Dez anos depois de sua estreia fonográfica, o músico Criolo lança nova versão de seu primeiro álbum, regrava algumas músicas cujas letras continham termos pejorativos, como “traveco”, e não tem vergonha de dizer que errou, evoluiu e voltou atrás

Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, não tem medo de mudar. O músico paulistano de 40 anos começou no rap, em 1989, mas depois enveredou por outros estilos e, agora, revisita o início de sua carreira com uma nova versão de seu primeiro álbum de estúdio, Ainda Há Tempo, lançado originariamente em 2006. Criolo aproveitou a reedição para alterar as letras de músicas que continham termos eventualmente considerados pejorativos. Por exemplo, na faixa “Vasilhame” (lançada, na verdade, na coletânea DJ QAP e Sua MPC Envenenada, em 2008), “traveco” deu lugar a “universo” (de “os traveco tão aí, oh! Alguém vai se iludir” para “o universo tá aí, ah!”). Em “Breáco”, a expressão “se o demônio usa saia” foi trocada por “se o demônio dá saia”. O músico conversou com PLANETA sobre essas mudanças.

PLANETA – Como você começou a pensar em mudar algumas letras de suas músicas? Algo o incomodava ou alguém o criticou por isso?
CRIOLO – Há três anos eu já cantava as letras diferentes nos shows. Ao longo da vida, fui percebendo coisas a que não tinha me ligado antes, e o que eu reforçava com elas. Estava indo por um caminho diferente da ideia que queria passar. Somos aglutinados por tudo que está ao nosso redor. Esse cotidiano nosso é perceptível e imperceptível. Por exemplo: às vezes uma gíria que surge em um bairro pode ter sentido diferente em outro. Jamais imaginei estar magoando alguém. Essa palavra reforça um julgamento, um estereótipo, uma distorção. Mas você vai percebendo. Uma vez, o DJ DanDan, meu amigo e parceiro musical, chamou atenção para uma palavra que eu estava usando: denegrir, que é algo que diminui as pessoas. “Denegrir” significa “tornar negro”. Era um jeito de dizer que a pessoa era menor ao se aproximar do negro. E o denegrir, para nós, seria algo bom. Mas são coisas que estão no cotidiano e não percebemos. Geralmente, as pessoas não usam essas palavras por mal.

PLANETA – A visão da sociedade sobre as palavras mais polêmicas mudou muito desde que essas músicas alteradas foram compostas?
CRIOLO – Não é questão de ter mudado. Somos uma espécie em evolução, ainda tentando descobrir qual é a nossa aqui. Mas o convívio com as pessoas é bonito. Teve o DanDan, que me deu aquele toque, tem minha mãe, Vilani, e meu pai, Cleon, que toda hora me ensinam coisas. E também tem o modo como o rap me ofereceu um jeito de olhar ao meu redor. São várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Qualquer coisa que me emociona me põe em outro estado. E isso mexe no modo como vemos as coisas ao redor. Ver a fragilidade das coisas, sua pureza e importância causa pequenas revoluções internas que não percebemos.

PLANETA – Que comentários você recebeu de fãs ou críticos musicais sobre as mudanças?
CRIOLO – Não fico vendo isso. Essas modificações já tinham acontecido dentro de mim. O grande lance é essa mudança interna e serena. Não foi um ponto de discussão ou polêmica, mas de celebração. Nos shows pelo Brasil, alguns comentam “que bom que você errou e corrigiu”, ou “que bom que você sacou isso”. O que mudou é que agora tem um novo registro. Somou, não atrasou. O importante é não perder a fé no ser humano. Tem muita coisa errada e muita coisa massificada oferecida ao nosso povo, mas não necessariamente foi o povo que criou isso. Temos de dar oportunidade para essa troca, e não apontar o dedo na cara.

PLANETA – Quando o caso do estupro coletivo no Rio veio à tona, surgiram letras de funk ofendendo a garota violentada. Outras letras de funk “proibidão” disseminariam machismo e incitariam à violência contra a mulher. Para você, esse tipo de música pode estimular atos violentos contra mulheres?
CRIOLO – Existe hoje uma normalização da violência. Quantos filmes de Hollywood você já viu em que os mocinhos estão com metralhadoras arregaçando todo mundo? Quantos processos de divórcio Hollywood teria de pagar para quem se separou por acreditar que a construção familiar certa é naquele modelo? Isso explica tudo.

PLANETA – Algumas músicas mais antigas, como “O Teu Cabelo Não Nega” ou “Cabeleira do Zezé”, têm letras hoje consideradas preconceituosas ou de mau gosto. Elas deveriam ser evitadas?
CRIOLO – Acho que, enquanto fato histórico, elas descrevem como era o olhar ali. Vai de cada um querer reforçar essas ideias. Não posso falar o que você deve fazer, mas posso dividir. Podemos construir um diálogo para essa troca de saberes.

PLANETA – Quando você compõe, preocupa-se em não usar palavras que possam ofender alguém?
CRIOLO – Nunca parei para pensar nisso. Quando saquei, anos atrás, que usei um jargão que significou uma parada ruim, fui lá e eliminei. A criação de arte, para mim, não tem um método. É você se permitir sorrir e chorar para o mundo. Deixar vir algo, dividir emoções. Mesmo porque nunca ninguém me ensinou isso. Vou ensinar você a ter sentimentos?

PLANETA – Você também vê esse olhar humanizado no trabalho de outros artistas?
CRIOLO – É natural não querer ofender ninguém, isso está na essência de cada um. Se você for visitar os saraus das quebradas, os grupos de teatro, de dança, todos ali estão fazendo algo positivo. Quem quer o mal de alguém é uma minoria. Nosso povo é conhecido pela criatividade, pela solidariedade e pelo espírito colaborativo. E ficamos divididos entre existir e subexistir. Vemos a desvalorização de um monte de coisas que ajudam a construir um mundo melhor – educação, profissionais da saúde pública… Faço um apelo: não subestimem nossos jovens. Eles não aceitam qualquer coisa. Valorizem o professor, a cozinheira, o coletor de lixo. É muito importante não perder a esperança na força que nosso povo tem.