Cada vez mais requintada, a alta gastronomia tem fome de novos sabores. Quer experimentar texturas, descobrir aromas e propor associações ao paladar. Em busca de receitas inovadoras, não hesita em revolver segredos culinários ancestrais. Tratamdo-se do Brasil, um dos países campeões de biodiversidade no mundo, nada como se embrenhar nas raízes regionais e decifrar as especiarias dos conhecimentos tradicionais para abrir horizontes.

Como muitos chefs, o paulista Alex Atala, proprietário dos celebrados restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, sabe que a floresta é uma mesa farta. Há iguarias escondidas no meio do mato ou no quintal das comunidades indígenas. Basta apurar o faro para descobrir ingredientes com maior potencial gastronômico, estruturar cadeias para viabilizá-los comercialmente – como a castanha-dopará ou o açaí – e saborear os frutos da iniciativa: “O uso racional e científico dos recursos naturais brasileiros aponta para um melhor comer, um melhor viver e uma natureza melhor”, diz Atala.

Disseminar alimentos dos biomas nacionais, difundindo hábitos alimentares regionais por todo o Brasil, e incentivar os pequenos produtores rurais são as metas fundamentais do recém-constituído Instituto Atá, uma parceria de ambientalistas, antropólogos, publicitários, gastrônomos e chefs como Atala.

O objetivo é rever a relação do homem com o alimento, de forma abrangente. “Precisamos aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir e o produzir da natureza. Trata-se de agir em toda a cadeia de valor, com o propósito de fortalecer os territórios a partir de sua biodiversidade, da agrodiversidade e da sociodiversidade, para garantir alimento bom para todos e para o ambiente”, prega Atala. “O Atá está a serviço disso.”

Entre as metas do grupo, assinala um de seus integrantes, o diretor da organização Amigos da Terra-Amazônia Brasileira e gastrônomo convicto Roberto Smeradi, está o resgate da imensa variedade de feijões encontrada no Brasil. Seja feijão fradinho, seja de corda, mulatinho, jalo, branco ou bolinha, há uma infinidade de tipos usados de norte a sul em pratos tão variados quanto o baião-de-dois cearense ou o acarajé baiano. No entanto, “o brasileiro está deixando de lado esta riqueza e se limitando a uma ou duas espécies”, lamenta Smeraldi.

Outra frente de trabalho do Instituto Atá é fazer um inventário dos tipos de cogumelos comestíveis encontrados na Mata Atlântica, uma vez que a arte culinária brasileira “só dispõe, no momento, de quatro ou cinco tipos” – entre os quais o shimeji e o shiitake, trazidos do Oriente. “A grande diversidade de cogumelos neste bioma é um desafio para a ciência e para os gastrônomos. Sabemos que só no Paraná são encontradas mais de 250 espécies nativas”, diz Smeraldi.

O mesmo acontece em relação ao mel de abelhas nativas e à baunilha do Cerrado, igualmente com vasto potencial gastronômico. “Como profissional de cozinha, surpreendi-me ao conhecer uma baunilha em estado selvagem”, diz Atala. Um dos sonhos do Instituto Atá é a domesticação da espécie e a estruturação de um consórcio de famílias nas áreas de Cerrado, para gerar complemento de receita a comunidades carentes e “um produto de alta qualidade, com DNA brasileiro, para as mesas do mundo”, projeta o chef paulista.

Ingrediente genuinamente brasileiro, mas ainda sem legislação, logo, não comercializado, “a regulamentação do comércio do mel das abelhas mansas é um dos projetos mais importantes do Instituto”, afirma Atala, pois, “além de seu uso culinário possível, ele tem características medicinais. A utilização pode beneficiar os gourmets e profissionais de cozinha, gerar renda e ampliar os benefícios ao meio ambiente, uma vez que as abelhas são indicadores de biomas saudáveis” – como, por exemplo, o mel das abelhas do Xingu produzido pela Atix, a Associação Terra Indígena Xingu.

Culinária indígena

Outra proposta do Instituto Atá é investir na comercialização da pimenta em pó baniwa jiquitaia. Nativa da bacia do Alto Rio Negro e preparada a partir de uma grande variedade de cores e tamanhos de frutos da espécie Capsicum florescens, da família do tabasco, a jiquitaia é um segredo transmitido de mãe para filha entre as índias baniwa, usada para acompanhar, em porções generosas, o biju de tapioca servido com peixe na região de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas.

Patrimônio de 15 mil índios de 200 comunidades no Brasil, na Venezuela e na Colômbia, a jiquitaia – em tupi, “sal com pimenta” – resulta da secagem ao sol, durante cinco dias, de diversos frutos, que, em seguida, vão para o fogão, são pilados e moídos até virar pó. Algumas, feitas a partir da koonihtako (pimenta-bico-decoró-coró), apresentam aroma defumado marcante e lembram a pimenta calabresa. Outras, produzidas com frutos maduros de dzakoite (pimenta-da-caatinga), com ou sem sementes, podem substituir o peperoncino italiano numa macarronada, dizem os especialistas.

Comercializada pela Casa da Pimenta Baniwa, da comunidade Tunuí-Cachoeira, no Rio Içana, com o apoio do Instituto Socioambiental, a jiquitaia está entrando no mercado em Brasília, Manaus e São Paulo, onde é vendida no Mercadinho Dalva e Dito. A propósito, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou o “Sistema Agrícola do Rio Negro” como patrimônio cultural brasileiro.

Outras propostas interessantes são a entomofagia dos insetos brasileiros e a oleodiversidade. Já que a ONU vem estimulando o consumo de proteína de insetos como alternativa para o impasse alimentar que ameaça uma população de 7 bilhões de pessoas (ver PLANETA 483), chefs de todo o mundo deram as mãos para inventar receitas.

No restaurante Billy Kwong, em Sydney, Austrália, o gafanhoto sobre pastel frito de camarão é considerado iguaria. Na Cidade do México, servem-se canapés com ovas de formiga no Pujol, enquanto o cardápio do Paxia sugere um “peru com percevejos”. Em Copenhague, Dinamarca, René Redzepi, renomado chef do Noma, recorre a formigas para incrementar seus pratos. Em São Paulo, onde as içás, fritas em gordura de porco, são tradicionais em cidades do Vale do Paraíba, Alex Atala oferece, no D.O.M, receitas que incorporam saúvas da Amazônia – portadoras de notas cítricas –, apreciadas pelos índios do Alto Rio Negro.

Em matéria de diversidade, o Brasil é um verdadeiro empório. Prontos para desbancar o tradicional azeite de oliva, um sem-número de óleos extraídos de frutas e sementes sugere uma nova gama de propostas à mesa. Na Amazônia, são conhecidos mais de 100 tipos de plantas oleoginosas. No Centro-Oeste, o óleo de pequi e o de babaçu vão para as panelas. No Nordeste, o dendê, e também o óleo de licuri e de coco são apreciados. Em Minas Gerais, o uso culinário do óleo de macaúba, empregado na indústria cosmética, já engatinha. No Espírito Santo, o óleo de macadâmia, que dá um bom azeite, está em produção. Sem falar na gordura do cupuaçu, excelente para fritar carnes, impregnandoas do cheiro característico da fruta; do óleo de açaí, bom para flambar alimentos, aos quais empresta seu perfume adocicado; ou do da castanha-do-pará, ótimo para temperar saladas.

Tesouros da caatinga

A proposta do Instituto Atá não é única no país. Surgido há uma década, o programa Caras do Brasil, do Grupo Pão de Açúcar, garimpa cooperativas e pequenos produtores regionais segundo critérios de sustentabilidade – entre eles, o manejo sustentável, a eliminação do atravessador e o repúdio ao trabalho infantil e escravo. De acordo com Daryalva Bacelar, gerente de Responsabilidade Social do Instituto Pão de Açúcar, o grupo dispõe de 14 fornecedores da Amazônia, do Cerrado e da Caatinga que comercializam seus produtos por meio da rede varejista, como o mel dos índios do Xingu, a castanha de baru e balas artesanais expostas com destaque em gôndolas especiais.

Explicando que “o programa visa fortalecer redes de fornecedores, oferecendo condições comerciais especiais, respeitando a capacidade produtiva, as marcas e os preços, estimulando a diversificação dos canais de venda, dentro dos princípios do comércio ético e solidário”, Daryalva informa que o Pão de Açúcar explora três recursos para chegar aos produtores: o site “Caras do Brasil”, no qual os interessados podem se cadastrar; uma parceria com o Sebrae, que promove rodadas de negócios e feiras de artesanato periodicamente; e o cadastro nacional de cooperativas do Ministério do Desenvolvimento Social.

Foi dessa forma que se consolidou a aliança entre o Pão de Açúcar e a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc), criada em 2004, na Bahia. Hoje, a Coopercuc é constituída de 450 famílias de coletores e processadores de umbu, uma pequena e deliciosa fruta esverdeada da Caatinga, rica em vitamina C, que dá no umbuzeiro – a “árvore sagrada do sertão”, segundo o escritor Euclides da Cunha.

Para estabelecer essa aliança, foi preciso driblar “as dificuldades de logística de transporte, a tributação sobre produtos da agricultura familiar, a falta de capital de giro, as questões sanitárias e a desconfiança das redes varejistas, que não querem se arriscar e encomendam pequenas quantidades”, explica Jussara Dantas de Souza, gerente-comercial da Coopercuc. As 18 comunidades produtoras localizadas no sertão baiano, compostas em 70% por mulheres, produzem 162 toneladas de umbu e maracujá-da-caatinga por ano e oferecem uma gama de 14 produtos sob a marca Gravetero. Entre eles estão a compota de umbu, o doce de umbu cremoso, o Nego Bom de Umbu e a geleia de maracujá-da-caatinga. Durante os três meses de safra, cada família recebe um salário médio de R$ 2 mil.

A comercialização dos doces da caatinga, hoje presentes nos mercados mais sofisticados do país e exportados para a Europa, representa, segundo Jussara, “uma maneira de preservar os umbuzeiros e, com eles, a própria Caatinga, um bioma muito vulnerável, ameaçado de desertificação e historicamente caracterizado por profundas desigualdades socioeconômicas”. Um dos princípios da Coopercuc é promover a conservação e o uso sustentável do ambiente,, de maneira a “garantir a sustentabilidade das famílias no sertão”.

Tendo em vista a recuperação das áreas degradas, a Cooperativa desenvolveu um programa de produção e distribuição de mudas nativas e frutíferas. Ao todo, foram construídos quatro viveiros e produzidas quatro mil mudas em parceria com a associação de patrulheiros ambientais Guardiões da Caatinga, com a Embrapa Semiárido e o apoio do KMB (Movimento dos Homens Católicos), da diocese de Lins, na Áustria.

“Este é o caminho: acordar para as questões ambientais e assumir a responsabilidade em preservar o meio ambiente”, ressalta Jussara. Oferecer a biodiversidade brasileira generosamente servida num prato.