“Viver e deixar viver”, essa frase meio hippie, com vocação para letra de música, foi a base de fundação constitucional de um país, Liberland (“Liberlândia”), o mais recente território declarado estado soberano. Na prática, seria um país independente, que agora usa a frase como lema. “Nascida” em 15 de abril, a República Livre de Liberland não é resultado do desfecho de uma disputa de território, como no conflito na Faixa de Gaza, ou do sucesso de um movimento separatista, como os da Catalunha ou do País­ Basco, na Espanha. A bandeira amarela com uma faixa central preta que exibe no centro seu brasão de armas foi fincada e hasteada em uma área de 7 km² entre a Sérvia e a Croácia, no Leste Europeu, margeada a leste pelo rio Danúbio. Geopoliticamente, o território é croata, mas os fundadores de Liberland alegam que ele era considerado terra nullis, ou “terra de ninguém”, e que durante 25 anos nenhum país o reclamou.


O “presidente” Vít Jedlicka

Esse pedaço de terra não parece ser tão de “ninguém” assim. Antes de ser Liberland, ele era (ou é) Gonja Siga, e já figurava em mapas. Mas a área “sobrou” quando a Península dos Bálcãs se fragmentou após o colapso da Iugoslávia, nos anos 1990. Gonja Siga pareceu aos fundadores de Liberland o espaço ideal­ para pôr suas ideias em prática. O país se declara um Estado cujo pilar constitucional é a garantia das liberdades individual e econômica acima de tudo e exige que seus cidadãos respeitem os direitos individuais, as opiniões dos outros (independentemente de raça, etnia, orientação sexual ou religião), a propriedade privada, e que não tenham histórico criminal ou de participação em grupos nazistas ou comunistas.

“O cidadão modelo de Liberland seria Thomas Jefferson, por isso estabelecemos o país no dia de seu aniversário. Cidadãos poderão buscar a felicidade neste lugar onde podemos fazer tudo acontecer”, declarou o presidente e fundador de Liberland Vít Jedlicka, em coletiva de imprensa. O território nada mais tem que pequenas praias, floresta e alguns animais selvagens. Sua única construção, por enquanto, é uma casa em ruínas, que aguarda donativos para ser reformada e transformada em prédio histórico. A primeira infraestrutura organizada é um píer. Jedlicka garantiu que a internet está instalada, segundo ele, “antes dos banheiros”. Algumas tábuas sustentando uma cobertura de lona se tornaram o primeiro bar do local.

Segundo Jedlicka, a ideia para a nova nação veio do desejo de viver em um país onde pessoas honestas possam prosperar com o mínimo de interferência de um governo centralizado. Todos os serviços, como saúde, bombeiros ou alimentação, seriam operados voluntariamente. A ideia é que os cidadãos capacitados trabalhem sem tributação, em um nível de sociedade autorregulada. Apesar da liberdade acima de tudo, Jedlicka garante que há regras para a vida em sociedade que terão de ser respeitadas. “Claro que roubos, assassinatos e estupros são totalmente proibidos, mas uma grande gama de coisas reguladas ou ilegais em vários lugares serão perfeitamente legais em Liberland”, explicou à imprensa.

 

Um empreendimento

Liberland foi fundado por empresários da Associação de Colonização de Liberland, definida por eles como uma “associação idealista, dedicada ao trabalho prático de estabelecer um Estado livre e soberano e uma colonização permanente dentro dele”. O líder dessa associação é Vít Jedlicka. Eleito presidente de Liberland com dois votos – o da esposa (agora primeira-dama) e o de um colega –, esse político tcheco de 31 anos, anti-União Europeia, é membro do partido de extrema direita Cidadãos Livres da República Tcheca. Em 2014, ele tentou, sem êxito, eleger-se para o Parlamento Europeu.


Bosques e praias às margens do rio Danúbio compõem a paisagem de Liberland

Uma experiência-chave levou Jedlicka a criar Liberland: a falência da empresa de seu pai, após o banco central da República Tcheca ter elevado arbitrariamente sua taxa de juros em 25%. “Eu era muito jovem na época e foram tempos difíceis para minha família, então eu queria descobrir o que realmente estava por trás disso, e fui estudar na Cevro Institut, única universidade libertária da Europa Central”, conta. Pela página oficial do país no Facebook, a rotina de Jedlicka está mais próxima à de um homem de negócios do que à de um político ou pacifista. São seguidas reuniões para atrair investimentos.

Em uma conversa recente feita via uma rede social, Jedlicka se declarou presidente de Liberland e CEO de Liberland Corporation. Justamente por se declarar livre de taxas e impostos, Liberland tem sido vista como uma manobra para criar um paraíso fiscal. Jedli?ka aproveita suas viagens para reunir-se com grupos de pessoas que veem com entusiasmo a nova nação. Ele afirma ainda que está em contato com cerca de 50 países para obter reconhecimento.

 

Futuro incerto

Até o momento, Liberland diz ter sido reconhecido como país pela Sérvia (e pelo Google Maps). “Na verdade, como a área não pertence à Sérvia, [os sérvios] não se importam e devem encarar isso como uma brincadeira”, diz Leonardo Paz, professor do Ibmec e coordenador de Estudos e Debates do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri-FGV). “Não há um centímetro de território no mundo hoje que não seja reclamado por algum país”, afirma.

Liberland já enfrenta seu primeiro problema diplomático, com a Croácia. Para o governo croata, o novo país é, formalmente, uma invasão de território. Jedlicka chegou a passar uma noite na cadeia ao ser preso quando entrava em “seu” território. Autoridades croatas impediram um grupo de jornalistas de visitar o local. Pouco após a proclamação de Liberland, a bandeira fincada teria sido retirada da área. “Sem o aval da Croácia, não há viabilidade para a criação de Liberland”, afirma Paz. “Para ser reconhecida, uma nação precisa somar os fatores população, território, constituição e reconhecimento internacional, e Liberland parece não ter nenhum deles solidamente.”


A comitiva presidencial em uma visita à vizinha Sérvia

Apesar disso, Liberland tem sido vista como uma esperança de vida nova para muitos. Jedlicka e seus aliados alegam já ter recebido mais de 300 mil solicitações de cidadania até o fim de maio – curiosamente, boa parte delas vindas do Egito. Muitos foram atraídos pela promessa de um país livre. “Na verdade, essa liberdade anunciada de não intervenção do Estado é uma forma de se liberar das obrigações de um governo, como saúde e educação”, avalia Paz.

O universitário Gabriel Vogel, do Rio de Janeiro, é um dos que esperam com ansiedade um recomeço em Liberland. “Gostaria de morar lá não apenas pela oportunidade de começar uma vida nova em um lugar com menos impostos e pressões políticas, mas também de fazer parte da história, e de uma história bem bonita, pois, após uma guerra entre dois países, nasce no meio deles um cujo lema é a liberdade acima de tudo”, afirma. Se for aceito como cidadão, Vogel pensa em investir em uma livraria no local.

Jedlicka diz também que recebeu várias ofertas de aporte financeiro para a constituição de uma infraestrutura, inclusive de telecomunicações. Mas, em suas entrevistas, ele sempre tem de garantir que sua proposta não é uma piada. Restará à história contar se Liberland se tornou a pequena grande nação a que se propôs.