Para Usha Pitts, cônsul americana no Recife, King não tem fim.

Quando a histórica marcha pelos direitos civis chegou ao Lincoln Memorial em Washington, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King não fez o discurso agressivo que muitos esperavam, ávidos por encerrar uma longa e dramática história de discriminação racial. O pastor protestante falou sobre um sonho: a necessidade de união e coexistência pacífica entre negros e brancos. Passados 50 anos, I have a dream, como ficou sendo conhecido o discurso que mudou a sociedade e o mundo, continua atual.

Como palestrante do 103º Fórum do Comitê de Cultura de Paz, em São Paulo, a cônsul americana no Recife, Usha Pitts, falou à PLANETA sobre a luta de Martin Luther King, o contexto histórico que distingue as relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil e a importância da eleição do presidente Barack Obama para o movimento antiracismo.

“Haverá um dia em que os negros americanos serão julgados pelo seu caráter e não pela cor de sua pele?”, perguntou Martin Luther King em Washington, em 1963. “Acho que ainda há um longo caminho para percorrer”, responde Usha Pitts.

A questão racial exibe realidades distintas nos dois países. Para começar, entre 300 mil e 450 mil escravos foram levados da África para a América do Norte, enquanto para o Brasil vieram 4,9 milhões. Nos Estados Unidos, a abolição da escravatura aconteceu em 1865, aqui somente em 1888. Em 2010, os negros representavam 12% da população americana. No Brasil, mais de 50% se consideram mulatos, pardos ou negros.

Atualmente, a diplomata afro-americana atende no consulado mais antigo em funcionamento na América Latina, depois de ter ocupado cargos na Áustria, na Itália, na Rússia e no Panamá.

Como é para uma diplomata afro-americana viver no Brasil?
Depois de quatro anos na Europa, eu decidi vir ao Brasil porque queria que meus dois filhos vivessem em uma sociedade interessante como essa. É a primeira vez que venho a São Paulo. Estou há um ano e meio como cônsul no Nordeste. É uma região bem grande, há quase 40 milhões de brasileiros de Sergipe ao Maranhão, mas venho aqui, olho São Paulo, e a cidade é impressionante! As diferenças são palpáveis.

Fale das suas origens.
Eu sou bem nordestina, não só nordestina do Brasil, mas também dos Estados Unidos: nasci em Massachusetts. Meu pai é negro da Geórgia, estudou em uma escola só para negros, mas, quando quis ir para a universidade, não permitiram. Na primeira metade do século XX, as raças não se misturavam. Minha mãe é branca, da Califórnia, e frequentou uma universidade privada para mulheres brancas. Antes de conhecer meu pai, ela não tinha consciência da divisão entre as raças, dos problemas que o país enfrentava sob o antigo sistema de Jim Crow – um sistema de segregação não só físico, mas simbólico e muito violento. Também não sabia da luta pelos direitos civis. Minha avó só conheceu uma negra, a empregada que limpava sua casa uma vez por semana. Minha mãe conheceu alguns artistas, mas você sabe como são os artistas. Sempre avançados na sociedade. Também fez amizade com os quakers, grupo religioso que ajudou Martin Luther King na viagem que ele fez à Índia para desenvolver seu pensamento contra a violência. Eu me considero negra.

Que lembranças a sra. tem da infância em Massachusetts ?
Eu tinha 12 anos quando vi pela primeira vez, na escola, fotos de enforcamentos de negros no sul dos Estados Unidos. Não imaginava uma coisa dessas acontecendo no meu país. No Nordeste dos EUA não falavam disso. Foi traumático. A partir daí meus pais começaram a me explicar e me ajudar a entender o que aconteceu. Abraham Lincoln é o meu herói. No meu escritório, tenho fotos dele e de Joaquim Nabuco. Os dois, cada um em seu país, foram vitais para a abolição dos escravos.

E Martin Luther King?
Martin Luther King me deu a oportunidade de estar aqui no Brasil como cônsul. Sem ele eu não estaria aqui nem meus pais estariam juntos. Isso não é só um fato da história americana, é bem pessoal também.

Qual é a importância da Marcha sobre Washington e do dicurso dele por igualdade racial?
As palavras de Martin Luther King tiveram grande impacto na minha vida e na de milhares de negros americanos. Os amigos e colaboradores dele esperavam um discurso mais agressivo, mas uma mulher, uma cantora que estava perto no palanque, foi quem sugeriu: “Martin, fala pra eles do  sonho”! E foi assim que ele começou a falar. Disse que o sonho seria uma revolução, que ela não teria fim e seria feita sem violência. Que a luta pelos direitos civis não era só para os negros, porque esse sonho não era apenas o sonho dele, era o sonho americano. Para mim, essa foi a coisa mais importante que ele falou. A Marcha foi o maior evento da história dos Estados Unidos. Milhares de ativistas negros e brancos viajaram quilômetros e quilômetros para protestar pacificamente por liberdade e mais empregos. Voluntários prepararam 80 mil sanduíches para serem distribuídos durante a marcha. No início, o presidente Kennedy foi contra, mas, quando viu que a sociedade estava preparada e que não ia recuar, deu todo o apoio.

Como se explica a estranheza que os afro-americanos sentem quando vêm ao Brasil e deixam de ser negros?
Os afro-americanos têm muito orgulho de sua origem, história e cultura. Costumamos falar sobre a questão racial e a consciência uns com os outros, incluindo americanos de outras procedências. Nos identificamos como afroamericanos mesmo se somos mestiços misturados com brancos. É muito diferente do Brasil, onde raça não é exaestamente um tema de conversa e muitas pessoas são mais inclinadas a se identificarem como “moreno” ou “pardo” do que como “preto” ou “afrobrasileiro”. Quando dizemos negro, falamos de todos os afro-americanos. O brasileiro tem tantas palavras sobre todas as coisas! Para um americano isso é muito confuso. Tenho certeza de que muitos mestiços brasileiros que visitam os Estados Unidos ficam surpresos ao descobrir que são considerados negros. Isso não é exatamente ruim, vem de divergências na nossa história e de diferentes percepções sobre o que significa ser afrodescendente.

Quais são as diferenças entre ser afro-americano e afro-brasileiro?
A maior diferença entre nossas populações é a forma como os afro-americanos conseguiram a igualdade de direitos. Durante a Guerra Civil Americana, o presidente Lincoln teve de encontrar um equilíbrio entre permitir aos Estados governarem a si próprios e proibir a escravidão. Morreram mais de 600 mil americanos nessa guerra e muitos em outras batalhas para assegurar o seu resultado e para que as promessas da Constituição chegassem a todos. Como resultado, os Estados Unidos parecem estar sempre engajados em uma luta em curso, na discussão sobre o que significa ser um cidadão. O debate continua e nossa luta tem influenciado lutas pelos direitos humanos em outros países, o que pode explicar por que afro-americanos e americanos em geral são sensíveis a questões de justiça social. Vejo isso em todo lugar, desde extenuantes debates sobre os direitos dos imigrantes ilegais (e seus filhos) a discussões sobre a superlotação nas prisões. Foi assim que a sociedade civil americana evoluiu, com as questões raciais presentes.

O que mudou nos Estados Unidos após a eleição de Barack Obama?
Algumas pessoas olham nosso presidente negro e acham que não temos mais problema racial. Em alguns aspectos, as eleições presidenciais de 2012 revelaram a persistência das divisões raciais que fazem todo o caminho de volta à guerra civil e além dela. Obama foi eleito com amplo apoio dos Estados do Norte, que historicamente rejeitavam a escravidão. É provável que a população desses Estados estivesse mais aberta para a possibilidade de ver um afroamericano na presidência. Além disso, também recebeu um esmagador apoio dos jovens, que apoiaram o casamento gay e a legalização da maconha, das mulheres e dos latinos – grupos mais abertos para a diversidade racial. Não é que não tenhamos mais problemas raciais, é que outros grupos estão mudando a sociedade americana, ganhando influência o bastante para afetar o resultado de uma eleição presidencial.

O fato de Obama ser negro “inibe” uma ação mais decisiva para não se indispor com a maioria não negra?
Obama está em uma situação difícil, porque toda decisão que ele toma é analisada pelo lado racial. Felizmente, ele é um líder cuidadoso, que pesa suas decisões e seu impacto antes de realizá-las. Acredito que ele age coerentemente da forma que considera ser o melhor interesse do povo americano. Obama nunca agiu ou se referiu a si mesmo como “o presidente negro”. Ele simplesmente tem sido “o presidente americano”.

O que a sra. acha das cotas raciais nas universidades brasileiras?
O Brasil legalizou as mais ambiciosas leis de ação afirmativa na história da educação moderna, exigindo que as universidades públicas reservem metade de suas vagas para estudantes de baixa renda. Desigualdade é o principal problema no Brasil, particularmente na área de educação. O grande educador e escritor afro-americano W.E.B. Du Bois disse uma vez que acreditava que educação é mais um estímulo do que um puxão. Em outras palavras, precisamos de universidades para elevar o nível de educação das instituições mais fracas. O sistema de cotas do Brasil adota esse critério e eu espero que com o tempo ele seja bem-sucedido na meta de deixar o jogo mais justo.

Qual é o reflexo da eleição de Obama no Brasil ?
A eleição do presidente Obama foi celebrada no Brasil e foi ótimo estar aqui em 2012 para ver a sua reeleição. Igualmente, a eleição de Dilma Rousseff como a primeira mulher presidente do Brasil foi acompanhada de perto e celebrada por muitos no meu país. Do mesmo modo que os brasileiros podem se perguntar “quando o Brasil elegerá seu primeiro presidente negro”, os americanos também se perguntarão quando os Estados Unidos elegerão sua primeira presidente mulher. Acho que essas duas grandes democracias têm muito o que compartilhar, celebrar e mostrar uma à outra.