Para a delegada que investiga o estupro coletivo do Rio, a vulnerabilidade e a ausência de balizas morais é tamanha que as vítimas muitas vezes não enxergam a violência

Ela nunca pensou em ser delegada. Seu sonho era ser juíza. Após se formar em direito em 1998, Cristiana Bento era oficial de Justiça enquanto cursava a escola da Magistratura do Rio. “Fiz o concurso de delegados para me avaliar. Passei. Comecei a gostar muito da profissão, e abandonei a ideia da magistratura”, conta ela, 42 anos, mãe de uma garota de 14. Há um ano, ela assumiu a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, do Rio. O crime que chocou o país e levou milhares de pessoas às ruas caiu em suas mãos. Cristiana mudou o curso da história de C.B., 16 anos, vítima do estupro coletivo no Rio.

PLANETA – Como avalia o estupro coletivo no Rio?
CRISTIANA – Essa jovem foi exposta de uma forma vexatória. A investigação está lhe devolvendo dignidade. Ela não tinha real noção do abuso sexual que vinha sofrendo. É tudo tão negligenciado, valores morais e sociais tão subtraídos, que ela perdeu a noção. Aos 12 anos, engravidou. Isso em si já foi um estupro.

PLANETA – C.B. tem a visão de que foi estuprada aos 12 anos?
CRISTIANA – Não tem. Para ela foi um relacionamento. Ele era bandido e morreu. Havia o consentimento, mas ela era uma criança. Ela havia sido abusada na comunidade, antes, por outro traficante. E, desta vez, houve o estupro coletivo. E ela era tão negligenciada com ela mesma que não tinha a noção da violência. Se o vídeo não tivesse vazado, ela não teria ido à delegacia. Arriscou sua vida, voltou ao lugar onde foi abusada, não se preocupou com o que poderia acontecer com ela e nos disse: “Minha avó ainda está pagando meu celular”. O bem mais importante para ela era o celular.

PLANETA – Ela se deu conta disso?
CRISTIANA – Ela foi caindo em si. Está provado que ela foi estuprada. Dois vídeos comprovam a vulnerabilidade dela naquele momento. Mas os próprios abusadores muitas vezes não têm consciência de que aquilo é um abuso. Foi colocada em questão a personalidade da vítima: ‘Ela está acostumada’. Mas isso não é motivo para abusar de uma pessoa.

PLANETA – A sra. acredita que houve uma visão machista?
CRISTIANA – Claro. Sou professora licenciada de Processo Penal da Universidade Cândido Mendes. A minha interpretação segue a lei. O primeiro vídeo é claro: uma pessoa desacordada sem condições de oferecer resistência, e outra pessoa manipulando, ali para mim já era estupro. Com o segundo vídeo, não houve mais dúvida. Vimos um homem introduzindo um objeto nela, um batom. Até para aqueles que defendiam a tese de que só a manipulação não era suficiente para comprovar um estupro, essa tese cai por terra.

PLANETA – O que a motivou a se especializar na área?
CRISTIANA – A motivação vem de cada história diária que surge. Sempre vejo assim: pelo menos tentamos salvar uma vida. Houve o caso de uma professora que abusava de crianças. Na última mensagem, o abusador fala para a professora levar a menina de 4 anos até ele. Nós chegamos antes e impedimos uma menina de ser abusada. Há um texto que costumo usar em palestras sobre um poema que fala de um menino pegando conchinhas na praia e devolvendo para o mar. Vemos as conchas como vidas. Não podemos salvar todas. Se salvamos uma criança de um abusador, já está valendo. Não é demagogia. É responsabilidade social.

PLANETA – Por que casos de violên­cia contra a mulher só aumentam?
CRISTIANA – Acredito que os casos não aumentam. As mulheres se sentem mais encorajadas e denunciam mais.

PLANETA – Que caso mais lhe tocou em oito anos de polícia?
CRISTIANA – A maioria dos crimes contra crianças me toca. A maioria dos casos que tratamos aqui infelizmente é de estupro. Uma vez, no meu colo, uma menina de 4 anos me disse: “Ele fez a coisa feia”. Era seu padrasto abusador. Não me esqueço de uma adolescente de 17 anos que chegou à delegacia com o ursinho na mão. Havia um ano, ela queria registrar o abuso do pai, mas não tinha coragem. Ela chegou a entrar na delegacia, mas saiu. Mas a mãe descobriu. Ela pensou que o marido a estava traindo. Pôs um gravador no carro. E gravou o marido tendo relação com a filha. Quando ela me trouxe o áudio, foi um choque. Uma coisa é você ouvir falar que o pai abusou da filha, o que já é, em si, hediondo. Mas ouvir a gravação na hora do ato, ouvir a aflição da filha pedindo para o pai parar, é um horror. Então ela revelou à mãe que desde os 9 anos o pai abusava dela. Ele, caminhoneiro, viajava muito. Mandei chamá-lo à delegacia. Avisei que colocaria um áudio. Quando ouviu, foi desconfigurando o rosto. A única coisa que ele disse foi: “Tenho direito a um advogado?” Eu disse: “O senhor está preso”. Tempos depois, em dificuldades financeiras, mãe e filha voltaram à delegacia. A menina me disse: “Ele fazia isso, mas era um bom pai.” Ela não tinha ideia do que era ser pai. A criança não sabe que está sendo abusada. Demora para entender. Elas se confundem. Uma vez, ouvi de outra adolescente: “Gostava dele como pai. Não gostava dele como namorado.”

PLANETA – A sra. usa um crucifixo. É religiosa?
CRISTIANA – Ganhei do meu marido. Sou evangélica. Ao acordar, digo: “Senhor, guia meus passos. Me dê sabedoria”.

PLANETA – A sra. se identifica com os casos, pensando na sua filha?
CRISTIANA – Claro, a gente pensa que podia ser um filho. Desde o primeiro momento, vi pessoas criticando essa menina, dizendo ‘ ah, mas ela quis…’. Eu ouvia e retrucava: “Fecha o olho e coloca sua filha deitada ali, com bandidos tripudiando. Seria estupro ou não? Você conceituaria como estupro? Quando é com os outros, é mais fácil julgar. As pessoas têm que ter mais amor pelo próximo e se colocar na pessoa do outro. Sobre a personalidade da menina, o artigo do Código Penal não fala da personalidade da vítima.

PLANETA – É preciso esclarecer o que é estupro hoje?
CRISTIANA – As pessoas não têm esse esclarecimento. Desconhecem o que é estupro hoje. Antes da lei de 2009, estupro era a violência que envolvia a penetração do pênis na vagina. Violência com sexo anal não se enquadrava como estupro. Era ato libidinoso. Com a nova lei, um beijo à força pode ser visto como estupro. Claro que há proporções, e um juiz deve avaliar.