Um dos símbolos do Brasil, o guaraná cresce em locais

quentes e chuvosos. A repórter de PLANETA esteve em Maués, no Amazonas, a “Terra do Guaraná”, e apresenta aqui a relação de seus habitantes com esse fruto

O agricultor José Natalino colhe com cuidado o guaraná. Entre outubro e fevereiro, os frutos se abrem, assemelhando-se a pequenos olhos.

Tu, meu filho, serás a maior força da natureza! Farás o bem e livrarás o homem das doenças.” Foi com essas palavras, diz a lenda dos índios saterés-maués, que a mãe de um indiozinho morto, sábia no cultivo das ervas medicinais, o consagrou com o dom da cura. Seu olho direito foi enterrado, dando origem a uma trepadeira que produz frutos em tons avermelhados, os quais se abrem em feitio de pequenos olhos. Os amazonenses fazem fé nessa versão que atesta o poder do guaraná e o consomem diariamente para manter a boa disposição.

No rio Maués-Açu, ou no paraná (atalho fluvial) do Ramos – todos muito próximos ao rio Amazonas -, há mais de 600 anos os indígenas descobriram o guaraná. Hoje, o “fruto dos olhos” é hábito dos amazonenses e está presente no café-da-manhã, no aperitivo do almoço de feijão e macaxeira. À noite ele acompanha o mingau de tapioca, mas só para quem está acostumado com o seu teor protéico e energético. Com três ou quatro vezes mais cafeína que o café puro, o guaraná, se consumido em excesso, pode deixar a pessoa sem pregar os olhos a noite toda – mas tomada por aquele prazer de euforia natural que ele é capaz de dar. Um caboclo produtor e sua família sempre oferecem ao visitante o guaraná in natura, ralado na hora na língua do peixe pirarucu. É um costume quase ritual que precede a conversa.

Não à toa, as empresas de refrigerantes, de olho no mercado externo, apelam para sua brasilidade: o Brasil é o único produtor comercial de guaraná do mundo. São 3.600 toneladas anuais, provenientes de regiões com temperaturas médias entre 23º C e 28º C e índices pluviométricos em torno de 1.500 a 3.000 mm anuais. Essas condições são encontradas especialmente no sul da Bahia, no norte do Mato Grosso e, é claro, na Amazônia, de onde sai a maior produção nacional. Só o Amazonas responde por 1.300 toneladas desse total.

A cidade que mais colabora com esse montante (60%) está a 17 horas de barco de Manaus: é Maués, a “Terra do Guaraná”. A fama da cidade não veio só dos números de produção expressivos, mas também da tradição cultural. Antiga morada de índios mundurucus, hoje também é habitada pelos saterés-maués, que ocupam um território de cerca de 750 mil hectares. Foram essas duas etnias que primeiro cultivaram o guaraná (e o fazem até hoje) e ensinaram seus segredos, disseminando a cultura aos moradores da região.

Acima, vista do Maués-Açu, rio que corta Maués. A “Terra do Guaraná” fica a cerca de 270 km de Manaus em linha reta (ver mapa à esquerda). Na página ao lado, a partir do alto, em sentido horário: Luís Neves, ao lado da neta e do filho, mostra sua produção de bastões; atividade na Fazenda Santa Helena, da AmBev, a principal compradora de guaraná da região; colheita do fruto nas terras de Natalino.

Seu José Natalino, por exemplo, é um bom caboclo de Maués. Casado com a descendente de norte-americanos Noemi Cathlelin, ele nos conta que já fez muito Brasil afora. Já colheu juta, já extraiu borracha, já mudou diversas vezes de morada. Pois foi bater os olhos no guaraná e ele quis fincar suas raízes. Dono de um cultivar de 20 hectares, sabe que essa é uma tradição de labuta familiar, de lida artesanal.

O fruto é pequeno, em tons de laranja e vermelho e, quando maduro, começa a se abrir, deixando à mostra a pequena semente escura, encoberta pela polpa clara. De outubro até fevereiro, os olhos do guaraná garantem o trabalho de colheita para esses produtores. Trabalho manual, que deve ser feito com uma tesoura de poda quando os cachos estão com mais de 50% dos frutos no ponto ideal. Ou fruto a fruto, quando o número de frutos abertos for menor, o que acontece com freqüência. Isso também exige que a colheita seja feita pelo menos duas vezes por semana.

Pequeno e marcado por tons de laranja e VERMELHO, o guaraná é colhido manualmente no período que vai de outubro a fevereiro

Em seguida, os frutos devem descansar por três dias em montes ou armazenados em sacos para que, sobre um chão de cimento queimado ou cerâmica, ocorra a fermentação. Isso facilita a retirada da casca e da polpa. Só então as sementes devem ser lavadas e peneiradas para a classificação por tamanho, a fim de que a torra seja uniforme.

A torra pode ser feita em fornos de barro ou em tachos metálicos. Depois de torradas, as sementes podem ser armazenadas por até um ano e meio, de preferência em sacos de fibras.

Um dos símbolos do Brasil, o guaraná cresce em locais

quentes e chuvosos. A repórter de PLANETA esteve em Maués, no Amazonas, a “Terra do Guaraná”, e apresenta aqui a relação de seus habitantes com esse fruto

O próximo passo depende do produto final desejado. O de menor valor agregado – e justamente a forma mais adotada pelos produtores – é o comércio de guaraná em rama, como é chamado quando as sementes são vendidas apenas torradas. Dessas sementes se fazem o xarope e o extrato, utilizados na produção de refrigerantes. Já quando as sementes são finamente moídas antes da venda temos o pó, que mais valor agrega e que pode ser vendido no comércio varejista ou usado na fabricação de itens como sorvetes, cremes e bebidas.

Mas a forma mais tradicional de processamento é o bastão, um método desenvolvido pelos índios há séculos e apreciado especialmente no Amazonas e no Mato Grosso, no qual o guaraná é consumido após ser ralado. Depois da torra, o casquilho do grão é eliminado e o grão é socado num pilão até tornar-se uma pasta firme, enrolada na forma de bastão. Antes de ser vendido, o bastão passa pela defumação, que o desidrata e garante maior durabilidade.

Em Maués, fomos de barco até a Ilha de Vera Cruz. A ilha é uma das 180 comunidades que produzem o fruto na região, uma parte dos 10 mil hectares cultivados. De canoa por um igarapé, chegamos à casa de Luís Neves, compadre de José Natalino e um dos 2 mil produtores familiares do guaraná.

Com mais de 70 anos, seu Luís é considerado o melhor produtor de bastões da região. Além de plantar o fruto, comanda nos fundos de sua cozinha uma frenética produção, ainda ao modo indígena. Ele nos explica que só no processo manual é possível manter a matéria-prima sempre na temperatura adequada: “Se for amassada num pilão mecânico, a pasta esquenta demais e perde o ponto de enrolar.” No manejo dele, já foram beneficiadas até mil toneladas de guaraná.

Mas nem tudo é tradição indígena na produção da fruta. Desde os anos 1970, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) faz pesquisas para melhorar as formas produtivas do guaraná. Uma das alternativas, segundo o técnico agrícola Eugênio Borges, secretário municipal de produção de Maués, é o uso de clones, ou mudas melhoradas. Essas mudas costumam ter vantagens significativas sobre as plantas que se reproduzem naturalmente. Os clones batizados de BRS-Amazonas e BRS-Maués, por exemplo, são mais resistentes a pragas, produzem com menos idade e até dez vezes mais.

QUEM TAMBÉM anda crescendo os olhos para aprimoramentos na produtividade é a indústria de refrigerantes. A AmBev, que compra 70% do guaraná produzido na região, investe num centro de pesquisa na Fazenda Santa Helena. O objetivo é obter mudas geneticamente modificadas e fornecê-las aos produtores locais. É um modo diferente de encarar a produção da fruta, explica Miriam Frota, engenheira agrônoma e coordenadora da fazenda: “A cultura do guaraná não é tipicamente de indústria, mas de cultura familiar.”

Quem planta sabe que se trata de uma atividade que merece respeito especial. Seu José Natalino, enquanto colhe com gestos delicados os pequenos frutos, verseja: “Minha casa, minha canoa são do azul do céu, pra acalentar este guaranazal todo…” É lá pelo fim do ano que o guaraná começa a se abrir, expondo uma parte da polpa muito branca com o escuro da semente no centro: são os olhos sagrados e curiosos do menino índio que querem espiar o capricho de José Natalino.

De olhos bem abertos

O uso medicinal do guaraná e a expectativa dos lucros com ele saltaram aos olhos da delegação japonesa que visitou a Amazônia na década de 1920. Um acordo entre os governos do Pará e do Amazonas oferecia terras em troca de mão-de-obra especializada. Kossaku Ohishi decidiu pesquisar, por conta própria, as possibilidades de investir no guaraná e iniciar uma colônia japonesa em Maués. Em 2 de janeiro de 1930, os primeiros 49 migrantes chegaram à cidade. Em julho, 56 pessoas se juntaram a eles; em outubro, mais nove. Mas a empresa que os financiava faliu e eles se viram sem amparo em uma terra totalmente diferente da sua, com uma empreitada inédita pela frente e problemas de alimentação, saúde e adaptação ao clima.

Como bons japoneses, não desistiram. Após várias idas e vindas, em 1933 o guaraná foi, pela primeira vez na história, comercializado em larga escala. Para esses imigrantes, infelizmente, a história não acabou bem: um surto de malária afugentou os colonos em definitivo para Parintins. Mas foi graças a eles que o Brasil se tornou o primeiro (e ainda único) produtor comercial do fruto dos olhos.

SERVIÇO

Maués fica 268 km a leste de Manaus em linha reta, ou 356 km por via fluvial. Sua temperatura média é de 28º C. Tem uma população de cerca de 45 mil habitantes, que se dedica principalmente ao cultivo do guaraná e ao turismo. Outras informações: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, fone (92) 3542-1161.