Não é difícil encontrar história de pessoas que mudaram de vida por causa de um livro. Desde a Bíblia até 50 Tons de Cinza, passando por A Arte da Guerra ou O Nome da Rosa, alguém sempre tem um título marcante para lembrar. A inglesa Ella Berthoud acredita que a leitura pode realmente ser um marco de mudança ou de recuperação de uma pessoa. Então, assim como um médico que prescreve uma receita de medicamentos para tratar de doenças, Berthoud, formada em Literatura, apostou na recomendação de livros para a cura da alma, ou a leitura com propósito terapêutico.

A aposta de Ella não é exatamente uma novidade. Chamada de biblioterapia, a leitura com fins terapêuticos foi mencionada pela primeira vez na Grécia Antiga. Mas ganhou escala no fim dos anos 1910, quando foi amplamente utilizada em soldados com estresse pós-traumático. Hoje, ela é facilmente encontrada em hospitais, centros de reabilitação, prisões ou grupos de ajuda (veja o quadro na próxima página). Mas apenas no fim da primeira década dos anos 2000 é que passou a ser usada como terapia para ajudar pes­soas a lidar com os desafios emocionais diários da existência.

A School of Life (“Escola da Vida”, em tradução literal do inglês), fundada pelo filósofo pop francês Alain de Botton, liderou o resgate da técnica terapêutica, e é lá que Ella desenvolve grande parte das sessões de biblioterapia que realiza, ao lado de três colegas, Simona Lyons, Susan Elderkin e Estelle Tang. O trabalho de Ella Berthoud e sua equipe ganhou repercussão mundo afora e hoje elas também fazem sessões por skype para atender pessoas dos mais variados cantos do mundo. Ella contou a PLANETA que já existe um movimento para criar um certificado em biblioterapia da School of Life. O curso, para quem tiver interesse na carreira de biblioterapeuta, está previsto para o próximo verão no hemisfério norte, em junho de 2016.

Enquanto isso, Ella contabiliza milhares de pessoas – “acho que umas três mil”, diz – que passaram pelas sessões em busca de uma direção por meio de obras literárias. As angústias são as mais variadas. “Querer mudar de carreira, estar com a vida meio parada, começar uma nova família, enfrentar a crise do ninho vazio [quando os filhos saem de casa], algum tipo de perda ou ainda lidar com a aposentadoria são as situações que nos são apresentadas”, explica Ella. Até mesmo o planejamento de uma viagem pode envolver um processo de biblioterapia.
 

Perfil analisado

Primeiramente, o interessado responde a um questionário com perguntas sobre suas preferências e hábitos de leitura (desde a infância) e o que se passa na vida naquele momento. Isso já fornece informação suficiente para entender em que tipo de leitura o paciente está precisando se engajar. Na School of Life, a biblioterapia pode ser aplicada em crianças a partir dos 8 anos.

Após a avaliação inicial vem a prescrição, que se baseia tanto no perfil do paciente como na situação em que ele se encontra. “Vai depender bastante do tipo de leitor que aquela pessoa é, o que está se passando em sua vida e que tipo de leitura ele quer”, analisa Ella. “Algumas pessoas em processo de luto, por exemplo, tendem a ler livros mais escapistas. Já outras vão querer se aprofundar mais ainda em livros que tratam do mesmo sofrimento.”


À esquerda, a inglesa Ella Berthoud, uma das mais destacadas biblioterapeutas atuais. À direita, Paulo Scott, um dos escritores brasileiros indicados por ela

Em geral, a lista de recomendações pode agrupar biografias, ficção, filosofia, poesia ou romance. Erra quem pensa que o receituário é composto por títulos de autoajuda. Na School Of Life são priorizadas as obras de ficção e romance. “Prescrevemos esses títulos, pois acreditamos no poder de cura da leitura de ficção, que tem um poder transformador”, explica Ella.

Ao longo das sessões vão surgindo novos títulos. Cada sessão dura 45 minutos e custa 80 libras (cerca de R$ 390). Assim como no processo terapêutico tradicional, não há uma quantidade mínima de sessões exigida, e os pacientes podem continuar frequentando a terapia por tempo indeterminado. Existe ainda a possibilidade de sessões em grupo. A escolha pela ficção não é alea­tória. Ela se baseia na ideia de que o processo biblioterapêutico acende a reflexão e gera referência entre o leitor, a leitura e a sua situação. A ficção seria a forma mais adequada de passar por isso.

Pesquisas sobre os efeitos da leitura do cérebro apontam para diversas justificativas sobre os efeitos da biblioterapia. Entre elas a de que o ato de ler estimula a mesma área do cérebro de quando vivenciamos alguma experiência nova ou diferente. Outras mostraram que a leitura tem se colocado no nosso cérebro no mesmo nível de prazer provocado pela meditação e traz benefícios semelhantes ao estado de relaxamento.

Contudo, Ella Berthoud ressalta que para tirar proveito da biblioterapia, certamente o paciente terá que ser um leitor habitual. “Às vezes nós até conseguimos converter alguém à prática da leitura, mas você tem que ter alguma frequência mínima do hábito – caso contrário, a biblioterapia não funcionará com você”, orienta. Mas há uma alternativa: “A menos que a pessoa não se importe em ter alguém lendo para ela”.
 

Trabalho para especialistas

Para se habilitar como um biblioterapeuta é preciso ter um amplo conhecimento de literatura. Ella está no lugar certo: sua vida, conforme ela conta, foi dedicada à leitura. “Começou quando era criança. Fui para a universidade, cursei Literatura e continuei a ler constantemente. Eu e todos aqui lemos sobre livros o tempo todo e até mesmo ouvimos audiolivros ou fazemos leituras em grupo com nossos amigos e familiares.” A equipe da School of Life costuma receber dezenas de títulos enviados pelas editoras ou autores independentes ávidos por serem “receitados”.

Ella e sua colega Susan Elderkin também se engajaram na elaboração de um livro. As duas escreveram The Novel Cure: An A-Z of Literary Remedies (editado originariamente pela Penguin Books e ainda não disponível em português), uma espécie de dicionário médico que relaciona as “doenças” aos títulos literários adequados. Lançado em 2013 no Reino Unido, o livro já foi publicado em 18 países. O contrato de publicação permite que as editoras incluam na obra indicação de livros nacionais, com autores nativos.

Para o Brasil, Ella sugere Paulo Coelho, o autor brasileiro mais conhecido no mundo. Mas recomenda também o não tão célebre Paulo Scott, “um autor que tocou muitas pessoas com seu retrato sensível sobre o Brasil moderno”, e Jorge Amado, a quem ela chama de “Dickens brasileiro”, indicando ser uma grande leitura tanto para escapismo como para dar às pes­soas uma imersão na pobreza e na vida daquelas que lutam por alimentação e moradia.

No Brasil, são poucas as referências ao tema que não estejam ligadas à aplicação hospitalar. Chegou-se a ensaiar a criação de uma associação brasileira de biblioterapia, mas sem sucesso. A própria filial da School of Life em São Paulo ainda não tem previsão se o modelo de terapia aplicado na Inglaterra será trazido para o país.

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Alívio para os traumas da guerra

Depois da Primeira Guerra Mundial, soldados ingleses traumatizados que voltavam do front frequentemente recebiam a prescrição para passar por um processo de biblioterapia. “Bibliotecários chegaram a passar por treinamento para saber como orientar melhor a leitura para os veteranos da Guerra”, afirma Ella Berthoud. Depois, a técnica foi absorvida pelos hospitais, onde tem grande aplicação até hoje, espalhando-se para os asilos.