Massas incomuns de ar frio desviado da atmosfera ártica surpreenderam o inverno do Canadá, o segundo país mais frio do mundo depois da Rússia, espalhando-se para além dos territórios habituais com impressionante persistência. Para os meteorologistas, o evento extremo de um esquentamento súbito da estratosfera desviou o vórtice polar para o sul, gerando ondas de  frio que congelaram até mesmo cidades acostumadas com os rigores das baixas temperaturas.

A agência espacial norte-americana (Nasa) registrou o fenômeno pela primeira vez em 1952, batizando-o com a sigla SSW (sudden stratospheric warming). Mas fazia pelo menos 20 anos que ele não acontecia. Nos Estados Unidos, as temperaturas despencaram para 30 graus centígrados negativos, as aulas foram suspensas, os americanos se enfurnaram em casa e as séries de tevê conquistaram recordes de audiência. Até o urso-polar do zoológico de Chicago teve de ser abrigado em local fechado.

“Trata-se de um evento extremo, marcado não só pela intensidade do frio como também pela sua duração”, explica o climatologista David Phillips, da Agência do Meio Ambiente do governo canadense. “Dia após dia, semana após semana, mês após mês, não houve alternância com as massas de ar da América, que trazem temperaturas mais brandas”.  Sob tais circunstâncias, mesmo os centros mais populosos viraram cidades fantasmas.

Whitehorse, entretanto, resiste. A capital do território do Yukon, vizinho ao Alasca, é a maior cidade do noroeste do Canadá. Seus heroicos 27 mil habitantes estão acostumados a invernos com 20 graus negativos. Até sob circunstâncias extremas, a cidade recusa-se a hibernar, cultivando a natureza e os esportes de inverno com uma disposição inquebrável.

Sem medo de congelar

Quando a paisagem empalidece com a neve e os dias ficam curtos, é hora de praticar o esporte nacional de inverno, o dog sledding, a corrida de trenó puxada por cães. Também é momento de sair noite adentro em busca da imprevisível aurora boreal.A cidade é o ponto de chegada da maior corrida internacional de trenós, a Yukon Quest, que acontece sempre de fevereiro, desde 1984. A largada é feita a 1.600 quilômetros de distância, em Fairbanks, no Alasca, independentemente das condições meteorológicas.

Cerca de 30 equipes formadas por um musher (corredor de trenós) e 12 cães, das raças malamute do Alasca e huskie siberiano, levam 10 dias para realizar a prova enregelante, mobilizando organizadores, voluntários, imprensa, fanáticos e curiosos. Quando não estão competindo, mushers como Frank Turner – um dos poucos canadenses que já venceram a prova até hoje, dono do Muktuk Adventures, um dos canis de Whitehorse – oferecem aos turistas passeios na neve com a sua matilha.

Não é só durante a Yukon Quest que Whitehorse se conecta estreitamente ao Alasca. A cidade tem papel importante na integração com o Estado americano, cortada pela Alaska Railway, que cparte de Dawson Creek, no território de British Columbia, e vai até Delta Junction, no Alasca. Seus 2.400 km foram construídos por soldados norte-americanos em oito meses, durante a Segunda Guerra Mundial. A rota estratégica, que permitiu aos Estados Unidos levar aviões à Rússia para combater os alemães, facilita a visita a pontos mais afastados das luzes da cidade, onde residentes e turistas acampam para aguardar o espetáculo da aurora boreal.

Matilha treinada para a prática do esporte nacional de inverno: o dog sledding, a corrida de trenó puxada por cães (Crédito: Renata Mesquita)

Embora os povos indígenas atribuíssem a aparição das luzes coloridas no céu a deuses e fantasmas, o fenômeno é causado pela colisão de partículas de ventos solares com átomos de oxigênio e nitrogênio dos polos magnéticos Norte e Sul da Terra, em geral, a alturas entre 80 e 240 km. Como os ventos levam dois a três dias para chegar ao planeta, diariamente, vários institutos publicam previsões indicando o nível de atividade da aurora.

As notícias mexem com as expectativas do público, que não tem garantia sobre a ocorrência do espetáculo. A ciência tampouco dá conta de medir a hipnose coletiva causada pelo show das luzes dançantes quando percorrem o céu, sem hora, roteiro ou cor previamente definidos. Para ver os fantasmas é preciso passar a noite alerta e torcer para que as nuvens não atrapalhem a performance.

Nascida da corrida pelo ouro do final do século XIX, nos últimos anos Whitehorse despontou como centro de caça e observação da aurora. Tornou- se uma aposta turística canadense – junto com a cidade de Yellowknife, no Território do Noroeste –, para fazer frente à concorrência dos países nórdicos, estruturados há décadas para receber os apreciadores das luzes polares do Hemisfério Norte.

Abaixo de 30°C

Para viver aventuras extremas requer-se disposição. Em Whitehorse, colocar o pé para fora de um ambiente climatizado no inverno, seja de dia, seja de noite, demanda esforço. A lista das precauções é longa: calça, meia e blusa térmicas recebem, por cima, uma calça de tecido grosso; e, sobre ela, calças típicas com suspensório, corta-vento e impermeáveis, usadas por esquiadores. A blusa fleece é reforçada com cachecol, luva e gorro, ou máscara de lã. Para fechar as frestas, usa-se um casaco adequado a temperaturas de até 50 graus negativos, com capuz. As botas emborrachadas de solado grosso e cano alto completam o look nada charmoso da estação.

Cansa só de contar. Vestir tudo isso pode ser comparado a uma sequência de musculação na academia. Uma caminhada de 10 minutos carregando a armadura contra o frio é um esforço. Mas as recompensas estão ao ar livre, e os turistas precisam aceitar as condições.

Apesar de se encontrar quase na divisa com a região sul do país, Whitehorse passa seis meses sob frio polar. Mas o estilo de vida pouco se parece com o de outras comunidades que na maioria não chegam a mil habitantes, não estão interligadas por terra ao restante do país e mantêm mais fortes as tradições inuítes, dos povos esquimós.

Neste inverno as temperaturas baixas trouxeram questionamentos perturbadores. “Muitos canadenses perguntam se a onda de frio não indica o fim do aquecimento global”, diz David Phillips. “A resposta é não, de forma alguma. Mudança climática não é um calorzinho a mais que muitos achariam bom. Significa mais e maiores variações e extremos, ou seja, muito mais incertezas. O que nos preocupa é não saber aonde vão parar”, afirma o climatologista.