Há duas maneiras de olhar para o desenvolvimento no mundo contemporâneo. Uma, profundamente influenciada pelo crescimento da economia e pelos valores que lhe estão subjacentes, se refere ao desenvolvimento essencialmente como uma expansão rápida e sustentada do produto nacional (ou interno) bruto per capita, talvez qualificada por alguma exigência de que os frutos dessa expansão alcancem todas as camadas da comunidade. Vou chamá-la de “visão de desenvolvimento com opulência”. Nessa abordagem, os valores e a cultura não têm lugar fundamental.

Uma segunda visão, que contrasta com a anterior, vê o desenvolvimento como um processo que aumenta a liberdade dos envolvidos para perseguir quaisquer objetivos que valorizem. Nessa, que chamarei de “visão de desenvolvimento com liberdade efetiva”, a importância da opulência econômica está submetida ao critério de valores das pessoas envolvidas, e é, portanto, culturalmente condicionada.

Em consonância com essa visão do desenvolvimento, a expansão da capacidade humana pode ser descrita como a característica central do desenvolvimento. O conceito de “capacidade” de uma pessoa pode ser encontrado em Aristóteles, para quem a vida de um indivíduo podia ser vista como uma sequência de coisas que ele faz, ou estados de ser que ele alcança, e que constituem uma coleção de “funcionamentos”. A “capacidade” refere-se às combinações alternativas de funcionamentos a partir das quais uma pessoa pode escolher. Assim, a noção de capacidade é essencialmente um regime de liberdade – o leque de opções que uma pessoa tem para decidir que tipo de vida levar. A pobreza, nessa visão, não reside apenas no estado empobrecido em que uma pessoa pode realmente viver, mas também na falta de oportunidade real – imposta por constrangimentos sociais, bem como circunstâncias pessoais – para escolher outros tipos de vida. Mesmo baixos rendimentos, bens escassos e outros aspectos do que em média é visto como pobreza econômica são relevantes em última instância, por conta do seu papel na redução de capacidades (isto é, em restringir severamente as oportunidades das pessoas para levar vidas valorizadas e valiosas).

 

A aplicação dessa visão mais ampla de desenvolvimento implica, assim, hipóteses específicas sobre os valores que as pessoas têm motivo para estimar. Os economistas que estudaram esse problema têm estado particularmente atentos a indicadores de qualidade de vida tais como longevidade, boa saúde, alimentação adequada, educação básica, liberdades políticas e sociais básicas e ausência de desigualdade de gênero.

 

A pobreza pode residir na falta de oportunidade para escolher outros tipos de vida

 

Essa abordagem, baseada nos valores das pessoas, difere do radical julgamento a priori implícito na visão “opulenta” de desenvolvimento. Se, dada a escolha, as pessoas preferissem ter vidas mais longas e livres de doença, com mais autonomia, a ter um maior nível de PIB per capita, então a visão de “liberdade efetiva” de desenvolvimento poderia ser aplicada a seu caso, mas não a visão “opulenta” de desenvolvimento.

Na visão opulenta de desenvolvimento, o foco está inflexivelmente no crescimento dos rendimentos. Teóricos econômicos clássicos, de Adam Smith a John Stuart Mill, realmente escreveram muito sobre o aumento da renda real per capita, mas viram a renda como um dos diferentes meios para finalidades importantes, e discutiram exaustivamente a natureza dessas finalidades – muito diferentes da renda.

 

Até pouco tempo atrás, a visão de desenvolvimento predominante no mundo privilegiava a pujança da economia e os valores que lhe são subjacentes, como os artigos de luxo.

 

Smith, Mill e outros autores clássicos estavam profundamente preocupados com a ideia de que valorizamos muitas outras coisas além de renda e de riqueza, as quais se relacionam a oportunidades reais para levar os tipos de vida que valorizaríamos viver. Seus escritos revelam um grande interesse na importância fundamental da nossa habilidade de fazer as coisas que valorizamos e temos motivo para valorizar. Eles fizeram comentários bem extensos sobre a relação entre esses temas, por um lado, e renda, riqueza e outras circunstâncias econômicas, por outro, e tinham muito a dizer sobre as políticas públicas que apoiam e promovem as finalidades mais básicas nas quais podemos optar por nos concentrar.

 

Avaliando o crescimento econômico

Na visão opulenta do desenvolvimento, o papel da cultura é puramente instrumental, ajudando particularmente a promover um rápido crescimento econômico. A questão que emerge é: o crescimento econômico pode ser avaliado visando a si mesmo, levando assim ao ocultamento daquelas coisas (incluindo a cultura) que promovem o crescimento? Ou o próprio crescimento econômico é um instrumento, com menos crédito para um papel fundamental do que os aspectos culturais da vida humana podem ter? É difícil pensar que as pessoas têm uma boa razão para valorizar bens e serviços independentemente do que eles fazem em prol de nossa liberdade de viver de uma forma que valorizaríamos. Também é difícil aceitar que a cultura pode ter um papel meramente instrumental. Certamente, o que temos motivo para valorizar deve ser ele próprio uma questão de cultura, e, nesse sentido, não podemos reduzir a cultura a uma posição secundária como uma simples promotora do crescimento econômico. Como podemos fazer nossa avaliação fundamentada ficar completamente inútil?

Assim, é impor tante admitir as amplas funções instrumentais da cultura no desenvolvimento, mas também reconhecer que a cultura não pode ser reduzida a essas funções. A cultura também desempenha, por exemplo, um papel intrínseco na avaliação do processo de desenvolvimento econômico, bem como na criação de condições para objetivos menos imediatos, tais como manter o ambiente e preservar a diversidade das espécies.

A cultura não se limita ao papel de promover o desenvolvimento econômico

 

Alguns parâmetros culturais podem ajudar – e outros irão dificultar – o cumprimento desses objetivos, e temos razões para valorizar aquelas atitudes e características culturais que estimulam essa concretização. Mas, quando nos voltamos para a questão mais básica, ou seja, por que se concentrar nesses objetivos, a cultura deve aparecer não como uma serva das finalidades, mas como a base social delas. Não podemos começar a compreender a assim chamada “dimensão cultural do desenvolvimento” sem tomar conhecimento de cada um desses dois papéis da cultura.

O desenvolvimento cultural que o estudo possibilita é indissociável do desenvolvimento em geral. Quem está privado da oportunidade de compreender, treinar e expandir sua criatividade tem uma dificuldade considerável para desenvolver-se.

 

Um papel fundamental

Desde que a linguagem da “sustentabilidade” se tornou comum na literatura do desenvolvimento, não surpreende que a frase “desenvolvimento culturalmente sustentável” tenha surgido. É esse o rumo certo a seguir, ao afastar-se de uma visão puramente instrumental da cultura no desenvolvimento?

Há duas grandes desvantagens em usar a linguagem dessa forma. Primeiro, ela ignora o papel constitutivo da cultura. Se a cultura é só para fazer a “sustentação”, ainda temos de perguntar: o que está sendo sustentado? Concentrar-se em “desenvolvimento culturalmente sustentável” significa alienar a cultura de seu papel fundamental no sentido de avaliar o desenvolvimento e tratá-la apenas como um meio de sustentar o “desenvolvimento” – não importa como esse conceito é definido. Isso é, em outras palavras, um aviltamento da cultura, dando-lhe o status decorativo de um instrumento exaltado no “desenvolvimento” sustentável, definido de forma independente.

O segundo problema vem de uma direção diferente. A cultura admite dinamismo, evolução e refinamento. Ela tem mudado ao longo dos séculos em todos os países do mundo. A retórica de “sustentar” – em oposição a ter liberdade para crescer e se desenvolver – enquadra o debate cultural em termos prematuramente conservacionistas. Há uma desanalogia com o ambiente, aqui. Quando essa retórica se volta para o ambiente natural, não tentamos aprimorar o que de melhor a natureza nos deu; tentamos “preservar” o que temos e, talvez, voltar ao que tínhamos antes. Mas a cultura é a base de nossa criatividade e nosso progresso. Preservar é um papel demasiado fraco para ela desempenhar no desenvolvimento. Uma vez que mudamos nossa atenção do ponto de vista puramente instrumental da cultura e aceitamos seu papel construtivo e criativo, temos de ver o desenvolvimento em termos que incluem também o desenvolvimento cultural.

Os três papéis da cultura

A cultura está envolvida com o desenvolvimento de três maneiras bastante distintas, embora interligadas.

Papel constitutivo – O desenvolvimento no sentido mais amplo inclui o desenvolvimento cultural. O desenvolvimento cultural é um componente essencial e indissociável do desenvolvimento em geral. Se as pessoas estão privadas da oportunidade de compreender e cultivar sua criatividade, isso, em si, é um entrave para o desenvolvimento (não apenas porque pode prejudicar o crescimento econômico, ou algum outro objetivo externamente especificado). A educação básica é, portanto, importante, não só pela ajuda que pode dar ao crescimento econômico, mas porque é parte essencial do desenvolvimento cultural.

AMART YA SEN

Filósofo indiano e Prêmio Nobel de Economia em 1998, elaborou em seus trabalhos o conceito de que o desenvolvimento de um país está fundamentalmente ligado às oportunidades que ele proporciona a seus habitantes de fazer escolhas e exercer sua cidadania.

 

 

Papel avaliatório – O que valorizamos pode, em última instância, ser influenciado pela cultura. Não há nenhum valor externamente santificado relativo ao crescimento econômico ou a qualquer outro objetivo, e as coisas que valorizamos intrinsecamente refletem o impacto de nossa cultura. Mesmo se as mesmas coisas são valorizadas em diversas sociedades diferentes (se, por exemplo, vidas mais longas e felizes, sem problemas de saúde, são procuradas em várias sociedades muito diferentes entre si), isso não faz delas independentes de valores ou culturas, mas apenas indica a congruência das razões de avaliação em sociedades distintas.

Papel instrumental – Não importa quais objetivos valorizemos, sua busca é, em certa medida, influenciada pela natureza de nossas culturas e éticas. Embora a cultura não se restrinja a isso, não devemos ignorar o fato de que os parâmetros culturais de fato têm, inter alia (entre outras coisas), fortes papéis instrumentais. Isso se aplica não apenas à promoção do crescimento econômico, mas também à realização de outros objetivos, tais como o aumento da qualidade de vida.

A liberdade é central para a cultura, e, em particular, a liberdade de decidir o que temos razão em valorizar, e que vidas temos razão para procurar. Todos os papéis da cultura – instrumental, avaliatório e constitutivo – dizem respeito, em última instância, a essa liberdade.