de 2006, durante a Festa Cigana do Templo Guaracy, no Espaço Mataganza, em Embu (SP), Buby encarou o palco novamente, pois se sentia em casa. Ao lado de figuras como Jair Rodrigues e Renato Teixeira, ele soltou a voz em público. “Quando Buby canta, seu sentimento é verdadeiro. A interpretação e o conteúdo das letras chamaram minha atenção”, afirma Mario Campanha. “Detectei a grandeza de sua musicalidade.”

Carlos Buby no palco com o coro e, na extrema direita da foto, as Irmãs Galvão; no centro, a capa do CD “Terra de Deus Repentista”; e o compositor na rede, no Sítio da Mataganza, no Embu (SP), sede do Templo Guaracy de Umbanda, do qual ele é babalorixá.

Uma nova parceria nasceu entre ambos. Alguns meses depois estavam no estúdio de Campanha para gravar os 15 fonogramas de “Terra de Deus Repentista” . O maestro desenhou os arranjos e fez a produção e direção musical. “Foi um casamento perfeito entre meus conhecimentos musicais e os princípios da umbanda, trazidos por Buby”, diz Campanha. “Escolhemos os instrumentos de acordo com as características dos orixás e seus respectivos elementos. Usei cravo para realçar a dimensão infantil em “Janaína” e, em “Dono das Matas”, harpa para sublinhar as emoções”, acrescenta.

Buby considera que tem um compromisso com a proteção da natureza. “Na umbanda, aprendemos a reverenciar o mundo natural de forma sagrada e não só biológica. Não somos observadores com a pretensão de administrar a natureza”, diz. Inspirado nesses conceitos, ele compôs “Dono das Matas”.

“Escrevi essa canção no fim dos anos 70. Infelizmente, mesmo depois de 30 anos, a música é atual porque as florestas continuam sendo destruídas.” O apelo na letra é óbvio: “Não botar fogo nas matas porque nas matas tem morador. Deixe a árvore nascer, deixe o pássaro viver. O verde é nossa esperança e a esperança não se deixa morrer.”

“Feiticeiro Negro” encerra o álbum “Terra de Deus Repentista” e aborda o preconceito sofrido pelos seguidores das tradições afro-brasileiras. Seu refrão, consagrado ao orixá Obá, é um chamado à compaixão e à liberdade de expressão. O videoclipe recebeu mais de 15 mil visitas no site YouTube. “A voz grave de Buby é afinada e a música, singela e direta. Toca em assunto importante: a intolerância religiosa”, afirma o crítico musical Luis Antonio Giron.

Entre o babalorixá e o artista parece não existir conflito. “Na década de 70, eu queria ser famoso e buscava apenas o sucesso. Hoje, com 58 anos, vejo a música como uma forma de transcendência espiritual. Para mim, um show é como uma gira, um ritual que alimenta as pessoas. Não somos capazes de viver sem arte”, conclui Buby.