Saiba como identificar riscos e avançar na conquista do autocontrole.

Sofro de dependência de amor e sexo e há 20 anos estou em tratamento. Antes de buscar ajuda, sempre saía de casa com o objetivo de conquistar alguém e chegava a perder o controle de quantas vezes ou com quem tinha feito sexo durante a semana. Essa obsessão foi muito destrutiva para a minha vida. Não tinha capacidade de trabalho e de estudos, tive crises emocionais, contraí doenças venéreas e me isolei. Durante boa parte do tempo, me sentia culpado e sujo.” 

O depoimento é de um homem de 44 anos que prefere ser identificado apenas pela sigla R. Seu relato atesta as dificuldades vivenciadas pelos dependentes que lutam diariamente para vencer a compulsão por drogas, álcool, sexo, compras, jogos e outros comportamentos. As batalhas são realmente diárias. “Dois anos, quatro meses e 23 dias”, responde F., de 35 anos, quando questionado sobre seu afastamento do álcool e das drogas. “Fui dependente de álcool, maconha, solventes, cocaína e crack. O meu fundo do poço foi o crack”, relata.

Segundo o psiquiatra Marcelo Ribeiro, pesquisador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a dependência química está relacionada com uma alteração no sistema de recompensa do cérebro, a área que é ativada quando sentimos prazer. “Ao ser ativado seguidas vezes pelo uso da droga, ocorre uma espécie de dessensibilização do sistema para outros estímulos. Toda a atenção da pessoa se volta para o prazer proporcionado pelo consumo da substância”, explica. 

Mas esse componente não funciona sozinho. Certas substâncias têm maior potencial para causar vício e dependência que outras, como é o caso da nicotina e do crack em comparação com o álcool. A maneira como a droga é consumida também faz diferença. Uma pessoa pode cheirar cocaína esporadicamente sem se tornar um dependente, o que é mais difícil de acontecer com aquele que fuma a cocaína no crack, exemplifica Ribeiro. Por fim, também devem ser levados em consideração o histórico e as condições socioculturais de cada pessoa.  A mesma carga histórica vale para a dependência comportamental. O psiquiatra Aderbal Vieira Junior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp, explica que o mais comum é que a compulsão apareça entre pessoas que já tenham uma relação especial com determinado ato ou coisa.

Dependente alimentar em tratamento há quatro anos, D., 43 anos, conta que desde os 7 anos escondia doces em casa para comer escondida, o que mais tarde se transformou em uma compulsão por açúcar, farinhas e refrigerantes. “Cheguei aos 115 kg, com 1,68 m, e tive problemas pulmonares severos. Fui internada e tive muito medo de não ver a minha filha crescer”, desabafa. 

O porquê dessa tendência à compulsão é o que todos tentam descobrir quando procuram tratamento, enfatiza o médico. “Ou seja, o que aquele ato significa para a pessoa; por que, diante de um problema, de uma briga com o chefe, por exemplo, ela sai às compras ou se masturba como se isso fosse resolver a situação”, conta. “O ato indica que alguma coisa está falhando em outra área e que aquele comportamento está servindo a outro propósito”, acrescenta. 

Não há um padrão para o desenvolvimento do distúrbio, mas sabe-se que ele é gradual e, em nível avançado, torna-se evidente para todas as pessoas próximas. Nelson Almeida Pereira, 46 anos, conta que foi obrigado a se tratar por ordem de um antigo empregador. “Eu não enxergava o problema”, confessa.

Segundo a psiquiatra e sexóloga Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), um comportamento de alerta é o isolamento da pessoa. “O tempo que a pessoa dedicava ao convívio familiar, às atividades de lazer e mesmo ao sono vai ficando cada vez mais escasso. Muitos deixam até de comer e adoecem”, ressalta.“Em um dado momento, a pessoa não consegue mais esconder o problema”, diz.

Mesmo no caso das compulsões comportamentais, também podem surgir sintomas clínicos. Um dependente afetivo pode ficar deprimido, manifestar insônia e tensão muscular e até sofrer de taquicardia diante de uma ameaça de separação, segundo a psicóloga Andrea Lorena, colaboradora dos setores de pesquisa e tratamento do amor patológico e ciúme excessivo do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso da USP.

Comportamento latente

A reabilitação demanda, principalmente, muita força de vontade por parte dos pacientes. No caso da dependência química, o primeiro passo é interromper totalmente o uso da substância para promover uma desintoxicação do organismo. Corte radical. Muitos casos requerem internação e tratamentos intensivos para enfrentar o vício, que pouco a pouco vão sendo relaxados para que as pessoas readquiram a autonomia sobre suas vontades. 

Já os dependentes comportamentais têm de aprender a se relacionar de forma diferente com seus objetos de desejo. “Ninguém, ou praticamente ninguém, vive sem sexo ou sem comida, por exemplo”, ressalta Vieira Jr. A conquista do autocontrole pode levar meses ou anos e, em muitos casos, envolve a ajuda de médicos, psicólogos e terapeutas das mais diversas linhas. No ProSex, alguns casos também são tratados com a prescrição de antidepressivos, que têm o efeito colateral de controlar a libido, além de estabilizadores de humor e outros medicamentos. 

Não se fala em cura. Portanto, a qualquer momento pode haver uma reincidência. “A dependência não pode ser curada, mas, como outras doenças, pode ser detida. No início da recuperação, são muito comuns os deslizes”, conta R., que procurou auxílio nos Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (Dasa), cujo programa de recuperação se baseia na mesma abordagem dos Alcoólicos Anônimos. 

Diversos grupos anônimos de ajuda mútua seguem essa linha, que tem entre suas premissas controlar a compulsão dia por dia. “Não existe parar totalmente. Eu simplesmente parei de beber só por hoje. Ontem já passou e amanhã pertence a Deus”, diz F., que frequenta reuniões dos Narcóticos Anônimos e dos Alcoólicos Anônimos. O apadrinhamento, em que um assume o papel de ajudar  o outro, e as reuniões em grupo são outras das ferramentas, assim como o apoio de familiares e amigos. 

“Há muitas técnicas que ajudam o dependente. Mas ninguém deixa de ser dependente”, explica Ribeiro. “A essência de todo tratamento é fortalecer a ideia de não usar mais. Esse desejo tem que se sobrepor às solicitações do sistema de recompensa”