A nova sede da Torre do Tombo, na Cidade Universitária de Lisboa. No detalhe, duas das gárgulas criadas pelo escultor José Manuel Aurélio, que sobressaem da fachada.

Em um prédio modernista de formas retilíneas, na Cidade Universitária de Lisboa, Portugal preserva parte expressiva da sua história, do Brasil e de suas ex-colônias. Ali funciona a Torre do Tombo, onde estão guardados os originais de documentos preciosos como a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil e o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre portugueses e espanhóis.

Com uma área de 54.900 metros quadrados, o espaço reúne três áreas: arquivo e investigação, eventos culturais e setor administrativo. Milhares de volumes se espalham por quatro pisos com capacidade para 140 quilômetros de prateleiras. Aí estão mil coleções documentais de origem pública e privada e 50 coleções de documentos relevantes para o estudo da história comum dos países colonizados por Portugal: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e as possessões de Macau (China), Goa, Damão, Diu e Cochim (Índia).

O edifício foi aberto ao público em 1990, pondo fim a séculos de romaria do arquivo por sedes improvisadas – mas não se parece em nada com uma torre. A Torre do Tombo original ruiu no terremoto que destruiu Lisboa parcialmente, em novembro de 1755. Parte da documentação foi recolhida dos escombros e guardada num barraco de madeira, construído por ordem do Marquês de Pombal. Mas só em 1901 o acesso público aos documentos começou a ser liberado a pesquisadores.

Algumas peças de extremo valor, como a carta escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em 1500, ao rei Dom Manuel I, não estão disponíveis para conferência. O arquivo não é um local de turismo, mas de pesquisa acadêmica e profissional. O documento escrito por Caminha está no cofre-forte e não vai para a sala de leitura, mas já foi digitalizado. Só aparece em exposições especiais, como a que comemorou os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, em abril de 2000. “É uma peça que sai daqui sempre cercada de muito cuidado, pois precisa de controle constante de umidade e temperatura”, explica o diretor-geral da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda.

Acima, a preciosa Bíblia dos Jerônimos, decorada com iluminuras, de 1494. Trecho original da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, comunicando a descoberta do Brasil. Ao lado, o Tratado de Tordesilhas, de 1494. 

Peregrinação histórica

Muitos historiadores brasileiros frequentaram a antiga sede do Arquivo Nacional, antes da sua transferência para o prédio novo. De 1861 até 1990, os arquivos funcionaram numa ala do Mosteiro de São Bento, no bairro da Estrela, em um anexo da Assembleia da República, o Parlamento português. Ali fizeram pesquisas autores antigos e modernos como Capistrano de Abreu, Fernando Novais, Evaldo Cabral de Mello, Carlos Guilherme Mota, Luiz Felipe de Alencastro e muitos outros.

O jornalista Alberto Dines conheceu as duas sedes, a antiga e a nova. Entre 1988 e 1989 passou um ano indo ao mosteiro todos os dias, pesquisando para o livro Vínculos do Fogo – Antônio José da Silva, o Judeu, e Outras Histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil, editado em ambos os países. O personagem em questão foi uma das mais famosas vítimas da Inquisição portuguesa, e a Torre do Tombo guardava um material inestimável sobre ele. “As condições de trabalho eram precariíssimas. Havia apenas 12 mesas e era preciso chegar muito cedo ao arquivo para reservar uma pesquisa”, relembra.

No fim dos anos 1980 os documentos ainda não estavam digitalizados. “Era preciso pedir os antigos ‘ficheiros’ (pastas) e romper a barreira da compreensão entre portugueses e brasileiros para encontrar o que se queria. Aí, quando você abria, os bichinhos do papel vinham junto”, conta Dines. “Mas havia um grande prazer no manuseio físico, em pôr as mãos no documento.” O jornalista vasculhou 300 processos inquisitoriais em busca frenética, com pequenos intervalos para almoço, na lanchonete da Torre, onde o cardápio não ia além de sanduíches “de péssima qualidade”.

Quando o arquivo foi transferido para o prédio moderno, na Cidade Universitária, a situação mudou do dia para a noite. “Em 1991, passamos a ter condições de primeiríssimo mundo. Mas ainda sinto saudade do antigo, onde, literalmente, botava a mão na poeira da história. Foram alguns dos anos mais felizes de minha vida, nos quais vivenciei um prazer intelectual imenso”, rememora Dines.

 

 

 As antigas salas de pesquisa da Torre, no Mosteiro de São Bento. Abaixo, a historiadora Lilia Schwarcz, que pesquisou no arquivo em 2001.

Fora do mundo

Já a historiadora Lilia Moritz Schwarcz frequentou apenas as novas instalações na Cidade Universitária, entre 2000 e 2001, quando reunia material para escrever A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, editado pela Companhia das Letras. Nos dias que passou no arquivo guardou a imagem da Torre do Tombo como uma superbiblioteca que oferece ótimas condições para pesquisa. “É muito silenciosa, as mesas são espaçosas e cada um tem sua lâmpada. É o paraíso para qualquer pesquisador”, afirma.

Lilia estava mergulhada no passado num dia marcante da história contemporânea: 11 de setembro de 2001. “Estava absorta e, como todos, meio fora do mundo e sem comunicação. Nesse dia descobri um documento importantíssimo para a minha pesquisa, algo que só um historiador acha relevante. Supunha-se que a biblioteca real tinha vindo com Dom João VI para o Brasil, em 1808, e, naquela tarde, descobri um documento que provava que os caixotes tinham ficado no cais de Lisboa. A biblioteca chegou a ser dada como perdida.”

Ao sair da Torre, onde ficara todo o dia sem almoçar, especulando sobre o passado, Lilia percebeu várias ligações do marido, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, registradas no seu celular. “Quando liguei de volta, a primeira pergunta dele foi: ‘Você viu?’ Eu estava tão imbuída da descoberta que respondi: ‘É mesmo, os documentos não partiram.’ Só diante da perplexidade dele fiquei sabendo do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, que mobilizava o mundo.”

 O mais antigo documento da Torre é essa carta do ano 882 (ao lado), feita em escrita visigótica cursiva, anunciando a construção da Igreja de Lardosa, no Porto.

 

A história da Torre do Tombo remonta ao século 13, mas só aparece documentada em 1378, ano em que o Arquivo Real foi instalado numa das torres do Castelo de São Jorge – cujas ruínas ainda são referência na paisagem lisboeta. Essa é a origem do nome Torre do Tombo. Ali permaneceu até o terremoto de 1755. Na época, era chamada de “Torre das Escrituras”, porque guardava as memórias dos reis e do reino. Esses documentos, que fazem parte do Arquivo da Casa da Coroa, são classificados, hoje, pela Unesco como parte do registro da “Memória do Mundo”.

Sucessivos reinados e governos mudaram seguidamente a hospedagem do arquivo, que atravessou a história de Portugal como uma das suas instituições mais antigas – são 600 anos de existência. No reinado de Dom Manuel I, “o Venturoso”, foram elaboradas cópias de diversos documentos de difícil leitura, que estavam em mau estado de conservação. Com o tempo, papéis de instituições extintas foram incorporados ao patrimônio da casa. No século 19, a documentação que provinha dos cartórios das igrejas e das corporações religiosas também entrou na Torre.

 Ao lado, capa do livro dos bens do Mosteiro de Seiça. Abaixo, Silvestre Lacerda, diretor-geral da Torre do Tombo.

Gênese da língua

Assim, a partir de 1862, o arquivo passou a deter a documentação mais antiga de Portugal, originária do século 9. Seus papéis testemunham vivências e acontecimentos anteriores à fundação da nacionalidade portuguesa, muito valorizados pelos linguistas como fonte de estudo das origens da língua portuguesa e da escrita visigótica, utilizada na Península Ibérica do século 8 ao 13.

A Torre do Tombo guarda, por exemplo, um ofício de 28 de julho de 1129 no qual se registra pela primeira vez a palavra “Portugal”. Seu documento mais antigo é a carta de fundação da Igreja de Lardosa, nas proximidades da cidade do Porto, datada de 27 de junho de 882. É claro que muita coisa se perdeu, pois o acervo foi prejudicado não só pelo grande terremoto, mas por diversos incêndios e, ainda, pela atabalhoada transferência da família real para o Brasil, em 1808, fugindo dos exércitos de Napoleão.

 

 

Ao longo do tempo, o arquivo histórico esteve subordinado a diferentes ministérios e instituições e passou por problemas de manutenção, sucessivas crises econômicas e falta quantitativa e qualitativa de pessoal especializado. Só a partir dos anos 1960 os cuidados com o acervo e os serviços prestados à sociedade ganharam relevância e profissionalismo. Nessa época iniciaram-se a ampliação da microfilmagem de fotografias e livros, as visitas organizadas de estudo e as exposições de documentos raros.

Com a modernização, muitos documentos em formato de livro, caderneta ou “ficheiro”, como dizem os portugueses, vêm sendo digitalizados. Hoje, o catálogo da torre apresenta contínuo crescimento e as ferramentas da internet foram agregadas de forma a permitir o acesso a uma porcentagem cada vez maior da documentação. Já existem muitos papéis importantes disponíveis para download. Para quem quiser dar uma olhada, basta entrar no site www.antt.dgarq. gov.pt, acessar “Pesquisar na Torre do Tombo”, depois a página “Fundos e Colecções” e boa viagem.

 

 

Acima, a carta do rei Dom Afonso Henriques, de 1129, na qual surge a palavra “Portugal”