Marie era a última praticante do eyak, idioma integrante da lista de 200 línguas mortas nas três últimas gerações.

Não são apenas espécies animais e vegetais que andam ameaçados de extinção em nossos tempos. Outros organismos, estes culturais, também correm sério risco de desaparecer do planeta: as línguas. Uma delas, o eyak, do Alasca, morreu no ano passado, com o falecimento de Marie Smith Jones. Dezesseis anos antes, o ubykh, da Turquia, foi extinto no último suspiro dado por Tevfik Esenç; o mesmo ocorreu em 1974, quando a morte de Ned Maddrell marcou o fim do manês, idioma falado na Ilha de Man (situada no Mar da Irlanda). Ao longo das três últimas gerações, das mais de 6 mil línguas conhecidas, cerca de 200 desapareceram, segundo o novo Atlas Unesco das línguas em perigo no mundo, lançado este ano. Esse destino pode ser seguido por vários outros idiomas: 538 estão em situação crítica, 502 seriamente ameaçados, 632 sob ameaça e 607 em estado vulnerável, aponta o Atlas.

Alguém poderia alegar que essas extinções em nada mudam o panorama geral. O Alasca, por exemplo, é um Estado norte-americano, e sua língua oficial é a do país mais importante do mundo. Por que, então, lamentar a morte do eyak, um idioma que quase ninguém usava? “Cada língua é um universo, cuja estrutura de pensamento é única”, explica Christopher Moseley, linguista australiano e diretor da redação do Atlas. “Com efeito, suas associações, suas metáforas, suas modalidades de pensamento, seu vocabulário, seu sistema fonético e sua gramática são peculiares e funcionam conjuntamente para formar uma maravilhosa estrutura arquitetônica que, por ser tão frágil, poderia desaparecer, facilmente, para sempre.”

Como sublinhou o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, “a extinção de uma língua implica o desaparecimento de numerosas formas de patrimônio cultural imaterial, em particular, da preciosa herança constituída pelas tradições e expressões orais – poemas e lendas, além de provérbios e anedotas – utilizadas pela comunidade que falava tal idioma. Essa extinção prejudica também a relação que a humanidade estabelece com a biodiversidade porque as línguas veiculam numerosos conhecimentos sobre a natureza e o universo”. À semelhança dos seres humanos, as línguas nascem e morrem – mas nunca se extinguiram de forma tão acelerada quanto nas últimas décadas, observa a equatoriana Marleen Haboud, especialista em línguas andinas. “Tal constatação implica não só a perda de palavras ou de expressões, mas também de um acervo de conhecimentos e de maneiras de conceber o mundo e de se comunicar com ele, de recriar a história, de estabelecer intercâmbio com outros seres humanos, incluindo os idosos assim como as gerações mais jovens, além de conceitualizar o tempo, o espaço, os seres vivos, a vida e a morte”, afirma. “Cada língua é um universo; assim, a extinção de uma palavra acarreta inevitavelmente o desaparecimento de narrativas únicas e insubstituíveis.”

Moseley ressalta que o atual esforço de preservação das línguas se tornou mais plausível hoje por avanços científicos determinantes. Pela primeira vez, por exemplo, os linguistas têm consciência do número de idiomas existentes no mundo. Além disso, eles estão próximos de conquistar uma melhor compreensão não apenas das forças que as fragilizam e as levam ao esquecimento, mas também dos meios mais eficientes para controlar esses fatores.

O Atlas mostra que o desaparecimento de línguas ocorre em todas as regiões e em condições econômicas bem variáveis. Na África subsaariana, região em que cerca de 2 mil línguas (quase um terço do total de idiomas do mundo) são faladas, é provável que, no mínimo, 10% delas sejam extintas nos próximos 100 anos. Segundo a obra, Índia, Estados Unidos, Brasil, Indonésia e México – que possuem uma grande diversidade linguística – são também os países que contam com o maior número de línguas ameaçadas.

Se 200 idiomas morreram nas últimas décadas, 199 estão bem perto disso: as pessoas que fazem uso de cada um deles não ultrapassam dez. Outros 178 não têm muito a comemorar, pois o número de seus usuários está entre 10 e 50. Mas esse cenário não chega a representar um cataclismo linguístico. Papua-Nova Guiné, por exemplo, é o país com a maior diversidade linguística da Terra (mais de 800 idiomas) e também figura como um dos que, proporcionalmente, têm um reduzido número de línguas ameaçadas (88). Por outro lado, alguns idiomas, embora classificados como extintos no Atlas, têm sido objeto de uma ativa revitalização, tais como o córnico (da Cornualha, região do sudoeste da Inglaterra) e o sîshëë (da Nova Caledônia, ilha do Pacífico). É possível, assim, que eles voltem a ser bem vivos, aproveitando-se de exemplos de revitalização notáveis, como o catalão (da Catalunha, região nordeste da Espanha), o galês (do País de Gales) e o hebraico (hoje língua oficial de Israel).

Pela primeira vez, os linguistas sabem quantos idiomas há no mundo. eles também já compreendem melhor o que fragiliza as línguas e como se pode defendê-las

Radiografia das línguas

O Atlas Unesco das línguas em perigo no mundo (3ª edição; sua versão online está disponível no endereço http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=00206), lançado este ano, tem o objetivo de conscientizar políticos, comunidades e o público em geral a respeito do perigo corrido por vários idiomas e da necessidade de preservar a diversidade linguística do mundo. Organizada por mais 30 linguistas e financiada pelo governo da Noruega, essa versão da obra apresenta dados atualizados relativos a 2.511 línguas em perigo. Ela serve, assim, como uma ferramenta de monitoramento do status de idiomas em perigo e das tendências da diversidade linguística em nível mundial. Poderá ser completada, corrigida ou atualizada permanentemente, graças à colaboração de seus usuários. Como se trata de uma ferramenta digital interativa, o Atlas permite proceder a pesquisas de acordo com vários critérios. Além do registro “extinta” (a partir de 1950), ele classifica as línguas ameaçadas de extinção segundo quatro níveis de vitalidade: vulnerável, sob ameaça, seriamente ameaçada e em situação crítica. A Unesco promete para os próximos meses uma versão impressa da obra, a ser publicada em inglês, francês e espanhol.

Símbolo da arrogância humana, a diversidade linguística associada à Torre de Babel (página ao lado, abaixo, à esquerda) representa também um valioso patrimônio cultural imaterial. À direita, nativos de Papua-Nova Guiné, país com mais de 800 idiomas. Abaixo, à direita, índio pataxó do Brasil, país no qual estão ameaçados 190 idiomas, todos indígenas.

Deve-se salientar ainda que políticas linguísticas favoráveis têm ajudado a aumentar o número de falantes de diversas línguas autóctones. Inserem-se nessa condição o maori, na Nova Zelândia, o aimará central e o quíchua, no Peru, e o guarani, no Paraguai, afora alguns idiomas do Canadá, EUA e México.

O Atlas mostra também que, por razões econômicas e em decorrência de políticas linguísticas diferentes ou de fenômenos sociológicos, o grau de vitalidade de uma língua é variável segundo os países em que ela é falada. Grandes línguas com um passado colonial, como o inglês, o francês e o espanhol, logicamente têm uma vitalidade invejável, mas Christopher Moseley considera “ingênuo e simplista” afirmar que elas são sempre responsáveis pela extinção de outros idiomas. “O fenômeno tem a ver com um equilíbrio de forças sutil; aliás, o Atlas permite que o usuário possa compreender melhor tal equilíbrio”, afirma.

Diversas razões levam uma língua a morrer, e entre as principais está o desinteresse das novas gerações por ela. Com isso, a morte dos falantes mais velhos acaba por sepultá-la. Na África Oriental, por exemplo, o suaíli – falado desde o sul da Somália até o norte de Moçambique – ameaça 30 dialetos na Tanzânia. O fato de ter conquistado a posição de língua comum numa ampla região africana torna seu aprendizado muito interessante, em termos profissionais, para a grande maioria dos jovens dos países onde é utilizado (Tanzânia, Quênia, Ruanda, Burundi, Uganda, República Democrática do Congo, Somália, Moçambique e Ilhas Comores). Isso, naturalmente, relega outras línguas a plano secundário nessa região.

No mínimo, afirmam os linguistas, o idioma deve estar registrado de forma escrita para não desaparecer de vez. Isso permite que ele, mesmo extinto, ainda seja passível de um retorno. O latim é um exemplo disso: língua morta há séculos, ainda hoje é estudado e vez por outra seu retorno ao currículo escolar brasileiro é cogitado.

O cenário brasileiro

Segundo o Atlas da Unesco, 190 línguas estão ameaçadas no Brasil, todas elas indígenas. Desse total, 12 já foram extintas e as restantes correm perigo. Para uma das principais fontes da Unesco na preparação do Atlas, o antropólogo e linguista norte-americano Denny Moore, colaborador do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e coordenador da área de linguística do Museu Emílio Goeldi, de Belém, esses números devem ser vistos com reserva. Em depoimento à revista IstoÉ, ele observou que muitas das línguas mencionadas na obra são extremamente parecidas e poderiam ser avaliadas pelos linguistas como sendo um único idioma. “Eu diria que os índios brasileiros falam 150 línguas. O gavião de Rondônia e o zoró, por exemplo, são tão semelhantes quanto o português falado no Norte e o falado no Sul do País”, comenta. Outro detalhe salientado por ele é a ausência no Atlas, por falta de dados sistematizados, de cerca de 20 línguas, faladas por descendentes de imigrantes e de grupos afro-brasileiros.

O desinteresse das novas gerações por uma língua é um dos principais fatores que a levam a desaparecer. o falecimento dos mais velhos consolida essa morte

Políticas linguísticas favoráveis têm facilitado a preservação de idiomas autóctones, como o quíchua e o aimará, no Peru (página ao lado, no alto, à esquerda, e no centro, à direita). A África (fotos restantes) é o continente no qual mais idiomas correm riscos. O suaíli, por exemplo, falado por povos da África Oriental, como os masai (abaixo, à direita), ameaça 30 dialetos na Tanzânia.