Há vidas que merecem aplausos mesmo sob fracasso, como a do irlandês Ernest Shackleton. Há 100 anos, diante de muitas adversidades no comando de uma expedição à Antártica, ele salvou a vida dos companheiros, dando provas de coragem e inteligência.

Agosto de 1914. A bordo do Endurance, Ernest Shackleton (1874-1922) deixa a Inglaterra no comando da Expedição Imperial Transantártica. O objetivo era cruzar a Antártida numa jornada de 3.000 quilômetros do mar de Weddell (mais próximo da América do Sul) ao mar de Ross (mais próximo da Nova Zelândia), passando pelo Polo Sul – missão difícil, mas não impossível. 

Embora os tambores da Primeira Guerra Mundial já ressoassem na Europa, vivia-se ainda a “época heroica das conquistas polares”. Os navegadores famosos chamavam de “rotas de moças” as viagens de circum-navegações  e as travessias entre oceanos. Em seu diário, Shackleton escreveu: “Esta será uma expedição ainda maior do que as marchas de ida e volta aos polos. Cabe à nação britânica realizar esse feito, pois fomos vencidos em 1909 pelos americanos na conquista do Polo Norte, e em 1911 pelos   noruegueses na chegada ao Polo Sul” (veja na outra página).

Shackleton não era um calouro no continente gelado. Debutou entre 1902 e 1904 como voluntário na Expedição Discovery, comandada pelo inglês Robert Falcon Scott, que atingiu a posição mais ao sul até então alcançada pelo homem (82º 28’ S). Na sua segunda viagem, já como comandante da expedição Nimrod, entre 1907 e 1909, partiu da Nova Zelândia disposto a conquistar o Polo Sul, mas foi forçado a desistir a apenas 180 quilômetros da meta, por causa da fome e do esgotamento dos companheiros. 

Em Londres, Ernest Shackleton ganhou o título de sir e o rei Eduardo VII nomeou-o Comandante da Real Ordem Vitoriana. Graças a negócios e à fama consolidada por muitos convites para conferências e palestras, levantou recursos e, em 1914, anunciou uma nova viagem. Em 5 de dezembro de 1914 partiu da vila de pescadores de Grytviken, na Ilha Geórgia do Sul, com 27 tripulantes e 69 cães canadenses puxadores de trenós, para realizar sua terceira expedição. Como Roald Amundsen havia chegado ao Polo Sul em 1911, o propósito ambicioso agora era ser o primeiro a atravessar o continente gelado de costa a costa. 

Endurance

Nada a relatar nos primeiros 44 dias de navegação. No dia seguinte, 18 de janeiro de 1915, a apenas 24 horas do local designado para desembarcar no continente os homens que o acompanhariam na travessia, o Endurance foi aprisionado por gigantescos blocos de gelo. Encalhou.

Forças poderosas da natureza haviam congelado as águas ao redor da terra fi rme na noite anterior, formando uma banquisa – um banco de água do mar congelada. Dependendo dos ventos e da queda da temperatura, tais blocos podem atingir até 60 metros de altura acima do nível do mar. 

Começou aí a epopeia. Em um artigo publicado recentemente no jornal inglês e Times, a historiadora Nancy F. Koehn, da Universidade Harvard, escreveu que a liderança de Shackleton “serve de modelo para analisar a capacidade de reação frente à constante mudança das circunstâncias”. Isso porque, depois de imobilizado no gelo, o navio viu-se de repente à mercê das correntes geladas que o arrastaram nada menos do que 1.000 quilômetros para noroeste, levando junto os expedicionários sobre a banquisa – nove meses à deriva. 

Em 25 de outubro de 1915, a forte pressão causada pelo movimento do gelo torceu a popa do navio, provocando vazamentos no casco e fazendo-o adernar perigosamente. Shackleton deu ordem para  todos abandonarem o barco. Poucas semanas depois, o Endurance foi esmagado pelo gelo e afundou.

Não sabendo quanto tempo permaneceriam na banquisa, Shackleton e a tripulação passaram a racionar comida e a viver de carne e da gordura de foca.  Decidiram, então, rumar para a Ilha Elefante. De início, puxaram pelo gelo três botes salva-vidas (usados também como abrigos, emborcados como iglus), receosos de que a placa de gelo se abrisse e engolisse alguém. Depois, quando a banquisa efetivamente se rompeu, remaram por uma semana até alcançar, em 14 de abril de 1916, a Ilha Elefante. Passaram 497 dias no gelo e no mar, longe de terra fi rme. Mas a epopeia estava longe de terminar.

The Boss

Sob o frio da Ilha Elefante, outra história se delineia, ainda mais fantástica do que a anterior. Sabendo que os homens não aguentariam mais um inverno antártico que se aproximava, e sem esperanças de que algum navio passasse pela região, Shackleton toma outra decisão drástica. Junto com cinco marinheiros, decide atravessar a remo a Passagem de Drake – uma das porções de mar mais tormentosas do planeta, entre a Antártica e a Terra do Fogo – e alcançar a Ilha Geórgia do Sul, a 1.300 quilômetros de distância. 

A empreitada fadada à catástrofe tinha chances mínimas, mas o comandante correu o risco com disciplina e método. Em 24 de abril, a bordo do maior dos botes salva-vidas disponíveis, o James Caird, com 6,6 m de comprimento, lançou-se no mar revolto entre a ponta da América do Sul e a Antártica. 

Expert em Antártida e admirador de Shackleton, o jornalista Ulisses Capozzoli nota que o irlandês “é um exemplo para homens que, sem serem necessariamente exploradores da natureza, devem enfrentar desafi os que às vezes parecem tão intransponíveis que só podem ser vencidos pela inteligência e determinação”. 

Foram 17 dias navegando a remo, enfi m vencidos. Mas, o barco acaba aportando no lado errado da Geórgia do Sul, onde não existiam estações baleeiras. Ainda foi preciso escalar montanhas e glaciares e percorrer 35 quilômetros a pé durante 36 horas ininterruptas, até chegar à vila de Stromness. Lá, afinal, conseguiram pedir ajuda para resgatar os companheiros que fi caram do outro lado da ilha e mais os 22 retidos na Ilha Elefante. 

Os primeiros foram resgatados no mesmo dia. Na sequência, “the boss”, como Shakelton era chamado, tentou três vezes alcançar a Ilha Elefante, mas as embarcações não conseguiam ultrapassar as barreiras de gelo. Só meses depois, em 30 de agosto de 1916, os 22 tripulantes voltaram a ver o líder a bordo do rebocador Yelcho, comandado pelo não menos corajoso capitão chileno Luis Pardo. Em 23 de setembro, depois de 22 meses de resistência e sofrimento, todos desembarcaram a salvo em Punta Arenas, no Chile. E de lá foram para casa.

A Antártica, porém, virara uma obsessão para Shackleton. Seis anos depois, em 4 de janeiro de 1922, a bordo do Quest, ele atracou novamente na Geórgia do Sul para iniciar a quarta expedição ao
continente. O propósito dessa viagem nunca foi esclarecido. Especulou-se que se tratava de uma viagem de circum-navegação ou de caça a tesouros.

No dia seguinte, 5 de janeiro, o navegador foi abatido por um ataque cardíaco. O maior herói polar de todos os tempos morreu derrotado em todas as missões, mas sem desistir. Está enterrado na ex-estação baleeira de Grytviken, na Geórgia do Sul. Sobre seu túmulo há uma pedra de granito com uma frase do poeta Robert Browning: “Penso que o homem deveria esforçar-se o máximo para alcançar aquilo a que está predestinado”.