O banho com raiz queimada é o toque final de dois meses de trabalho. Antes do tingimento que confere o peculiar tom amarronzado à peça, as índias shipibos da região de Pucallpa, na Amazônia peruana, bordam, ponto a ponto, as linhas dos motivos inspirados pelas visões geradas pelo chá da folha da chacrona e do cipó ayahuasca – popularizados, no Brasil, pela igreja do Santo Daime, do Acre. O traçado dos desenhos segue padrões geométricos e labirínticos, nunca repetidos, que expressam a intrincada cosmovisão shipibo e os seus ícaros, as canções entoadas nos rituais com ayahuasca.

A tradição de desenhar, bordar e tingir os kenés constitui a base da vestimenta feminina, da cerâmica e dos acessórios shipibos. Depois de trabalhados, os tecidos de 1,30 m x 0,90 m, originalmente feitos de algodão de altíssima qualidade, eram amarrados à cintura. Nos dias de hoje, as agulhas, as linhas de bordado e até o tecido costumam ser industrializados, e as saias já não são usadas no cotidiano. Os costumes shipibos estão mudando – como em quase todas as sociedades tradicionais amazônicas –, mas sua arte permanece viva.

Os shipibos são um dos maiores povos da Amazônia peruana, cerca de 35 mil pessoas, 7% da população indígena do Peru. No passado havia três grupos falantes da língua pano, os shipibos, os konibos e os xetebos. Mas séculos de casamentos cruzados consolidaram uma identidade shipibo. Hoje, há umas 150 comunidades espalhadas nas margens do Rio Ucayali e inúmeras famílias urbanizadas marginalmente em torno dos portos de Pucallpa e Yarinacocha. Os shipibos nunca foram conquistados pelo Império Inca, mas não puderam resistir à colonização espanhola, à economia da borracha e ao cristianismo dos missionários franciscanos que chegaram à região na década de 1950 – de modo similar aos povos de língua pano culturalizados no Acre e na Amazônia brasileira.

Tal como no Brasil, muitas comunidades indígenas peruanas foram ignoradas, discriminadas e marginalizadas pela elite concentrada em Lima, que absorve a maior parte dos investimentos públicos. Nas últimas décadas, os shipibos sofreram com perda de território, insegurança alimentar, ausência de educação, carência de assistência médica e impactos ambientais crescentes com a entrada de empresas de gás e petróleo na região. Muitas índias viraram mães solteiras e a prostituição ronda as aldeias próximas a Pucallpa. A sociedade vive numa encruzilhada, ameaçada pela globalização e tendo que renegociar a relação com sua cultura e seu território. Para as mulheres que descobriram as vantagens de se organizar em cooperativas recentemente, os kenés são uma das poucas fontes de receita.

Uma dessas cooperativas em Yarinacocha, a Maroti-Shobo, já virou referência turística. Num local cedido pela prefeitura e com o apoio de uma organização não governamental norte-americana, os índios construíram um galpão de madeira dividido em estandes, onde as índias vendem bordados kenés, acessórios feitos com sementes e miçangas, cerâmicas e artesanato em geral.

Em 2012, quando conheceu a arte shipibo, a historiadora paulista Flora Gusmão ficou hipnotizada pela aura das peças e disposta a divulgar os kenés, apoiando a sobrevivência do grupo. Desde então, vem comprando regularmente os tecidos. Até o momento, produziu, no Brasil, três coleções de bolsas, assinadas pela estilista carioca Antonia Bernardes, joias e bijoux misturadas com couro, madeira e metais, desenhadas pela designer paulista Marianna Auerbach.

Feito em quantidade reduzida e respeitando a exclusividade de cada kené, o artesanato shipibo magnetiza mulheres em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Paris. “Passeando por Paris, entrei na Galerie Le Pré au 6. Quando a dona viu a minha bolsa, se interessou na hora por ela e me convidou para expor ali”, conta Flora. Em junho, a historiadora levou várias peças shipibos para a capital francesa, o sucesso de vendas se repetiu e surgiram interessados em trabalhar com a “matéria-prima” singular.

Tradições passadas

Mas o futuro dos kenés depende também das novas gerações shipibos. Já não existem muitas moças interessadas em aprender as habilidades tradicionais. Nas cooperativas notase pouca presença de jovens.

“Em geral, elas já não demonstram muito interesse pelos costumes da comunidade, por estarem mais identificadas com a cidade”, diz o advogado Alejandro Balcázar, que pesquisou os hábitos dos shipibo para a Universidade de Lima e escreveu Un Arte Shipibo Llamado Chonomëni. “Ocorre que as escolas das aldeias ensinam mais espanhol do que a língua nativa e as tradições não são transmitidas no ambiente escolar. Além disso, o índice de aprendizagem é limitado, porque as crianças costumam ir para a escola sem café da manhã”, ressalta. “Muitos passaram a viver como ciganos, removidos de várias aldeias sucessivamente e mal vistos pelos próprios peruanos”.

Outra ameaça presente é a religião evangélica. Marina Rojas, a líder da cooperativa Maroti-Shobo, admite que são poucas as artesãs que tomam ayahuasca atualmente, porque se converteram aos cultos evangélicos e adventistas que proíbem terminantemente o costume. Mas os mais velhos resistem. Uma das integrantes da cooperativa é a esposa do xamã – o líder religioso, curandeiro e conselheiro da tribo.

Várias mulheres sabem recitar de memória os ícaros, as canções xamânicas reputadas como medicinais e curativas, cantadas nas cerimônias com ayahuasca. “Para os shipibos, a planta sagrada da ayahuasca é um meio de interlocução dos homens com o mundo dos espíritos da selva. A crença está plasmada nas expressões culturais e no artesanato”, definem os antropólogos Pedro Mayor Aparicio e Richard Bodner, autores da enciclopédia Pueblos Indígenas de la Amazonía Peruana.

A arte kené está ligada ao conhecimento da biodiversidade e às “plantas com poder” da selva, reveladoras da cosmovisão shipibo. As mulheres que tomam a bebida e têm visões possuem mais prestígio do que aquelas que apenas copiam os desenhos das outras. Gotas de piri piri – extratos de cipós – também são colocadas no umbigo das adolescentes ou pingadas para “curar os olhos”, ou seja, para ativar a habilidade artística “de ver desenhos em seus pensamentos”. É assim que as mulheres descrevem a inspiração dos motivos labirínticos que fiam e bordam.

Felizmente, em 2008, o governo peruano protegeu o kené shipibo declarando-o como patrimônio nacional cultural. Foi patrimonializado também o uso cerimonial do chá da ayahuasca, em torno do qual se desenvolve a medicina e uma produção artística original na Amazônia peruana.

“A ênfase dada na resolução governamental sobre a inter-relação entre plantas, artes plásticas, práticas terapêuticas, cosmologia e educação colocou o patrimônio do kené em um âmbito muito mais amplo, como deve ser”, elogia a antropóloga da Universidade Católica do Peru Elvira Belaunde, no estudo Patrimonialización del Arte Indígena: el Caso del Kené Shipibo-Konibo de la Amazonía Peruana.

Que o nó nessa tradição represente o começo de um novo bordado kené e não o fim da linha.