O sonho do viajante é ter um bom cicerone num país desconhecido. Se for alguém que conheça a história do lugar, que nos leve a pontos importantes e também aos menos explorados, melhor ainda. É um privilégio encontrar alguém sensível, com um olhar capaz de revelar a poesia da paisagem, porém livre de pretensões, com a liberdade que as boas viagens necessitam. Embora pareça improvável, o cicerone está perto: é só consultar os escritores.

O primeiro passo é procurar o livro adequado para abrir as portas da aventura, encarando a leitura como um mapa de expansão da percepção. Pode-se visitar a Espanha de Miguel de Cervantes, Paris na companhia de Victor Hugo e Alexandre Dumas; a Buenos Aires de Jorge Luís Borges; o Chile de Isabel Allende; a Lisboa de Fernando Pessoa; e a remota Amazônia brasileira descrita por Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. Isso só para citar algumas viagens. Na verdade, a literatura está em todos os lugares e oferece portas infinitas para o mundo.

O olhar descobridor foi o tema das reflexões do escritor francês Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido, obra lançada em 1913, que tem Paris como cenário e a sociedade da época como filtro para uma viagem pela cultura francesa. “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos”, dizia o autor. A literatura é capaz de ampliar o poder da imaginação.

É o caso, por exemplo, de conhecer Buenos Aires na companhia de seus escritores. Uma cidade voltada à cultura e à literatura, exaltada em verso e prosa por nomes como Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, que nasceram e viveram nas ruas portenhas. Borges é o cicerone ideal para quem vai ao bairro de Palermo, onde viveu, descrito em vários de seus livros. Em Fervor de Buenos Aires, lançado em 1923, o autor descreve poeticamente o Cemitério da Recoleta, a Praça San Martin e vários pontos menos conhecidos, nos arredores da cidade.

No livro Atlas (de 1985), no qual discorre sobre suas viagens pelo mundo, Borges declara amor incondicional a Buenos Aires. “Meu corpo físico pode estar em Lucerna, no Colorado ou no Cairo, mas toda manhã ao acordar, quando retorno ao hábito de ser Borges, emerjo invariavelmente de um sonho que se passa em Buenos Aires”, declara.

Seu conterrâneo Julio Cortázar destaca a região central da capital, com suas galerias, seus cafés e a Praça de Mayo, a Casa Rosada, além de locais mais afastados, como o Cemitério da Chacarita e a Faculdade de Agronomia. Para quem toma a biografia de Cortázar como itinerário, vale visitar a casa onde passou parte de sua infância, na Rua Artigas, 3.246, próximo a outra rua do bairro Rawson que atualmente leva seu nome. Depois de morar ali, Cortázar viveu em Paris 30 anos, deixando clara sua paixão por essas cidades em um de seus livros mais importantes, O jogo da amarelinha, lançado em 1963, há 50 anos, que tem como cenário as duas capitais.

Planejar é inspirar-se

Com o destino definido, antes de fechar as malas busque um livro inspirador. Como parte do planejamento, pesquise pelo menos uma obra que se passe ou se refira ao lugar que vai visitar. Se você for um leitor voraz, busque vários. Para encontrá-los, a dica é descobrir quem são os escritores nativos ou que tenham morado por lá, e quais são os principais temas relacionados ao seu destino – isso pode ser feito junto a sua agência de viagem, pela internet ou com amigos.

Por mais inusitado que seja o destino, é provável que existam escritores que escreveram sobre ele. Se não houver, busque temas relativos. Procure os personagens históricos e veja se não há biografias ou romances ambientados no local.

Para quem vai a Paris, um bom exemplo pode ser a biografia de Napoleão Bonaparte, Napoleão: Uma Biografia Romanceada, escrita por Alexandre Dumas, autor de Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo e A Rainha Margot, que, aliás, também se passam em locais importantes da capital francesa, como o Jardim de Luxemburgo e o Louvre. Escrito em linguagem poética, o livro de Dumas nos dá uma visão humana e criativa do grande general francês.

Outro exemplo de viagem pela história está no livro Inês de Minha Alma, da escritora chilena Isabel Allende, que relata detalhadamente a vida da amante de Pedro de Valdívia, o colonizador espanhol fundador de Santiago, a capital do Chile. Escrito por uma das mais reconhecidas autoras da América Latina, o livro nos dá uma ideia realista e detalhada das lutas, das conquistas e dos limites das mulheres do século XVI.

Tenha em mente que o mais importante não é buscar descrições dos pontos que irá visitar, mas principalmente captar a atmosfera descrita por quem se dedicou a percebê-los, imaginá-los e reinventá-los, bem como entender as idiossincrasias, as manias e os humores dos seus moradores.

Outra dica é refazer roteiros percorridos ou sugeridos por personagens, heróis, narradores, bandidos ou musas inspiradoras. Isso pode valer para os locais mais insuspeitos, como o Monte Roraima, localizado na divisa entre Brasil, Venezuela e Guiana, no Estado de Roraima, no extremo norte da Amazônia mais remota.

Ímã para aventureiros, a bela e exótica montanha, quase sempre coberta pela neblina, foi o tema para o escritor Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, um dos mais famosos espiões da literatura universal. O monte brasileiro inspirou a aventura científica O mundo perdido, na qual dinossauros são encontrados vivos num platô, a 2 mil metros de altitude, milhões de anos depois da extinção da espécie. Repleta de incríveis formações rochosas, florestas úmidas e índios arredios, a região pode ser mais interessante com O mundo perdido na bagagem.

A imaginação literária é capaz de pular direto do Norte do Brasil para a região de La Mancha, na Espanha, cujos seculares moinhos de vento foram os monstros imaginários de Dom Quixote de La Mancha, o clássico de Miguel de Cervantes escrito entre 1605 e 1615. Numa das cenas mais famosas do livro, o fidalgo cavaleiresco Quixote investe de lança em riste contra os moinhos, imaginando-os como gigantes ameaçadores.

Os moinhos ainda estão lá e fazem parte do cenário de um itinerário da região que resgata o universo do escritor espanhol. Muitos ainda estão em funcionamento. Embora Dom Quixote de La Mancha não seja um livro fácil, escrito em linguagem rebuscada (originalmente em espanhol arcaico), sua atmosfera pode ser sentida pelo belo trajeto que passa por várias cidades de La Mancha.

Se uma leitura parece pesada, o leitor desavisado pode procurar edições comentadas. No caso de Dom Quixote há várias, sempre com informações sobre o contexto histórico, social e cultural da época, que ajudam a adentrar a obra com mais facilidade.

Para compatibilizare literatura e viagem, é preciso encarar o ato de viajar como algo muito além de um deslocamento. Os livros revelam que viajar não é passar por monumentos e fachadas. As viagens precisam de momentos de descanso, de reflexão, de emoção e de aprendizado. Olhar atentamente as paragens, as cidades, os países, as culturas, compará-las e compreender um pouco mais sobre nós mesmos. Assim, nos transformarmos. Como escreveu o poeta Mário Quintana, “os livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas; os livros só mudam as pessoas”. Se os livros podem mudar você, podem mudar suas viagens e sua visão de mundo. [FIM]

 

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Viagens na linha do tempo

A literatura de viagem começou com a Odisseia, de Homero, no século VIII a.C., na Grécia, que narra a história de Ulisses, que volta para casa, após a Guerra de Troia, envolto em aventuras e mitos.

A Odisseia influenciou Os Lusíadas, escrito por Luís de Camões em 1557, que conta a viagem dos portugueses à Índia. Apesar da linguagem rebuscada para os dias de hoje, esse foi um livro revolucionário, que adotou uma linguagem moderna, com gírias e expressões populares. É fácil encontrar edições comentadas, que ensinam o contexto da época e ressaltam os versos importantes e a grandiosidade da obra.

Outra narrativa de viagem é a de Marco Polo, navegador italiano que saiu de Veneza em 1272 e seguiu para o Oriente, permanecendo 27 anos fora de sua terra natal, em busca das maravilhas até então pouco exploradas. Polo escreveu O Livro das Maravilhas, que induziu outro grande escritor italiano, Ítalo Calvino, a escrever As Cidades Invisíveis, um clássico da literatura e uma aula sobre as cidades do mundo.

No século XIX grandes impérios se expandiram (principalmente a Inglaterra e a França), levando muitos viajantes a conjugar literatura com ciência, narrando aventuras em paisagens e culturas pouco exploradas. Verdadeiros clássicos do período são dois livros de Júlio Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas e A Volta ao Mundo em 80 Dias.

O século XX democratizou as viagens, envolvendo-as em temas contemporâneos e experiências existenciais, como em O Grande Bazar ferroviário, de Paul Theroux, On the Road, de Jack Kerouac, A Incrível Viagem de Shackleton, de Alfred Lansing, Viagem a Portugal, de José Saramago, e Diários de Motocicleta, de Che Guevara. Isso para citar só alguns e começar uma conversa.