O rio Vilcanota no Vale Sagrado dos Incas, pouco antes de sua passagem por Ollantaytambo.

O Vale Sagrado dos Incas foi criado pelas correntezas do rio Vilcanota, também chamado de Wilcamayu, ou rio Osagrado. Posicionado no sentido lesteoeste, ele recebe sol durante o dia e é protegido do frio e do vento. Por isso, é um dos mais férteis da região de Cuzco. Seu clima é o que o vale tem de mais sagrado. No século 16, as primeiras espanholas grávidas saíam de Cuzco para dar à luz ali, onde os bebês tinham mais chances de sobrevivência.

O vale do Vilcanota está a algumas dezenas de quilômetros da antiga capital incaica. Para chegar até lá, é preciso atravessar um pequeno planalto. Nessa região se cultiva muita batata, planta nativa dos Andes. No inverno, alguns lavradores ainda fazem suas últimas tarefas no campo, antes de deixar a terra descansar. No povoado de Chinchero, é interessante não só admirar as muralhas incas, mas também observar uma camponesa espalhando, na grama do sítio arqueológico, as batatas recém-colhidas. Em uma semana, o sol forte do dia e a noite gelada transformarão o tubérculo em chuño, a batata desidratada. É o modo mais prático para guardar alimento. “O chuño dura pelo menos um ano. E, para cozinhar, basta adicionar água”, diz a moradora Rosa Quispe.

A descida de Chinchero até o povoado de Urubamba segue uma série de curvas sinuosas. O Vilcanota, que nessa época do ano possui uma coloração esverdeada, está mais próximo a cada virada que damos. Atravessamos a ponte e continuamos seguindo o rio, em direção a Ollantaytambo.

Situada em uma das extremidades do Vale Sagrado, Ollantaytambo é uma das mais belas fortalezas incas. O lugar testemunhou uma vitória histórica da resistência incaica sobre os conquistadores, logo depois da tomada de Cuzco. Quando, em 1536, Francisco Pizarro e seu exército se aproximavam do povoado, Manco Inca mandou desviar o leito do rio. A estratégia dificultou o avanço das tropas inimigas, principalmente da cavalaria. Após uma batalha sangrenta, os incas derrotaram os espanhóis. Mais tarde, a reação foi implacável e os espanhóis dominaram Ollantaytambo. Manco Inca desapareceu no meio da selva e refugiouse em Vilcabamba.

Acima: Faustino Espinoza, fundador da Academia do Idioma Quéchua. Grande conhecedor da cultura indígena, ele dizia que “os incas cortavam a pedra como se fosse barro mole, como se fosse manteiga”.

Uma lenda diz que Ollantaytambo deve seu nome a uma história de amor. Apaixonado pela filha do imperador inca Pachacutec, o chefe Ollanta decidiu raptá-la. Para resgatar sua filha, Pachacutec atacou a cidade e deu início a um conflito que durou dez anos. Mas o amor se mostrou o verdadeiro vencedor. Após a morte de Pachacutec, seu filho, o novo imperador, concedeu a mão de sua irmã Cusi a Ollanta, que passou a ser um oficial de confiança.

Ollantaytambo é um exemplo vivo de cidade inca. Nunca deixou de ser habitada pelos indígenas e manteve sua estrutura urbana praticamente intacta, com pouca influência colonial. As portas têm formas trapezoidais típicas e as residências guardam as características inconfundíveis da arquitetura incaica. De vocação essencialmente agrícola, Ollantaytambo teria sido concebida como uma espiga de milho, com as residências distribuídas como grãos, as maiores juntas e as menores na ponta.

OS TEMPLOS que imperam no topo da montanha representam uma admirável obra de arquitetura. Nas últimas três décadas em que visito a região, ouvi as mais diversas teorias sobre as técnicas incas para cortar pedras. Para os arqueólogos, o trabalho foi feito com outras pedras, mais duras. “Os antigos usaram um material lítico mais resistente para abrandar o material usado nos templos e palácios”, diz Manuel Ollanta, arquiteto da municipalidade de Cuzco. Outros afirmam que os incas teriam usado ferramentas à base de obsidiana, hematita (um minério de ferro) e até diamante. Mas isso teria demandado milhões de horas de mão-de-obra.

Faustino Espinoza foi o fundador da Academia do Idioma Quéchua em 1953. Se estivesse vivo, teria hoje 100 anos. Ouvi desse grande conhecedor da cultura indígena que “os incas cortavam a pedra como se fosse barro mole, como se fosse manteiga”. Espinoza nunca descobriu quais eram os ingredientes secretos que amoleciam a pedra. Um indígena de um vilarejo distante estava prestes a lhe mostrar uma planta que “derretia” os ossos dos animais que a ingeriam. Mas, na hora marcada, o camponês não apareceu, e Espinoza nunca mais o encontrou. Teria sido essa planta o ingrediente principal para desmanchar a rocha? Ou uma mistura de ervas?

Acima: Nas ruínas de Ollantaytambo, o contraste entre a montanha bruta e a pedra perfeitamente talhada pelos incas.

À direita: Um bloco de pedra em Ollantaytambo pode ajudar a desvendar o mistério de como os incas moldavam esse material. A face superior da pedra é lisa, enquanto a parte inferior ainda está bruta, sem ser trabalhada. A fresta no meio (cercada pela linha vermelha) não é natural e possui espessura constante. Poderia ser ela a prova de que os incas tinham técnicas, hoje desconhecidas, para moldar a pedra?

Há mais de 20 anos, encontrei por acaso, no topo das ruínas de Ollantaytambo, um bloco de pedra que poderia explicar como essa matéria-prima era moldada. A face superior da pedra é lisa, como se alguém a tivesse lixado. Na parte de baixo, porém, ela ainda está bruta, sem ser trabalhada. No meio, entre os dois tipos de pedra, há uma fresta. Não se trata de uma fenda natural: ela é retilínea e possui sempre 0,7 milímetro de espessura, suficiente apenas para permitir a passagem de um cartão de crédito. Parece ter sido talhada com uma serra. Mas que instrumentos os incas teriam usado para isso? Utilizaram algum líquido para facilitar o corte? Poderia ser essa obra inacabada a prova de que os antigos sabiam como cortar a pedra?

O CERTO É QUE em vários lugares vemos rochas que parecem cortadas com uma espátula. São como cadeiras ou tronos, mas na verdade podem ser o que restou depois de um bloco ter sido retirado. Estamos diante de um dos maiores mistérios da cultura inca, que parece longe de ser decifrado. Após a conquista, os indígenas se calaram e mantiveram sigilo sobre seus conhecimentos. Depois de cinco séculos de silêncio, será que esse segredo já se perdeu na memória do tempo?

Duas meninas gêmeas seguram algumas espigas do milho branco gigante de Cuzco. O produto é a grande estrela agrícola do Vale Sagrado.

Embora esteja entre 2.800 e 3.000 metros de altitude, o Vale Sagrado é o celeiro de Cuzco. Dali saem os cereais e as verduras consumidos pelos cuzquenhos. A grande estrela agrícola é o milho branco de Urubamba, ou milho branco gigante de Cuzco: tal como um vinho francês, ele possui seu certificado internacional de Denominação de Origem desde 2006. Somente os milhos brancos colhidos no Vale Sagrado dos Incas – nas províncias de Calca e Urubamba – podem usar esse nome.

Plantado por 5 mil agricultores (97% deles em pequenas parcelas de terras entre um e cinco hectares), o milho branco foi exportado, nos últimos dez anos, para quase 30 países. Japão e Espanha são os principais compradores. Seu nome em quéchua, paraqay sara, ou “milho branco de grãos grandes e largos”, define bem o cereal. Eles são tão graúdos que, para comê-los, é preciso retirar grão por grão da espiga.

O milho branco é cultivado no Vale Sagrado há um milênio. A extensão plantada hoje representa apenas uma pequena porção do que era usado na época inca, há cinco ou seis séculos. O número de plataformas agrícolas em ruínas e não usadas confirmaria que a produção antiga era de cinco a dez vezes superior à moderna.

Além de ser consumido cozido ou tostado, o milho branco serve como base para a chicha, uma bebida local preparada com o milho fermentado. Um dos melhores mercados para se degustar o milho gigante de Urubamba é o de Pisac, um pequeno povoado no Vale Sagrado dos Incas, na extremidade oposta a Ollantaytambo.

ATÉ POUCOS ANOS ATRÁS, o mercado era montado a cada quinta-feira e domingo. Devido ao sucesso turístico, os mercadores de Pisac resolveram trabalhar sem tomar fôlego. Hoje, o mercado é realizado sete dias por semana. A venda de verduras e legumes do Vale Sagrado acontece em uma das esquinas da Praça da Constituição, a principal da vila. Uma rua que sai da praça leva até um pátio onde encontramos um forno comunitário. Qualquer pessoa pode assar um prato preparado em casa por apenas R$ 1.

Até os cuies, os porquinhos-da-índia criados para se transformar em fonte de proteína, vão para o forno. O mais apetitoso mesmo são as empadas quentinhas, preparadas a cada cinco minutos.

Aos domingos, Pisac é ponto de encontro dos indígenas da região. Eles descem das montanhas para vender seus produtos e participar da missa dominical em quéchua. Pouco antes das 11 horas, jovens indígenas na porta da igreja soam seus pututus, instrumentos tradicionais de sopro feitos com conchas do mar, para anunciar aos devotos, locais e visitantes, que o ritual na Igreja São Pedro Apóstolo vai começar.

A missa é celebrada em quéchua há alguns séculos. Como as populações indígenas que moram nos vilarejos acima de Pisac falavam (e ainda falam) muito pouco o espanhol, a solução encontrada pelos sacerdotes foi atrair a comunidade usando a própria língua. O sermão e todos os cânticos são em quéchua. A missa em quéchua é um excelente exemplo do sincretismo cultural existente na região. O peruano de hoje é justamente o resultado dessa combinação entre a alma inca e o espírito espanhol!

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. Ele é o fundador do Clube de Viajologia e já documentou 138 países. Apoio Inkaterra Travel: www.inkaterra.com Promperu www.promperu.gob.pe