Quase um terço das aves do Neotrópico, região que vai do sul do México e do estado norte-americano da Flórida até o extremo sul da América do Sul, pertence à subordem dos suboscines. Esse grupo abrange 1.306 espécies de pequeno porte, quase todas presentes apenas nas Américas, entre as quais algumas muito conhecidas, como o bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) e o joão-de-barro (Furnarius rufus). A Amazônia, a Mata Atlântica e a parte norte dos Andes são atualmente as grandes áreas de concentração de biodiversidade, os chamados hotspots, da subordem, uma das duas em que se divide a ordem dos Passeriformes, os populares passarinhos, aves de pequeno porte, muitas delas conhecidas pelo canto harmonioso. Mas nem sempre foi assim.

Segundo artigo publicado em 11 de dezembro na revista científica “Science”, as principais linhagens de suboscines surgiram em pontos extremos e remotos das Américas, como desertos e topo de montanhas, em áreas secas de clima frio ou instável. Para esse grupo de aves, o processo de aparecimento de novas espécies, denominado especiação pela biologia, teria começado há cerca de 50 milhões de anos. Apenas mais tarde, a maior parte dessas espécies se deslocou e se estabeleceu nos atuais hotspots de biodiversidade, ambientes mais amenos e hospitaleiros.

Paradoxo

Paradoxalmente, os lugares inóspitos das Américas em que o processo de especiação desse grupo de aves foi mais intenso, como a Patagônia, na Argentina, são hoje coldspots, áreas com baixa diversidade de espécies, onde devem ter ocorrido muitas extinções no passado. O estudo defende a hipótese de que os atuais hotspots tropicais seriam grandes concentradores de espécies, mas a origem da maior parte de sua diversidade viria dos coldspots, que, no entanto, não ofereceriam condições naturais para manter muitas de suas formas de vida no longo prazo. Esses coldspots se concentram nas regiões central e sul dos Andes, na Patagônia, no Caribe e no chamado Neártico, região que abarca Groenlândia, Canadá, Estados Unidos e norte do México.

Formigueiro-do-litoral (Formicivora littoralis), comum em áreas de restinga do Rio de Janeiro. Crédito: Ciro Albano

“Basicamente, o trabalho mostra que a Amazônia e os demais hotspots funcionariam como ‘museus’ de aves, que, ao longo do tempo, também acumulariam e preservariam muitas das espécies originadas em áreas remotas”, explica Luís Fábio Silveira, chefe de divisão científica e curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos dois brasileiros que assinam o artigo. O outro é o ornitólogo Alexandre Aleixo, hoje na Universidade de Helsinque, na Finlândia, ex-pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém. “Essa conclusão nos surpreendeu e contrasta com o que acreditávamos ser o padrão geral de especiação desse grupo de aves no Neotrópico, especialmente na Amazônia”, conta Silveira, cujo projeto foi financiado pela Fapesp. Como regra, os pesquisadores supunham que as aves surgiam nas próprias áreas de maior concentração de espécies.

Formação mais lenta

“A análise desses dados sugere que a formação de espécies é mais lenta, ao invés de rápida, nos hotspots de aves suboscinas e que o tempo [decorrido desde o início da especiação dessas aves], e não o ritmo de especiação, explica as diferenças de diversidade”, escreveu a matemática e ecóloga francesa Hélène Morlon, da Escola Normal Superior de Paris, na França, em um comentário publicado na mesma edição da “Science”.

Segundo o ecólogo Mercival Roberto Francisco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) do campus Sorocaba, hotspots como a Amazônia não têm índice baixo de especiação. “O trabalho mostra, no entanto, que esses índices são ainda mais altos em ambientes mais instáveis, geralmente mais frios e secos”, conta. “Essas regiões com índices elevados de especiação apresentam hoje diversidade mais baixa porque tiveram taxas elevadas de extinção ou de movimentação de espécies para os hotspots.”

Regiões montanhosas e de clima frio, como o páramo de Guacheneque, na Colômbia, foram centros de surgimento de novas espécies no passado e hoje têm baixa diversidade. Crédito: Luis Alejandro Bernal Romero/Wikimedia Commons
Auxílio a futuros estudos

Ao longo de oito anos, o estudo reuniu 1.940 amostras de material genético de 1.287 espécies de suboscines – o correspondente a 98,5% da diversidade desse grupo. Algumas das amostras foram coletadas há mais de 40 anos. Foi necessária a criação de uma rede com dezenas de pesquisadores de 20 instituições científicas das Américas do Norte e do Sul, e também da Europa, para reunir informações sobre espécies de uma área geográfica tão extensa. “Foi a única forma de concluir um projeto de grande porte como esse”, conta Silveira. “Essa rede permitiu a troca de amostras entre diferentes museus para a realização do sequenciamento genético e o processamento dos dados.”

O trabalho do ornitólogo Michael Harvey, da Universidade do Texas em El Paso, Estados Unidos, um dos coordenadores, e seus colaboradores também pode auxiliar futuros estudos de evolução das características dos pássaros suboscines. “A equipe conseguiu a façanha de inferir a filogenia [a relação evolutiva entre as espécies] de um dos grupos mais diversos e biologicamente interessantes de aves, que guardam informações sobre milhões de anos de evolução da biota Neotropical”, comenta o ornitólogo Fabio Raposo do Amaral, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema.

Ameaça humana

Inicialmente preocupados com a proteção das regiões tropicais, onde hoje estão as mais altas taxas de biodiversidade desses pássaros, os ornitólogos verificaram no decorrer do estudo que vários dos coldspots – entre eles os páramos, vegetação de montanha encontrada no Equador, Peru, Colômbia e Venezuela – também se encontram ameaçados pelas atividades humanas. “Esperamos que a descoberta de que as taxas mais altas de especiação ocorrem em ambientes extremos leve à reavaliação das políticas de conservação dessas áreas”, afirma Harvey. “Precisamos protegê-las, porque desempenharam um papel-chave de geração de novas espécies.”

Ao mesmo tempo que chama a atenção para áreas que pareciam sem importância, Harvey lembra que não é possível descuidar dos hotspots tropicais. “Como a taxa de especiação é menor nesses ambientes de alta biodiversidade, a reposição das espécies perdidas leva um longo tempo”, explica.

O grupo planeja agora verificar se o padrão de formação de espécies observado para os pássaros também ocorre em outros grupos de aves, além de répteis, anfíbios, peixes e mamíferos. “Imagino que encontraremos resultados semelhantes para os grupos de animais com elevada diversidade de espécies”, diz Silveira.

 

PROJETOS
  1. Avaliação, recuperação e conservação da fauna ameaçada de extinção do Centro de Endemismo Pernambuco (CEP) (nº 17/23548-2). Modalidade Projeto Temático. Pesquisador responsável Luís Fábio Silveira (USP). Investimento R$ 2.922.805,32.
  2. Sistemática, biogeografia e evolução fenotípica dos Thamnophilini (Aves, Thamnophilidae): Uma aproximação baseada em sequenciamento maciço de DNA (nº 12/23852-0). Modalidade Bolsa de Pós-doutorado. Pesquisador responsável Luís Fábio Silveira (USP). Bolsista Gustavo Adolfo Bravo Mora. Investimento R$ 257.006,85.
ARTIGO CIENTÍFICO

HARVEY, M. G. et al. The evolution of a tropical biodiversity hotspot. “Science”. 11 dez. 2020.

 

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.