Em frente ao pequeno aparelho de som, Helena responde à música sevilhana com graciosos Ee empolgados movimentos. Ergue os braços, gira o corpo, movimenta os pés num sapateado (se é que essa palavra pode ser usada para pés descalços). Acomodado sobre CULTURA seus ombros, um xale lilás com fios prateados e leves franjas: é o seu traje cigano. Helena ainda não completou dois anos, mas já reage instintivamente à musicalidade flamenca. Já carrega essa paixão irresistível que torna o flamenco uma arte universal.

Quem duvida, que assista a um legítimo baile: sobre o tablao, os tacones marcam o ritmo. Na agilidade dos pés, nas ondulações dos quadris, na firmeza dos movimentos dos braços ou na intensidade do olhar, o corpo obedece, mais do que ao som da guitarra, a uma expressão interior, como se os bailaores estivessem tomados por uma espécie de embriaguez. E as mãos, como se lembrassem da vida que um dia tiveram num remoto acampamento cigano, fazem sua própria coreografia. Há algo de ancestral que desperta em quem assiste sentimentos diversos. Há quem sorria, há quem tenha vontade de chorar, há quem tenha ímpeto de também dançar. Mas não há quem fique indiferente.

Enquanto expressão cultural definida, o flamenco pode ser considerado relativamente recente, datado oficialmente do final do século 18. Mas suas raízes são, sem dúvida, muito antigas. Pela mestiça Andaluzia, sua origem inegável, passaram pés gregos, romanos, fenícios, persas… Entre as mais representativas influências estão a dos judeus e a dos árabes. Os primeiros, mestres dos cantos litúrgicos, também influenciaram a dança.

Os árabes, que por séculos dominaram a Península Ibérica, não podiam deixar de dar sua contribuição. Basta uma olhada numa tradicional dança árabe para perceber o quanto alguns movimentos, principalmente os femininos, se assemelham. E, na base de sua formação, está a rica cultura dos ciganos, que por um longo período se estabeleceram na Andaluzia.

Alguns locais de São Paulo apresentam bailes de flamenco, como o Café Aman, em Moema. Na página ao lado, Pepe de Córdoba e Débora Nefussi.

DESSA COMPLEXA conjunção cultural se chegou, finalmente, ao flamenco, arte que hoje alcançou a identificação em quase todo o mundo, como no Brasil, especialmente em São Paulo. Atributos que valem para a dança e para a música. Porque o flamenco, para ser completo, somente pode ser definido por uma tríade artística: el cante, el baile e el toque.

O lamento, às vezes quase choro, do cante flamenco, é o mais tradicional dos três e talvez o mais difícil de aprender por quem não nasceu e viveu no seio dessa cultura. O cante sempre foi uma tradição oral, ensinada de geração para geração, pessoalmente. Isso explica por que ele tem raros representantes não-espanhóis. Para ser um cantaor legítimo, é preciso estar impregnado da cultura andaluza.

Em 1922, o escritor Federico Garcia Lorca, um amante dessa arte preocupado com a redução do número de cantaores, promoveu um concurso, junto com o compositor Manuel de Falla. Mas o que é parte indispensável do flamenco, desde os seus primórdios, é a emoção. Intenso e, muitas vezes, até violento, tornou- se universal por tocar questões profundamente emocionais. No flamenco, a técnica apurada exige a parceria da passionalidade.

Pepe de Córdoba, el duende

Pepe nos recebe em seu apartamento em São Paulo, poucos dias antes de viajar para a cidade mineira de Tiradentes. Objetos de arte e antiguidades decoram a sala. Pepe tem cabelos grisalhos, usa óculos de lentes pequenas e é extremamente gentil. Nos seus gestos, transparece uma cortesia inata. Quem o vê assim não imagina que esse homem traz dentro de si um “selvagem”. É ele quem diz: “Quando estou no palco, viro um bicho, um touro bravo.” Pepe de Córdoba, quando sobe ao palco, é para dar expressão a uma das mais fascinantes artes do mundo contemporâneo: o flamenco. Em São Paulo, foi um dos fundadores do Centro Flamenco, instalado na Rua dos Ingleses, um local onde não só se aprendia a dança e a música, mas se reverenciava a cultura andaluza. No rastro de seus passos, muitos bailaores e aprendizes compreenderam que ser flamenco é mais do que aprender os movimentos. É uma questão de personalidade, que o mestre define, um tanto sério, um tanto divertido: “O flamenco não é uma pessoa normal.”

Uma herança, sem dúvida, dos ciganos. Um povo que deixou a Índia por volta do século 10, possivelmente fugindo da chegada dos muçulmanos, e chegou à Europa em busca de segurança. O que encontrou foi intolerância, que se apresentou não só na forma de preconceitos e perseguição, mas até de escravidão.

Ao chegarem à Andaluzia, os ciganos encontraram a diversificada cultura local, mestiça e rica, e contribuíram com a sua melancolia e paixão, criando cantos de lamento e amor. Ou, como diz Pepe de Córdoba, provavelmente o mais representativo bailaor em atividade no Brasil: “O flamenco é uma arte única, que mexe com todos os sentimentos humanos, a dor, a melancolia, a paixão, a euforia, a alegria.”

NASCIDO NA ESPANHA, Pepe veio para o Brasil ainda menino, numa trajetória comum a muitos imigrantes europeus que se estabeleceram em São Paulo. Aos 5 anos de idade, teve sua primeira aula de baile flamenco. Da mesma forma que sempre voltou para o país natal, em busca de identidade e aprimoramento profissional, a ponto de nunca ter perdido o sotaque, Pepe também não perdeu a passionalidade obrigatória dos que se dizem flamencos. “Quando subo no palco, posso sentir a minha corrente sangüínea de forma assustadora.”

No Clube Hispano, localizado no Ipiranga, festas com músicos, cantaores e bailaores acontecem para celebrar a presença de imigrantes espanhóis no Brasil. Abaixo, bailaora bate palmas e se prepara para entrar no palco.

A essa transmutação, a tradição batizou de “el duende”, para indicar que os artistas entram em um tipo de transe, como se estivessem tomados espiritualmente. Mas não basta simplesmente dançar ou cantar. Estar tomado por “el duende” é um momento extremo, quando os artistas se entregam tão completamente à paixão que alcançam um estado interior intenso e profundo. “Em alguns momentos, se chega a um estado de grandeza, de pureza, de emoção… Como uma forma espiritual de ser”, completa Pepe.

Dessa maneira, o baile, que se iniciou junto com o cante, nas raízes do flamenco, apresenta ainda mais variações porque, além dos passos definidos, conta com a contribuição pessoal do bailaor. O que Débora Nefussi, bailarina e proprietária de uma academia de flamenco em São Paulo, define como determinado pelo “código corporal”. “Eu, por exemplo, fiz balé clássico, faço ioga. Essas coisas estão incorporadas no meu código corporal, não há como tirá-las de mim.”

Ana Esmeralda, a diva

É difícil olhar para Ana Esmeralda e não percebê-la como a personalização de Carmen, personagem da ópera de Bizet. Com sua postura firme, seu olhar intenso, essa mulher, hoje com 75 anos, é o que podemos chamar de “diva”. Sevilhana nata, veio para o Brasil na década de 50. Além de bailaora, também atuava como atriz. Na sua academia de flamenco, numa tranqüila rua próxima à avenida Paulista, outras professoras participam das aulas. Mas a aura que emana de sua figura parece dominar o ambiente.

Ana Esmeralda nos conta que o flamenco é considerado uma atividade capaz de estimular os dois lados do cérebro ao mesmo tempo. Enquanto ele exige a racionalidade do hemisfério esquerdo para o uso da técnica, ativa também o hemisfério direito, mais emotivo. A diva fala com conhecimento de causa: quem tem o privilégio de vê-la bailando – com sua expressão apaixonada, gestos marcantes e técnica precisa – compreende bem essa dualidade.

 

COMPLETANDO A TRÍADE está o toque, o mais recente elemento incorporado à arte. O toque é como chamam a presença da guitarra. É certo que atualmente muitos outros instrumentos podem ser encontrados nas apresentações de flamenco contemporâneo, mas a base tradicional, que substituiu o primitivo alaúde, é a guitarra espanhola. Partituras ajudam na disseminação das músicas e permitem que o flamenco influencie outras formas musicais. Mas o que revolucionou o flamenco nas últimas décadas foi justamente o contrário: a influência que o toque recebeu.

Um dos mais notáveis responsáveis por essa mudança foi o guitarrista Paco de Lucía. A partir dos anos 70, ele se dedicou a estudar músicas de outros lugares, inclusive do Brasil, e se permitiu incrementar seus toques flamencos. Como o flamenco é fortemente rítmico, mas pouco rico em harmonia e melodia, a inserção de outros elementos só enriqueceu a tradição.

Outros nomes, como Camarón de la Isla e Antonio Gades, ajudaram a tornar a música ainda mais popular pelo mundo. Em São Paulo, o músico e dançarino Paulo dos Santos dedica-se a unir a cultura brasileira e a espanhola num flamenco contemporâneo, fechando um ciclo que tem como ponto principal manter viva a alma dessa arte que nasceu na Espanha, mas que ressurge no Brasil.

ISSO NOS LEMBRA que o flamenco não está cristalizado: de uma arte que surgiu do movimento – seja de populações, seja de diversificação cultural – não se pode esperar que se torne estanque. No seu berço espanhol ou em outras terras para onde imigrantes levaram sua cultura, o flamenco continua evoluindo. Sem perder, jamais, sua apaixonada – e apaixonante – alma cigana..

Débora Nefussi, a brasileira

Alta, pele clara, cabelos escuros presos, Débora Nefussi fala de modo tranqüilo sobre sua arte. Algo intenso parece se esconder por trás de sua figura serena. Depois de anos se dedicando ao aprendizado do baile flamenco no Brasil, foi fazer uma temporada de estudos em Buenos Aires, na Argentina. Já de cara percebeu que além de nossas fronteiras as coisas eram diferentes.

Mudou-se então para a Espanha, onde estudou na academia Madre de Diós, e surpreendeu-se ao perceber como o flamenco ensinado no Brasil estava defasado. A explicação é simples: enquanto os mestres espanhóis que estavam ensinando o baile no Brasil mantinham a tradição que aprenderam na Espanha, antes de emigrar, no país de origem o flamenco continuou se desenvolvendo e admitindo influências de outras fontes artísticas. O que Débora definiu assim: “O flamenco está evoluindo, não tem como deixá-lo numa caixa, parado.”

Isso equivale a dizer que, a cada baile, essa arte se reinventa, incorporando características de cada praticante, em várias partes do mundo. Débora lembra, por exemplo, que, por mais que tenha estudado no Exterior, carrega sempre sua identidade nacional. “Sempre serei uma brasileira dançando flamenco.”.

Serviço

Associação de Cultura e Arte Flamenca do Brasil – Alameda Sarutaiá, 113 B, Jardins, São Paulo, SP, tel.: (11) 3884-4430, site: www.anaes meralda.com.br.

Capote Valente, 109, Pinheiros, São Paulo, SP. Associação Cultural de Dança Espanhola Cuadra Flamenca – Rua Luís Murat, 386, Vila Madalena, São Paulo, SP, tels.: (11) 3814-3141 e 3815-9596.