Uma simbólica pá de cal foi jogada sobre os combustíveis fósseis com a carta de intenções resultante do encontro do G7 (Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Japão e Canadá) finalizado em 8 de junho, na cidade alemã de Garmisch-Partenkirchen. A promessa do grupo de países mais industrializados e desenvolvidos economicamente do mundo é descarbonizar suas matrizes energéticas até 2050 e banir até 2100 o uso de combustíveis fósseis – petróleo, carvão mineral e gás natural –, grandes emissores dos gases que causam o aquecimento global. Com isso se conseguiria evitar um aumento nas temperaturas médias do planeta superior a 2°C, o limite considerado seguro pelos cientistas do clima. Bem-vindos à proposta energética do mundo pós-moderno! Mas será que podemos mesmo respirar aliviados?

O fato de alguns dos líderes mundiais perceberem que há um mundo só e que todos precisam tomar uma atitude global juntos foi um salto importante dado nessa reunião, na avaliação do psicanalista Jorge Forbes, reconhecido estudioso de tendências mundiais. “Eles perceberam que não adianta mais defender seu país e jogar o lixo no país vizinho, porque o lixo volta sobre você. Tem que defender a humanidade”, diz. Na avaliação de Forbes, a postura dos chefes de Estado do G7 exemplifica uma tendência da pós-modernidade, em que os líderes de hoje são muito mais articuladores, enquanto antes liderar era acumular poder. “Não estamos na época das grandes ideias, e sim das grandes convivências. O poder da convivência do grupo é maior que o do indivíduo.”

Segundo o psicanalista, as decisões tomadas pelo G7 respondem ao novo momento da civilização (ver quadro “Futuro solidário”), que pode fazer mais coisas do que quer. Se antes os limites eram dados pelas impossibilidades tecnológicas, por exemplo, hoje temos os meios para exterminar a vida terrestre com uma bomba nuclear. “Na reunião eles puseram um querer acima do que se pode. Podemos extrair mais petróleo e carvão, mas a pergunta é: queremos fazer isso? E a resposta foi ‘não’. Mais do que em outras épocas, o homem tem que fazer um exercício responsável de escolha”, arremata.


A chanceler alemã Angela Merkel e o presidente americano Barack Obama na reunião do G7: acordo histórico

Alexandre Szklo, engenheiro químico e professor do programa de planejamento energético – área em que desenvolveu seu mestrado e doutorado – no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE-UFRJ), concorda que a postura dos EUA, antes resistente a acordos do tipo, está ligada à questão ambiental, mas que aceitar essa negociação agora também está associado à sua posição confortável com o gás, indústria que cresceu exponencialmente nos últimos anos.

“Pela primeira vez os EUA estão se comprometendo com a questão de mudanças climáticas e reconhecendo, como os europeus, que elas são um problema. E isso é bom. Mas é importante lembrar que as empresas de gás têm uma proximidade muito grande com o presidente Barack Obama, democrata, enquanto a indústria de carvão tem proximidade com o Partido Republicano”, avalia. Os republicanos têm maioria na Câmara dos Deputados e no Senado dos EUA, e podem voltar a assumir a presidência do país nas eleições do próximo ano.

Para Szklo, a carta de intenções é tecnicamente factível hoje com o carvão, ainda que, econômica e politicamente, envolva desafios. Sob o ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa, o carvão é a fonte mais poluidora; o gás é a que menos emite; e o óleo está no meio do caminho, mas é o que gera mais produtos, inclusive o próprio gás natural. “Mas, se é factível para o carvão, não pode ser com o gás, porque ele é o principal substituto do carvão, é o combustível de transição. Para banir um será preciso usar o outro”, alerta o professor. 

No caso do óleo, Szklo acredita ser em parte factível para alguns derivados e nada para outros. Ainda que, em médio e longo prazo, a demanda por petróleo tenda a estagnar e depois declinar, seu banimento não parece possível. Ainda não há substituto, por exemplo, para combustíveis de aviões e navios e para fertilizantes e lubrificantes que derivam dele. “O mundo se move com derivados de petróleo.”

 

Alternativas para o futuro

A nova visão de futuro condena ao passado as fontes de energia que hoje respondem por cerca de 87% do combustível consumido no mundo, segundo relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) publicado em junho. O setor energético fica, assim, à frente da agricultura e dos transportes, sendo responsável por mais de dois terços de todas as emissões nocivas. A proposta de transformar suas matrizes energéticas vem atacar essa questão – o Japão, por exemplo, ainda tem como principal fonte o carvão.

“Os dois grandes desafios de todas as revoluções são espaço e tempo. A principal característica dos combustíveis fósseis e do urânio é a grande quantidade de energia estocada em um volume ínfimo e que pode ser controlada”, explica Szklo. O professor faz comparações para exemplificar a baixa capacidade da bioenergia. Com todo o biometano produzido hoje no Brasil em aterros sanitários se conseguiria instalar uma termelétrica de 300 megawatts (equivalente a 1/3 da Usina Santa Cruz, do Rio de Janeiro) a gás natural. No caso do biodiesel, se toda a produção anual mundial de óleos – usados em sabonetes, xampus, na cozinha, como lubrificante – fosse utilizada como combustível, não abasteceria uma semana da frota de veículos a diesel.


Usina movida a carvão: o substituto dessa fonte energética ainda é o gás natural

Já para capturar energia solar é preciso ocupar uma área muito grande e sem controle. Mas uma revolução drástica pode vir de uma bateria barata com capacidade para concentrar essa energia. Passo dado pela Tesla, que recentemente anunciou um primeiro produto doméstico nessa área, com 15,24 centímetros de espessura, 91 cm de largura e 1,22 metros de altura. Mas ainda com precinho amargo: US$ 3.500.

As fontes renováveis e sustentáveis, em geral, ainda são menos eficientes e mais caras, embora os preços estejam ficando mais acessíveis. “Quando a fonte não é fóssil, existe o problema da escala. Como não temos tempo e não há uma solução só – como a bala de prata que mata o lobisomem –, teremos de atirar com várias balas de prata”, afirma Szklo. O gás no lugar do carvão, mais biocombustíveis nos veículos leves e até lidar com a ideia de recapturar parte do CO2 para recolocá-lo no solo são algumas opções apontadas por ele.

Para a organização ambientalista Greenpeace, a questão de escala está mais ligada a práticas de mercado e não depende de novas descobertas. “Descarbonizar também passa pela questão do desmatamento, do uso da terra e até de planejamento urbano”, aponta Pedro Telles, coordenador da campanha de Clima & Energia da entidade. A ONG defende que é plenamente possível zerar o desmatamento sem impactar a produção de alimentos ou na balança comercial brasileira.

Um cenário ideal, para Telles, deveria começar com um proces­so de reflorestamento. Outra possibilidade é a mudança de uma monocultura agrícola industrial, baseada em insumos químicos com alto grau de emissões, para um modelo mais próximo da agricultura sustentável, que pense mais na produção de alimentos do que na de commodities. Além disso, a distribuição de alimentos também teria de ser revista para não se desperdiçar tanto quanto hoje. Já quanto à eficiência energética, reorganizar as cidades para facilitar a mobilidade urbana a pé e por bicicleta reduziria as emissões se conjugada ao transporte compartilhado e coletivo.

“Todas essas técnicas já existem no mundo, mas precisam ganhar escala, ou seja, precisam se tornar dominantes por meio de incentivos e políticas públicas”, afirma Telles. Retirar subsídios dos combustíveis fósseis (veja gráfico à pág. 22) foi uma bandeira levantada pela AIE em junho, mas também depende das decisões que serão tomadas em dezembro na COP21, a conferência do clima que será realizada em Paris. O certo é que, quanto mais recursos forem direcionados com fins sustentáveis, mais possibilidades haverá de se baratear essas tecnologias e de novas soluções serem desenvolvidas para ajudar nessa missão.


Fazenda solar: por enquanto, os principais obstáculos a essa opção energética são a baixa eficiência e a dificuldade de armazenamento

Entre as fontes renováveis já exploradas, as energias solar e eólica são as mais defendidas pelo Greenpeace. A ONG destaca o impacto socioambiental negativo das hidrelétricas e alerta que a energia nuclear embute um risco de consequências trágicas. A disputa pela invenção de energias sustentáveis já começou a rearranjar a geopolítica mundial: a Alemanha lidera o mercado, seguida pela China, que investe alto na produção. “O Brasil está ficando para trás nessa corrida”, alerta Telles. Ou seria mais certo dizer que está correndo no sentido contrário, ao focar no pré-sal?

“Se o preço do petróleo seguir baixo, ficará inviável economicamente explorar as novas reservas. O governo brasileiro deveria rever essa estratégia”, diz o físico José Goldemberg. Para ele, pode-se conceber um mundo livre de combustíveis fósseis, se for basea­do na energia solar. “A grande vantagem da energia solar é que ela é eterna, enquanto o sol estiver brilhando.”


Operários inspecionam a usina de Fukushima após o incidente de 2011: exemplo dos riscos da energia nuclear

Para convencer o Brasil e outros países em desenvolvimento a desistir dos combustíveis fósseis, o G7 promete mobilizar US$ 100 bilhões. “Os sete países do grupo emitem hoje apenas 24% do total mundial. A China emite 22%, mas se comprometeu a não aumentar suas emissões até 2030 e depois reduzir. Mais de 40% das emissões ficam por conta dos países em desenvolvimento, e isso vai ser o mais difícil de reverter”, diz Goldemberg.

A carta de intenções do G7 promete ainda reduzir entre 40% e 70% as emissões de gases-estufa até 2050, em relação a 2010. Mas com uma condição: que os outros países signatários da Convenção do Clima também se comprometam com essa meta. É uma forma de envolver todo o mundo nessa missão, mas deixando uma definição importante para dezembro, na COP21 – ocasião em que deverá ser formulada uma proposta substituta para o Protocolo de Kyoto.

Discussões maniqueístas

“Temos de entender que não há mocinhos nem bandidos completos nessa história”, diz Szklo. Quando o petróleo surgiu no início do século 20 como fonte para força motriz, trouxe benefício socioambiental. Ampliou serviços energéticos, propiciou acesso a veículos motorizados, deu agilidade às ferrovias, permitiu que os novos navios emitissem menos fumaça que os movidos a carvão, poupou a vida de baleias (o óleo desse animal foi substituído pelo querosene) e reduziu o problema do volume de estrume e carcaças de cavalo nas grandes cidades. “Ele foi saudado como vantagem socioambiental e ao mesmo tempo gerava benefícios privados para as empresas e consumidores”, analisa.


A bateria lançada pela Tesla (à esquerda na foto) vai favorecer o uso da energia solar

Antes disso, a troca da biomassa pelo carvão também melhorou a vida na Europa pós-industrial. Muita gente morria intoxicada dentro de casa, algo que ainda acontece hoje. No Brasil, 7 milhões de residências ainda usam lenha em fogões, o que causa quase metade das 49 mil mortes de pessoas por poluição interna. No mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 3 bilhões de pessoas ainda geram energia por biomassa, causando 6 milhões de mortes por ano.

Com o compromisso do G7, inúmeras possibilidades se abrem, mas vale lembrar que cada solução contém o risco de novos problemas ambientais – como as baterias de cádmio e lítio, cujo descarte incorreto pode contaminar o solo com metais pesados. A maioria de nós não estará aqui em 2100 para ver se a meta proposta pelo G7 será atingida Mas, quem sabe, antes disso a tradicional bomba de gasolina já terá se transformado em peça de museu.

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Poder pessoal e intransferível

Embora uma transição energética como a anunciada pareça se definir apenas entre governos e empresas, as pessoas também têm papel importante no uso racional da energia. “Todos defendem o meio ambiente, mas o veem como questão abstrata. São favoráveis ao banimento do petróleo, desde que não tenham de deixar de usar seus Land Rovers”, diz Alexandre Szklo, professor da Coppe-UFRJ.

Um veículo normal pesa cerca de 1 tonelada e leva uma ou mais pessoas, que equivalem de 7% a 20% do seu peso. Um SUV (utilitário), como o Land Rover, pesa mais de 2 t, ocupa mais espaço, usa diesel e é menos eficiente. “As pessoas não entendem que fazem parte da solução”, conclui. Como frisa o psicanalista Jorge Forbes, chegou a era de cada um – pessoas, empresas e governantes – se responsabilizar por suas escolhas.