Se você gosta de ópera e deseja assistir às obras de Wagner no Festival de Bayreuth, na Baviera, tem de encarar uma longa fi la. Para acompanhar uma edição anual do evento realizada todo verão é preciso se inscrever com um ano de antecedência e torcer: como há muito mais candidatos do que vagas, a espera por um ingresso pode durar dez anos.

Só para comparar, os fãs brasileiros de Lady Gaga, uma das estrelas da atualidade, interessados em assistir ao seu show de 2012 no país compraram ingressos em cima da hora sem problema. A três dias do início da turnê, metade das entradas estava encalhada para as apresentações em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo.

Talvez você não goste de música erudita, mas com certeza já escutou alguma música do compositor Richard Wagner (1813-1833). A cena do ataque de helicópteros norteamericanos a uma vila vietnamita, ao som de “A Cavalgada das Valquírias” (trecho do início do ato III da ópera A Valquíria), no fi lme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, é um dos tributos mais famosos ao espírito wagneriano. O mesmo tema também surge em desenhos animados, como Pernalonga e Pica-Pau, e em jogos de computador.

Não faltam referências ao último grande compositor romântico no imaginário pop. Guardadas as devidas proporções, Wagner compôs uma obra permanente, com hits cultuados há 200 anos, sempre contraposta à sua fi gura controversa. Defensor de ideias antissemitas, dono de uma personalidade difícil e de um caráter egocêntrico, o mais celebrado músico alemão é também o mais contestado.

Mito alemão

Homenagens como selos e moedas comemorativos, estátuas e montagens de peças dividem espaço na Alemanha com críticas inflamadas ao músico. Entre esses, chama a atenção o livro lançado em 2013 por seu bisneto, Gottfried Wagner, Du sollst keine anderen Götter haben neben mir (“Não adorarás outros deuses diante de mim”, em tradução livre), que remete a um antigo mandamento cristão. Gottfried acusa o bisavô de ser narcisista, antissemita e misógino. Numa entrevista recente, o autor afirmou que Wagner foi idealizado por muito tempo e considerado intocável, o que é um erro.

Odiado e amado, Wagner cunhou, por meio de suas óperas, uma identidade para a cultura alemã, baseada em associações de mitos gregos à mitologia nórdica. Também escreveu artigos para a imprensa carregados de preconceito. Em um ensaio intitulado Judaísmo na música, discorreu sobre a suposta má influência semita na música da época e chamou os judeus de “ratos” e “vermes”. Cinquenta anos após sua morte, suas ideias também inspiraram o nazismo de Adolf Hitler, seu grande admirador. Descendentes de Wagner, como a nora Winifred, mantiveram relações próximas ao Führer, que sempre apoiou o festival de Bayreuth, cujo teatro foi idealizado e criado pelo compositor.

As declarações preconceituosas e a personalidade autoritária de Wagner não são novidade. Todo grande artista é megalomaníaco. A noção de que suas ideias são equivocadas no que diz respeito a judeus e mulheres costuma ser ponto pacífico entre admiradores e críticos. A discussão maior gira em torno da separação entre o homem e o artista, defendida pelos admiradores do seu legado musical.

“Wagner não era nazista. O nazismo aconteceu meio século depois da sua morte. Ele podia ter pensado duas vezes antes de escrever o que escreveu, mas o ser humano execrável não tem nada a ver com o compositor”, defende André Heller-Lopes, diretor cênico das montagens de A Valquíria e O Ouro do Reno, que serão exibidas nos teatros municipais do Rio de Janeiro (em julho) e de São Paulo (em novembro). Primeiro brasileiro a dirigir essas óperas, Heller-Lopes é judeu.

Um dos casos mais emblemáticos de defesa da força de Wagner é o do maestro Daniel Barenboim, judeu argentino, primeiro a reger uma ópera do compositor em Israel, em 2001, 53 anos depois de suas obras terem sido banidas do país. Na ocasião, Barenboim foi vaiado e acusado de “fascista” por parte da plateia. Mas também foi ovacionado pelos que permaneceram. Posteriormente, teve de lidar com ataques do então primeiro-ministro de Israel, o direitista Ariel Sharon, e com ameaças de ser banido de futuros festivais no país. Em sua defesa, o maestro argentino afirmou que era preciso separar a opinião política de Wagner da sua obra, que a transcende.

O crítico americano Alex Ross, da revista The New Yorker, conta uma história sobre o deslumbramento musical de outro fã avesso à personalidade do compositor. O revolucionário alemão naturalizado americano Carl Schurz, ex-general do Exército da União durante a Guerra Civil americana e senador eleito em 1868 pelo Estado do Missouri, guardou impressões pouco lisonjeiras de um encontro com Wagner, em Zurique, na Suíça. “Excessivamente presunçoso. Arrogante, dogmático e repelente”, foram os adjetivos atribuídos ao compatriota. Contudo, em suas memórias Schurz relata seu encantamento com a sua música. Para ele, assistir à ópera Parsifal, em Bayreuth, gerou a sensação de experimentar “o paraíso que imaginara quando criança”.

Assim como Bach e Beethoven, Wagner foi um gigante que mudou as regras da música e da ópera. “Wagner levou a música a um extremo tão longínquo que deixou os teóricos em uma encruzilhada, obrigando-os a pensar em novas saídas”, resume Luiz Fernando Malheiro, maestro e diretor musical das montagens de A Valquíria e O Ouro do Reno que virão para o Brasil.

Revolução musical

Nascido em Leipzig, em 22 de maio de 1823, Wagner cresceu em um ambiente artístico. Seu padrasto era ator amador de teatro e pintor. Dessa relação íntima com a dramaturgia brotou o interesse por óperas. Contrário à visão dominante, o músico acreditava que as óperas não eram mero entretenimento, mas epifanias, revelações.

Admirador das tragédias gregas, buscou inspiração no gênero para recriar por sua conta lendas germânicas. Além das composições, escrevia as letras e promovia a fusão de música, texto e encenação para dar uma dimensão catártica ao espetáculo – que tratava como “drama musical”. Essa interação entre várias linguagens acabaria adotada pela indústria cinematográfica e pela criação de trilhas sonoras.

Para atingir seu objetivo, Wagner redesenhou os teatros. Suas orquestras deveriam ficar em um fosso, não em evidência, e a sala seria deixada escura, para a total imersão da plateia – configuração mais tarde consagrada. O apogeu do seu projeto musical-cênico foi a construção do teatro de Bayreuth, feito sob medida para suas óperas, onde desde 1876 acontece o famoso festival. A cidade é o epicentro do culto mundial a Wagner.

Somadas ao gênio, as aspirações megalômanas do artista atraíram admiradores e críticos. Entre os detratores destaca-se o filósofo Friedrich Nietzsche, trinta anos mais novo que Wagner, amigo do compositor e de sua esposa, Cosima, filha do pianista húngaro Franz Liszt. Durante algum tempo ambos tiveram afinidades, mas Nietzsche acabou escrevendo um livro contra a influência do artista, O Caso Wagner (1888), no qual afirma que o compositor representava a decadência da cultura alemã, condenando seu rebuscamento, seu cristianismo e seu antisemitismo. Quase meio século depois da sua morte, o caso Wagner permanece aberto. E sua música também.