À frente de ações ambientais que culminaram com a criação da Fundação Ecológica Cristalino.

O paulista Ariosto Da Riva foi o primeiro a chegar a Alta Floresta, no norte de Mato Grosso. Em 1974, vendeu tudo o que tinha para comprar do governo federal uma floresta de 800 mil hectares. Idealizada para ser uma cidade-modelo, a partir do lema do regime militar da época – “Amazônia, integrar para não entregar” -, Alta Floresta deveria ser, segundo Da Riva, um polo de agricultura baseado em plantações familiares de cacau, guaraná e café. Nos documentos de posse dos novos colonizadores sobressaía em negrito a frase de Da Riva: “Preserve sua castanheira. Ela é a sua caderneta de poupança.”

No início de 1980, a descoberta do ouro levou milhares de garimpeiros para a região e fez muitos agricultores, cobiçando riqueza fácil, abandonarem suas plantações. Três anos depois, sem ouro nem plantio, grandes áreas de pastagens foram abertas. Na contramão do desmatamento, Vitória Da Riva, filha de Ariosto, e seu marido, Edson de Carvalho, compraram 700 hectares de floresta ladeada pelas águas do Rio Cristalino. Iniciaram ações que levaram à criação do Parque Estadual do Cristalino, no ano 2000. Quatro anos depois, ajudados pela então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, reverteram a decisão judicial que beneficiaria donos de terras locais, desejosos de vendê-las para a pecuária, o que reduziria muito a área do parque. Hoje, Vitória preside a Fundação Ecológica Cristalino, criada para a educação, a pesquisa e a recuperação de áreas degradadas. Fundou ainda a Escola da Amazônia, para as crianças conhecerem a importância de preservar a mata.

 

A sra. foi pioneira em trabalhar com ecoturismo no Brasil, no fim dos anos 1980. Como foi o começo?

A pressão a favor do desmatamento em Alta Floresta era, e ainda é, muito grande. A soja empurra a pecuária cada vez mais para o norte e o desmatamento avança cada vez mais. Eu e o Edson queríamos um empreendimento rentável, mas que mantivesse a floresta em pé. Nosso objetivo era trabalhar com turismo ecológico, então, construímos alguns bangalôs na área adquirida, com uma pequena estrutura de serviços. Imagine a dificuldade de erguer um hotel nessa região, que não era destino turístico nem tinha acesso por avião. As pessoas me diziam: “Você é louca! Quem vem até esse fundão do Brasil pagar para ver mato?” E eu me perguntava: como fazer o mato virar conhecimento?

“Imagine a dificuldade de erguer um hotel nessa região. as pessoas me diziam: ‘quem vem até esse fundão do brasil para ver mato?'”

Como a sra. fez isso?

Comecei voltando à faculdade (sou formada em letras) para aprender a vender um produto – o turismo ecológico – que ainda não existia na Amazônia. Na Fundação Getulio Vargas, a frase de um professor me marcou: “Seu produto precisa ser diferenciado.” Eu ainda não tinha a menor ideia do que meu produto poderia ser nem sequer quais eram os diferenciais dos outros hotéis de ecoturismo no Brasil. Comecei a frequentar workshops de planejamento estratégico para turismo ecológico e a viajar para vender meu produto, o Cristalino Jungle Lodge. Ao mesmo tempo, adotamos no hotel ideias que nos pareceram boas: um sistema de telas para ventilação natural; o uso exclusivo de produtos biodegradáveis; a reciclagem do lixo, que é mandado para a cidade, enquanto o lixo orgânico fica no local; o esgoto é trabalhado com a permacultura (método holístico para planejar, atualizar e manter sistemas de escala humana, como jardins e comunidades – N. da R.). Agora, estamos construindo um gerador de células fotovoltaicas.

 

Quando a sra. encontrou o diferencial do seu hotel?

Quando comecei a ser procurada por pesquisadores. O primeiro foi o ornitologista Jürgen Haffer,pesquisador de aves endêmicas. O Rio Telles Pires, do qual o Cristalino é afluente, funciona como uma barreira de espécies. Depois, veio o ornitólogo norte-americano Ted Parker, que catalogou 590 espécies de aves nos três biomas encontrados na região. Com esses números, poderíamos fazer birdwatching (“observação de aves”), um tipo de turismo ecológico que faz muito sucesso em vários países. Somos o primeiro local de observação de aves do Brasil e o terceiro do mundo – os dois primeiros estão no Peru. Mas estamos a meia hora de barco da cidade mais próxima, ante 16 horas do Parque Nacional del Manu, no Peru. Nem sequer tínhamos uma expressão brasileira para designar essa atividade turística tão apreciada por europeus e norte-americanos, mas já cunhamos uma: “passarinhar”.

E os viajantes começaram a chegar?

Os operadores norte-americanos foram os primeiros. O hotel era o único a oferecer observação de aves nas terras altas, não alagáveis, da Amazônia. Depois vieram muitos pesquisadores, que por sinal não param de chegar. Catalogaram dezenas de novas espécies de borboletas, além de sete espécies de macacos. Hoje, segundo a Embratur, somos o primeiro lugar para observação de borboletas no País. O pesquisador de pássaros norteamericano Chip Haven, da Universidade Stanford, doou ao Cristalino uma torre de observação de 50 metros de altura feita de ferro galvanizado. Com três patamares, ela permite observar aves como o surucuá, o tucanuçu e a marianinha, nos diferentes extratos da floresta.

 

Sua luta continua pa ra proteger com leis esse pa trimônio natural. Foi a riqueza em biodiversidade o que mais motivou a criação do Parque?

No fundo, foi ainda maior a lembrança da decepção que meu pai sofreu. Ele sonhou com um projeto, mas uma soma de fatores dificultou o desenvolvimento da região. Entre eles, a descoberta do ouro, a pecuária e, por último, a altíssima inflação durante o governo de José Sarney, que desvalorizou os produtos agrícolas. Só a partir de 2007 começou um resgate da agricultura. Foi também o início da recuperação das áreas degradadas. O parque, com 184.900 hectares, funciona como uma barreira ao Arco do Desmatamento da Amazônia, servindo de baluarte às áreas protegidas da região. Na época em que o governo estadual queria reduzir o parque em 30% para favorecer os fazendeiros, o S.O.S. Cristalino recebeu mais de 100 mil e-mails de apoio vindos do mundo inteiro. E eu, ao mesmo tempo, recebia ameaças de donos de terras. Mas não me intimidei, sempre fiz e vou continuar fazendo aquilo em que acredito.

 

Como surgiu a Fundação Ecológica Cristalino?

Surgiu em 1999, da necessidade de organizar um grande número de pesquisadores que pediam para se hospedar no Cristalino Jungle Lodge. Assim, poderíamos apoiar as pesquisas ali desenvolvidas: educação, planejamento e uso territorial, ecologia da paisagem e pesquisa sobre a fauna e flora. Dessa maneira, o projeto Flora Cristalino classificou 1.370 espécies vegetais, 8 das quais são novas para a ciência.

A fundação também trabalha na recuperação das nascentes e do solo já desmatado. Já recuperamos 26 propriedades com cerca de 100 hectares cada uma. Temos importantes parceiros, como a instituição botânica inglesa Kew Gardens, a Wildlife Conservation Society, a Fiocruz, a TAM, o HSBC e a Rainforest Conservation. Vale lembrar que, na nossa região, ainda existem 22 comunidades indígenas isoladas, das 54 atualmente investigadas no Brasil pela Funai.

“O número de aves catalogadas na região nos permitiu fazer birdwatching, um tipo de turismo ecológico de muito sucesso”

O projeto Cristalino também pa trocina o programa Escola da Amazônia. fale-nos sobre ele.

Percebi que, se existe alguma esperança, ela reside nas crianças. Elas é que vão mudar a cabeça dos mais velhos. Para isso, precisam saber o que somos e o que temos aqui. Daí surgiu a Escola da Amazônia. As escolas da região são o nosso foco, em parceria com escolas particulares de São Paulo que apoiam e sustentam o projeto. Esse programa, criado com os biólogos Edson Grandisoli e Silvio Marchini, venceu o prêmio Whitley Awards do Reino Unido, em 2007, tido como o “Oscar verde” da Royal Geographic Society de Londres. O programa objetiva desenvolver o raciocínio científico, atende mais de 2 mil jovens da comunidade escolar regional, leva alunos de escolas particulares de São Paulo para conhecer a realidade social da região e ensina às crianças de Alta Floresta a importância de preservar a mata.

Valeu a pena?

Alta Floresta está voltando às suas origens. Trabalha com a sustentabilidade, e muitas pessoas estão fazendo reflorestamento. Quando a Fundação Ecológica Cristalino recebeu o prêmio World Savers Award e o Cristalino Jungle Lodge ganhou o primeiro lugar em 2008 na Condé Nast Traveler (um dos principais prêmios do mundo para hotelaria conservacionista), esses reconhecimentos foram muito bons não apenas para a fundação e para o hotel, mas porque os moradores e políticos entenderam que levamos positivamente o nome de Alta Floresta ao mundo.

Mais informações www.fundacaocristalino.org.br

 

“O Parque Estadual do Cristalino é o primeiro lugar para observação de aves no Brasil e o terceiro no mundo”