Dezessete degraus de madeira escura ladeados por paredes verde-cinzas encardidas levam-me à mansarda, certamente o pior quarto do Hotel Ravoux. Desprovido de janelas, o aposento tem apenas uma claraboia no teto baixo. Trancado por quase um século, manteve-se milagrosamente intacto. Entrar nessa câmara provoca arrepios. Nesse espaço exíguo, cercado por telas em branco e quadros pintados a óleo que recendiam odor de tintas, o pintor holandês Vincent van Gogh viveu os dois últimos meses de sua vida praticamente em reclusão. Ele, que a vida toda buscara a luz, agora só podia colher vislumbres do céu através da pequena claraboia.

A presença de alguém com os nervos em frangalhos ainda habita a mansarda do Hotel Ravoux. Em Arles, no sul da França, em 1888, o pintor chocara a família ao cortar um pedaço da orelha esquerda, após uma discussão com o amigo e pintor Paul Gauguin, e oferecê-la, como presente, embrulhada num lenço, a uma amiga prostituta. As crises nervosas, cada vez mais fortes, motivaram, em maio de 1890, sua ida para Auvers-sur-Oise, vilarejo distante 40 minutos de trem de Paris. Ali vivia o doutor Paul Gachet, médico homeopata que estudava ervas medicinais no tratamento da esquizofrenia – enfermidade da qual, acredita-se, padecia Van Gogh. Para espantar a melancolia, o médico aconselhou o artista a trabalhar muito.

No começo, a terapia deu certo e fez Van Gogh reviver. Em 66 dias ele executou, incansável, 33 desenhos e 70 quadros de cores vibrantes, cheios de luz – algumas das obras mais fascinantes da história da pintura. “Quando a natureza é excepcionalmente bela, ela provoca uma estranha lucidez. Muitas vezes sou invadido por uma terrível clarividência. Nesses momentos, a excitação que se apodera de mim diante da natureza vai aumentando até me fazer perder os sentidos”, ele escreve ao irmão Theo. Era nesse estado particular de alma e de consciência, que poderia ser chamado de “translucidez”, que o artista pintava, focado na paisagem que o encantava e seduzia, abstraído das demais necessidades do seu corpo, a começar pela comida e pelo repouso.

Trigal perto de Auvers, segundo Van Gogh. Sob a tempestade, os corvos voam para o único ponto claro do céu de cobalto.

Instigados pelo mistério que emana das telas de Van Gogh, admiradores do artista buscam conhecer mais sobre a sua vida e experiência

O drama do pintor holandês transformou o Albergue Ravoux num ímã para admiradores, turistas e artistas.

Na mansarda, quase subjugada pela vibração que as paredes encerram, lembro-me de uma de suas telas, erroneamente tida como a derradeira, pintada nos campos ao redor da cidade belga de Anvers: um trigal que reluz sob um céu de ameaçadora tempestade. As hastes do grão, coloridas de amarelo-cromo puro, são açoitadas pelo vento. Corvos, em revoada, sobrevoam o campo. Percebendo que será impossível pousar ali, dirigem-se ao único ponto mais claro do céu cobalto escuro. Mestre do impressionismo, o movimento artístico que se libertou da representação realista da realidade para se abrir à criação, Van Gogh, ao terminar essa tela, talvez tenha intuído que prenunciava a chegada da nova tendência que marcaria o século 20: o expressionismo. Nela, a arte passaria a refletir diretamente o mundo interior do artista. No ápice da sua criação, poucos dias depois dessa tela, o pintor se suicidou com um tiro no peito.

Durante o período em que seu quarto de morte permaneceu fechado e vazio, a figura de Van Gogh se transmutou aos olhos do mundo. O artista modesto e pouco conhecido que produzia telas num estado análogo ao transe ressurgiu como um dos mais extraordinários pintores da história da arte mundial. De desprezado a amadíssimo, poucos criadores deram saltos de oitava tão importantes em termos de notoriedade global.

As longas filas que se formam, hoje, à entrada do imponente Museu Van Gogh, em Amsterdã, Holanda, confirmam isso diariamente. Suas obras batem recordes em leilões e ganham salas especiais nos mais importantes museus do mundo. Instigados pelo mistério que emana de suas telas, os que admiram o artista querem conhecer mais a respeito do homem. Sou uma dessas pessoas, e por isso estou aqui, no quarto onde ele decidiu pôr fim à própria existência.

Face a face com a morte

Eis uma existência que, em muitos aspectos, segue as linhas das tragicomédias de erros. Vincent Willen van Gogh nasceu em 30 de março de 1853 no vilarejo holandês de Groot, em Zundert, na fronteira com a Bélgica. Filho de um pastor luterano, veio ao mundo exatamente um ano após sua mãe ter dado à luz um menino que não sobreviveu ao parto. Seus pais batizaram o recém-nascido com o mesmo nome do filho morto.

Como era costume na época, a casa do pastor ficava ao lado da igreja e do cemitério. Van Gogh relatou que, na infância, passava constantemente diante do túmulo onde podia ler o seu próprio nome inscrito na lápide. A data era quase a mesma de seu nascimento. “Sempre julguei que usurpava o lugar de um outro. Quem me libertará do cadáver desse morto?”, costumava se perguntar.

Desenho do artista em uma de suas cartas ao irmão Theo.

Episódios da sua vida são fonte inesgotável de mitologias sobre seu temperamento raro, sua doença e obra. Existe, no entanto, uma fonte genuína para se entender Van Gogh: as cartas que escreveu. Foram mais de 700 e, dentre elas, 600 endereçadas ao irmão Theo. Van Gogh se explicava em seus escritos e se exprimia nas pinturas. Nas duas linguagens, as informações são muitas, mas nada aclara o motivo do seu suicídio.

Ninguém vai a Auvers-sur-Oise para ver as obras de Van Gogh. Ali não há nenhuma. Existe apenas um velho chassi de telas no quartinho da mansarda, que se chama, hoje, Museu Maison Van Gogh, “o menor museu do mundo”. O que realmente interessa aos visitantes é o próprio quarto, bem como o casario e as paisagens dos arredores, que pintou e imortalizou. Trata-se menos de uma visita e mais de uma peregrinação.

Os visitantes buscam o homem que chegou a Auvers, depois de muito sofrer com a falta de reconhecimento, a solidão e a miséria, enfraquecido pelas doenças que a fome e a penúria provocam. Em vez de comprar comida, ele preferia gastar tudo que tinha em tintas, que utilizava em abundância. Ao caminhar pelos arredores, é inevitável imaginá-lo pintando as forças desabridas da natureza, amarrado ao cavalete para não ser arrastado nos dias em que o vento mistral soprava com toda força.

Da mesma forma, sozinha, no seu quarto de morte, tento desvendar como um ser tão arrasado pelas sucessivas internações em manicômios – que o debilitavam mais e mais – podia reproduzir com tanta intensidade e vigor a força da natureza e a alegria da vida. “Nos meus quadros, gostaria de dizer algo que console tanto quanto a música”, disse.

Caminhar pelas ruas de pedra e igrejas do vilarejo é empreender uma espécie de via-sacra, seguindo os passos do pintor

A catedral de Auverssur- Oise. À direita, autorretrato do pintor. Abaixo, seu túmulo, junto ao do irmão Theo.

Como eu, visitantes das mais diversas nacionalidades desejam, em Auvers, seguir os passos do artista, observar os motivos que ele pintou, sentir o que ele sentia diante dessas mesmas paisagens. Empreendemos uma espécie de via-sacra: caminhamos pelas ruas de pedra do vilarejo munidos de um livro com reproduções dos quadros de Van Gogh, como se segue um mapa. Paramos diante dos campos cultivados, das casas, dos muros cobertos de hera, das paredes de pedra do castelo de Auvers, dos fundos da igreja gótica.

Van Gogh deu a todos esses elementos uma nova aura. Lembram-se como, em seus quadros, ele transforma ciprestes em labaredas verdes? Tudo em suas telas pulsa, como se tivesse vida orgânica. Em Auvers, ele viveu a experiência da solidão extrema e foi além dos limites da ruptura interna: Theo, que era seu único esteio, se casara; seus quadros não vendiam; ele estava doente e debilitado. Havia dado a si mesmo dez anos para alcançar o sucesso e o tempo rapidamente se esgotara, deixando no seu rasto apenas frustração: “Uma tela que pinto vale tanto quanto uma tela branca”, escreveu.

Theodore, “Theo”, o irmão querido de Van Gogh, a quem o pintor endereçou 600 cartas.

No domingo, 27 de julho de 1890, partiu para o suicídio. Cruzou um campo de trigo, contemplou a paisagem ao redor e disparou um tiro no peito. Caiu sobre a relva e ficou desacordado durante horas. Voltou caminhando ao quarto do hotel, gravemente ferido. Chamado, o doutor Gachet já não podia fazer nada. Dois dias depois, o pintor faleceu.

Depois do enterro, Theo voltou ao quarto. No bolso do paletó surrado, feito de sarja azul-celeste – o mesmo com o qual seu irmão se fizera retratar no quadro “A Caminho de Tarascon” –, encontrou a última carta que Van Gogh ainda não lhe enviara. Nela, o pintor redigira seu epitáfio: “No meu trabalho arrisco a vida, e metade da minha razão nele se desfez.” Van Gogh morreu tendo vendido apenas um quadro em toda a sua vida.

PARA SABER MAIS:

www.franceguide.com

Van Gogh, Pierre Cabanne, Editora Verbo.

A Vida Trágica de Van Gogh, Irving Stone, José Olympio Editora.

Cartas a Theo, L&PM.