Com água trazida do Córrego da Misericórdia e com vassouras de folhas, as mulheres se esmeram em deixar impecável a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Mais tarde, com lenços nas cabeças e saias rodadas de chita, trocam a faxina pela dança. É início de outubro, data da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte, a mais importante desta cidade mineira no Vale do Jequitinhonha. Unindo tradições católicas a ritos herdados dos escravos, os festejos incluem cavalhada, congada, comidas típicas e procissões. Tudo ao som da sanfona, da viola e dos tambores.

Na segunda-feira, os futuros reis são coroados e firmam o compromisso para a próxima festa

No início do século 18, durante o ciclo do ouro em Minas Gerais, escravos e negros alforriados foram chegando ao lugar em busca do metal precioso. Em seu rastro, a Igreja. É dessa época a provável formação da Irmandade do Rosário, grupo que promove a festa. Quase três séculos depois, o ouro já não existe, mas os negros permaneceram e, representando mais de 80% da população local, ainda preservam em seu cotidiano muito de sua cultura ancestral.

Mas, contrariando as expectativas, são representações bastante distantes das raízes africanas. Não exisdifitem sequer registros que comprovem de que região da África descendem. A antropóloga Liliane Porto, que há vários anos estuda a religiosidade na cidade, explica que o que se preserva são “as tradições criadas por seus ancestrais durante o cativeiro”. Traduzindo: as manifestações permitidas pelos brancos durante o período de escravidão, mas que traziam implícita a religiosidade negra, como a presença dos reis da festa, uma velada referência à monarquia nas tribos africanas. E a mais importante manifestação dessa cultura é a Festa do Rosário.

O ápice das comemorações acontece no sábado à noite. É o mastro a cavalo. Durante todo o dia é possível ver os cavaleiros trocando as ferraduras e aparando as crinas de seus animais. E mulheres, de bóbis, para deixar os cabelos lisos. Espécie de cavalhada, o ritual é uma encenação de uma suposta cruzada. Em frente à Igreja do Rosário, onde ocorre, milhares de pessoas se amontoam para ver mais de perto. De um lado, o rei mouro e seu exército montado, de uniforme vermelho, negociam com o rei cristão, com seus cavaleiros de azul.

Em frente à Igreja do Rosário, o andor com a santa tida como protetora dos escravos

MILTON, QUE REPRESENTA o rei cristão todos os anos, conta que o texto é fácil, “mas a emoção é realmente muito forte. É como se eu fosse o rei de verdade”. É sua a responsabilidade de converter os mouros e recuperar a bandeira da Virgem do Rosário, roubada pelos inimigos. Quando acaba a encenação, as luzes são apagadas e os cavaleiros correm em disparada ao redor da igreja. A única luz, que permite vislumbrar apenas suas silhuetas, vem dos fogos de artifício.

Mas, quem acha que apenas um dia é suficiente para a comemoração, está enganado. Na verdade, o evento começa a ser preparado com um ano de antecedência, quando se dá o primeiro passo, a escolha dos reis da festa. A eles cabem as despesas com as roupas e com a comida, fartamente distribuída. A candidatura normalmente é o pagamento de promessas feitas à santa.

Cabe ao rei CONVERTER os MOUROS e recuperar a bandeira da VIRGEM, ROUBADA pelos inimigos

Os pratos típicos, como angu e frango, são preparados nas casas e distribuídos à população

Aos 16 anos, Graziano não tinha exatamente uma promessa, mas cumpria o desejo de sua avó, já falecida, quando se candidatou. Membro da irmandade desde os 3 anos de idade, o jovem tímido faz parte de uma família que há muitos anos participa da festa. Antes de sair às ruas, com seu manto e coroa, recebe de Sônia, a orgulhosa mãe, os últimos retoques.

Apesar da seriedade do compromisso, Graziano não difere dos outros rapazes de sua idade. E sabe que dificuldades o esperam. Significativamente rural, o município de Chapada do Norte, como a maioria no Vale do Jequitinhonha, não oferece muitas opções de estudo e trabalho.

Praticamente em todas as casas de Chapada do Norte, existe alguém que partiu para cidades maiores, quase sempre no Estado de São Paulo. Vão em busca do sonho de uma vida melhor. Mas, em outubro, quase todos estão de volta. A socióloga Vanda Silva, que tem nos jovens da cidade seu objeto de estudo, explica que, mais importante que a religiosidade, é essa possibilidade de encontro social que atrai as pessoas.

O som da sanfona embala a festa

Da cidade grande ou da zona rural, vêm idosos e jovens. Como a aposentada Maria Emília, a Lia. Aos 62 anos, os últimos 40 passados na capital paulista, ela não se importa com as 20 horas de ônibus para voltar à sua terra natal e ver de perto os festejos: “Quando vou, levo meu pai junto. Ele está com 92 anos, porém faz questão de vir.” Da janela da casa de sua mãe, Lia observa a movimentação festiva.

MESMO NOS POUCOS momentos em que a cidade parece quieta, o trabalho é intenso no interior das casas dos monarcas. É preciso matar as galinhas, cozinhar o fubá, preparar o licor, aprontar os biscoitos: toneladas de comida são preparadas. É por isso que um dos momentos mais esperado é o angu. Sob a responsabilidade da rainha, o angu, que vem acompanhado por diversos molhos, é servido na rua para a população. Já ao rei cabe a distribuição de doces. Da janela de casa, ou mesmo de cima de um caminhão, centenas de potinhos vão sendo enchidos com doce de mamão, leite e feijão. Ah, ainda tem o licor, que é distribuído generosamente, além das quitandas (biscoitos, bolos e sequilhos) e das prendas do leilão.

Cavaleiros “mouros” preparam-se para o combate com os cristãos.

Já o domingo é o dia mais religioso. As meninas se vestem de anjos e os reis fazem o reinado. A festa chega ao fim. Ou melhor, quase: a segunda- feira é o dia dos candidatos a próximos reis receberem as coroas e firmarem compromisso para a próxima festa. Só então a cidade volta ao seu estado de tranqüilidade habitual, com suas casinhas antigas, poucos carros, compadres conversando nas janelas, a lida na roça. O cativeiro já ficou para trás. E, a majestade, apenas volta daqui a um ano.