Sinônimo de lazer e de momentos de dolce far niente, as férias também podem significar uma verdadeira tortura para quem sofre de cinetose, uma alteração da percepção dos movimentos. Também conhecido como enjoo de movimento, o distúrbio é um tipo de labirintopatia que provoca vários malestares: tontura, náuseas (com ou sem vômito), sudorese, palidez, desconforto físico, aumento da salivação, hipersensibilidade a odores, dor de cabeça, perda da capacidade de concentração, inabilidade em realizar tarefas e sensação de desmaio, entre outros sintomas. Acostumadas a passar mal durante as viagens e até mesmo em brinquedos de parques de diversões, muitas dessas pessoas simplesmente descartam o prazer proporcionado por essas atividades.

“A cinetose afeta as pessoas em movimento, sobretudo quando viajam de avião, trem, barco ou carro”, explica o médico Pedro Pinheiro, especialista em medicina interna da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “O distúrbio do movimento normalmente ocorre quando o corpo está parado e o entorno da pessoa está em movimento ou o inverso”, ressalta a otoneurologista Roseli Saraiva Moreira Bittar, professora-assistente do Setor de Otoneurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. O cérebro se confunde com as informações conflitantes entre o labirinto e a visão, percebida como tontura.

“Esses sintomas se manifestam com mais frequência durante as viagens de navio, quando muitos passageiros passam mal”, acrescenta Fernando Freitas Ganança, otoneurologista, professor- adjunto do Ambulatório de Otoneurologia da Universidade Federal de São Paulo. “Mesmo quem está acostumado a viajar de barco pode vir a sofrer com a cinetose, especialmente se o mar estiver agitado”, explica.

Quer em mar, quer em terra, qualquer indivíduo pode ser afetado pelo enjoo do movimento, embora existam pessoas mais propensas ao distúrbio. O motivo disso é o modo de funcionamento do nosso cérebro. Uma de suas principais tarefas é interpretar as mensagens do meio externo recebidas pelo corpo. Para saber sua posição em relação ao espaço, ou se está ou não em movimento, o cérebro precisa receber e interpretar informações de três sistemas diferentes: visão, ouvido interno e propriocepção, também chamada de capacidade cinestésica. Esse conjunto de órgãos fornece informações para o sistema nervoso central, que as interpreta e identifica a posição do corpo no espaço, transmitindo-nos a sensação de equilíbrio e segurança.

Cabe à visão, por exemplo, informar o cérebro sobre o ambiente. Sua tarefa não é difícil: basta estar com os olhos abertos para saber se estamos nos movimentando ou não. “A visão, porém, pode nos pregar boas peças e informar ao cérebro que estamos nos movimentando, quando na verdade estamos parados”, diz Pinheiro.

Sentidos traiçoeiros

O exemplo mais comum, já vivenciado por muitos motoristas, é aquela sensação que, às vezes, se tem, quando se está parado em um semáforo, de que o carro está andando para trás apenas porque o veículo ao lado andou um pouco para a frente. “A visão do outro automóvel indo para a frente pode fazer com que o cérebro interprete que é o nosso carro que está andando para trás, fazendo-nos instintivamente pisar no freio”, explica Pinheiro.

Quanto ao ouvido interno, ele abriga o labirinto, um órgão que faz parte do aparelho vestibular, responsável pela manutenção do equilíbrio. O labirinto é um conjunto de arcos semicirculares, com líquidos em seu interior. Interpretada pelo cérebro, a movimentação desses líquidos ajuda a identificar os movimentos (angulares, acelerações lineares e forças gravitacionais) e a nos manter em equilíbrio. Também é o labirinto que informa ao cérebro sobre a direção dos movimentos da cabeça e do corpo (para cima, para baixo, de um lado para o outro, para a frente, para trás e rotações).

Já a propriocepção, ou cinestesia, é a capacidade de o cérebro reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação, a força dos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais, sem uso da visão. É a propriocepção que nos permite, de olhos fechados, saber se estamos com as pernas erguidas, com o corpo inclinado para a frente ou com os braços dobrados. “Quando todos esses sistemas funcionam de maneira congruente, o equilíbrio é mantido sem problemas. No entanto, quando há conflito entre a informação do labirinto e a do sistema visual, o cérebro se confunde e surgem náuseas e mal-estar – a cinetose”, diz Ganança.

Ninguém está imune ao enjoo de movimento. O que varia é a intensidade do estímulo necessária para desencadear os sintomas. A cinetose pode ocorrer em qualquer fase da vida, mas raramente ocorre antes dos 2 anos de idade. Contudo, tem maior incidência entre as mulheres, as grávidas e portadores de labirintite, enxaqueca e ansiedade. Segundo Roseli, as mulheres apresentam labirintopatia de formas mais prevalecentes do que os homens. Isso pode ocorrer por fatores hormonais. “Sabe-se também que as mulheres costumam procurar mais assistência médica que o homem, o que poderia favorecer a prevalência desse diagnóstico no gênero feminino”, completa a médica.

Diagnosticada a cinetose, o tratamento é feito com remédios que previnem o enjoo e as crises, além de exercícios de reabilitação do equilíbrio. A reabilitação vestibular é uma espécie de fisioterapia do labirinto, com o objetivo de apressar o amadurecimento e a compensação do sistema de percepção. “Em geral, os programas de retreinamento desse conflito entre os sistemas visual e vestibular apresentam ótimo resultado”, afirma Ganança.

Dicas úteis

Ninguém deve se privar de um passeio em virtude da cinetose. Para prevenir o distúrbio, alguns truques podem ser úteis. Entre eles, sentar no banco da frente do transporte e prestar atenção ao caminho, manter os olhos fixos em um ponto imóvel, não olhar objetos ou situações em movimento (como as ondas do mar, por exemplo), não ficar muito tempo em jejum e ter cuidado com as dietas radicais.

 

Fernando Ganança: programas de reabilitação do conflito entre os sistemas visual e vestibular funcionam

 

Em contrapartida, também não se deve comer em demasia antes de se expor a situações estimulantes, como andar de barco, em carrosséis e montanhas-russas e viajar de carro. “O ideal é ter uma alimentação balanceada e comer a cada três horas”, orienta Roseli. Outros truques são aumentar a ingestão de água (recomenda-se beber pelo menos seis copos por dia), evitar o café, as bebidas alcoólicas, os doces e os alimentos muito gordurosos e fugir de lugares abafados, preferindo sempre locais bem ventilados.

LABIRINTITE DESESTABILIZADORA

Labirintite é o termo popular para as labirintopatias, os distúrbios do labirinto, o órgão responsável pelo equilíbrio e a audição. O ouvido possui dois componentes fundamentais: a cóclea 1 , responsável pela audição, e o vestíbulo 2 , responsável pelo equilíbrio – ambos formam o labirinto 3 . O equilíbrio corporal garante estabilidade, harmonia e precisão nos movimentos, produzindo segurança e conforto. O comprometimento do labirinto provoca tonturas, desequilíbrio, surdez, zumbidos e vertigens (tontura rotatória). Vertigens intensas podem gerar náuseas, vômitos e até uma sensação angustiante de morte iminente.

Deve-se ainda evitar o contato com cheiros como o do motor da embarcação, do escapamento do carro e de cigarro. “Nos passeios de barco, quem sofre de cinetose deve se posicionar nos lugares mais próximos ao meio da embarcação, onde balança menos”, prossegue a otoneurologista. “O mais importante é tentar transmitir pela visão a mesma informação de movimento transmitida pelo ouvido interno”, completa Pinheiro. Por isso, fixar o olhar em pontos próximos ao horizonte é sempre melhor. No avião, por exemplo, a pessoa deve ficar na janela e olhar a paisagem, procurando ainda se sentar nos assentos próximos às asas, pois sofrerá menos movimentos.

Já no navio, o ideal é se esquivar de cabines sem janelas e olhar para o horizonte, porque isso transmite mais sensação de movimento do que ficar dentro do quarto, olhando para a parede. Nas viagens de carro, é melhor sentar no banco dianteiro e olhar sempre para a frente, em direção aos objetos mais distantes no horizonte. “A pessoa nunca deve se posicionar de costas para a direção em que o veículo se locomove nem ler durante as viagens, principalmente em viagens de automóvel”, ensina Pinheiro.

Se, mesmo seguindo essas recomendações, o viajante ainda passar mal, há algumas orientações sobre como ele deverá agir durante uma crise. O primeiro passo é ir para um lugar ventilado e permanecer sentado, de olhos abertos, olhando para um ponto fixo na parede. Em uma crise, nunca dirija ou manuseie máquinas ou equipamentos cortantes. Por último, embora as farmácias comercializem dezenas de medicamentos contra os males da cinetose, nunca se automedique. Procure um médico.