Em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, dois índios foram eleitos e tomaram posse como prefeito e vice-prefeito do município.

Pedro Garcia, 47 anos, da etnia tariana, e André Fernando, 37, do povo baniwa, tomaram posse, em 1º de janeiro de 2009, como prefeito e vice-prefeito regularmente eleitos de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas – município com mais de 40 mil habitantes, quase todos indígenas. O ato quebrou a crença equivocada e defasada de muita gente em nosso país – inclusive das camadas dirigentes – segundo a qual os índios ainda não estão preparados para a política e o poder.

Garcia e Fernando afirmam que, em um país de tamanha diversidade cultural e de tantos contrastes econômicos e sociais, os indígenas enfrentam um duplo desafio nos dias atuais: sair do “miserabilismo” que costuma acompanhar os seus processos de aculturação e fazer com que a sua cultura tradicional sobreviva ao lado da cultura branca. Para eles, a alegria de viver e a singularidade cultural que conseguiram preservar ao longo de milênios de existência não podem ser apagadas nessa passagem da tribalidade para a civilização.

A vitória política de Garcia e Fernando só foi possível quando as 22 etnias que vivem em São Gabriel da Cachoeira – o terceiro município mais extenso do Brasil, com área superior à de Portugal – se uniram para eleger, pela primeira vez no Brasil, prefeito e vice indígenas, e de tribos diferentes.

Para os antropólogos, o ineditismo dessa vitória não está apenas na eleição de um prefeito e vice indígenas, mas sobretudo por vocês pertencerem a nações diferentes. Vocês concordam com essa afirmação?

PEDRO GARCIA – É difícil dissociar a imagem dos índios daquela descrita pelos antropólogos. Eles sempre afirmam que há muita rivalidade entre as etnias. E que, a despeito desses atritos entre tribos, aqui ocorreu uma tremenda e inédita união para que nos elegêssemos. Concordamos que realmente houve essa união, mas discordamos da ideia de uma rivalidade permanente. Para vocês, brancos (não-indígenas), guerra e conflito são a mesma palavra e têm o mesmo significado. Mas elas são coisas diferentes. É mentira que sempre vivemos em guerra. O povo tariano é imenso, subdividido em oito grupos. Se um grupo entra em litígio territorial com os ianomâmis, por exemplo, pronto, lá vêm os antropólogos com a ladainha: tarianos e ianomâmis estão em pé de guerra. Vocês exageram, escrevem coisas que não acontecem. Vocês não vão lá para ver as coisas como elas realmente são. Isso é muito ruim para nós.

Ainda se ouve com frequência que os povos indígenas são incapazes de se autogovernar e devem ser tutelados pelo governo brasileiro. Vocês concordam?

PEDRO GARCIA – Terminei o ensino fundamental em 1978 e o ensino médio em Manaus, onde também me formei na Escola Técnica de Agronomia, em 1986. Na época, era o único estudante indígena, e havia por parte de alguns colegas preconceito pelo fato de eu ser índio. Nesses tempos, percebi a dificuldade de manter nossa sobrevivência após 300 anos de submissão. Tínhamos medo dos brancos. Fomos educados por missionários que acreditavam que deveriam tratar os “silvícolas” em internatos com regime militar. Tudo era medo, horários e ordens misturados com pecado. Não tínhamos o direito de abrir a boca. Isso acabou com a gente. Foi quase irreversível e provocou muito sofrimento em nosso povo. Sentimos duramente o golpe, e agora estamos nos unindo para reverter a situação.

ANDRÉ FERNANDO – Não somos ouvidos, e vocês ainda criam uma muralha diante da nossa sociedade indígena. Têm pouco conhecimento a respeito dela. Sou baniwa e, como quase todos da minha etnia, falo, além de português e espanhol, mais três idiomas indígenas. Meu pai queria que seus nove filhos estudassem. Ele acreditava que nós, um dia, se estudássemos, teríamos mais entendimento para encontrar respostas para a sobrevivência do nosso povo, que já naquele tempo estava à deriva. Depois de oito anos estudando, tive que voltar para ajudar nossa comunidade. Ela vivia um momento de crise, com alto índice de alcoolismo. Queria muito continuar meus estudos, mas a vida me fez permanecer lá. Aí começou minha participação nos movimentos indígenas.

Para os brancos, guerra e conflito são a mesma palavra e têm o mesmo significado. Mas elas são coisas diferentes. É mentira que sempre vivemos em guerra PEDRO GARCIA

Quando começou essa aliança entre os povos do Alto Rio Negro?

PEDRO GARCIA – Começou há 20 anos, quando fundamos a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), com o objetivo de unir os 22 grupos étnicos que vivem na região em prol da demarcação de terras e na busca de uma vida melhor, mas sem perder a identidade. No meu caso pessoal, fui além. Para entender as leis dos brancos que regem nosso povo, quis me formar em direito, mas, por problemas financeiros, não pude completar os estudos. Para aprofundar meus conhecimentos sobre questões indígenas, fui administrador da Funai e desde 1999 estou na política, tentando me eleger prefeito e deputado federal.

Pedro Garcia (à esquerda) é saudado por outro indígena.

E agora, eleitos, o que muda na vida de vocês?

PEDRO GARCIA – Não muda nada! Sou tariano e agora sou prefeito de São Gabriel da Cachoeira. Nós somos um povo. Temos história, cultura e tenho identidade. Temos nossa religião. Nosso território é muito mais antigo do que o território do Brasil como nação. Para os antropólogos, nós não temos história, temos apenas mitos. Só porque vocês têm a Bíblia, e toda a criação está descrita nela, isto a torna verdadeira e única? Eu tenho um deus, acredito nele, e sei que ele me protege. É difícil tentar explicar tudo isso para um branco.

ANDRÉ FERNANDO – Eu sou, nesta ordem: indígena, baniwa e brasileiro. Isso não muda. Todos os índios têm orgulho de ser brasileiros, mas, primeiro, somos indígenas. Defendemos nossa terra. Chegamos aqui antes de vocês. Achamos graça quando dizem que querem preservar a Amazônia. A Amazônia somos nós. Quem luta para expulsar esses novos donos de terras que chegam aqui desmatando e poluindo os rios? A única forma de preservar a floresta é respeitar nossa cultura e nossa terra. O governo tem de abraçar nossas ideias, que são realistas, e aceitar nossos conhecimentos. Se nossa visão é diferente, então é claro que o que faremos será diferente.

Se não pretendem perder sua identidade, como colocar em prática, em uma administração municipal, esse universo indígena?

PEDRO GARCIA – Aprendi a fazer política na FOIRN, que não prioriza uma região ou um clã. Luta por todos, e mostra isso através de ações concretas. ‘O povo te escolheu’, diziam os chefes, ‘qual será o teu comportamento?’ Nossa proposta foi trabalhar para todo mundo, inclusive para a minoria, que aqui são os não-indígenas. Não posso falhar e sei que conseguirei dar conta do recado, apesar de a saúde financeira da prefeitura estar bem debilitada. Respondendo de uma maneira mais simples, para manter nosso universo e resgatar nossas raízes, começaremos mostrando as diferenças e as harmonias entre nossos povos, e apresentaremos tudo isso com muita riqueza numa grande festa, o Festribal.

ANDRÉ FERNANDO – Para não perder os conhecimentos e as qualidades preciosas dos diversos povos indígenas, nossa meta será criar escolas indígenas diferenciadas. Você sabia que a taxa de analfabetismo na nossa região é zero? Mesmo assim, esbarramos na política pública educacional, que, para nós, é equivocada.

Eles não entendem nossa realidade. Agora, eleitos, vamos tentar equalizar esses problemas. Eles querem que a gente compreenda a floresta com a visão deles. A escola que queremos será para ensinar e estudar tudo aquilo que gostamos de fazer, e não para aquilo que a cultura branca indica. Já tentamos seguir essas indicações e conhecemos bem os seus resultados: altos índices de alcoolismo, prostituição, drogas e suicídio. Mas nossas escolas nas comunidades têm dado outros resultados. (André se refere à premiada escola indígena Pamáali, no rio Içana, extremo noroeste do Brasil, fundada em 2000 e baseada no mote ‘fala que eu te escuto’.)

Desde 1996 pleiteamos uma escola sem interferência, multilingual, concebida dentro da nossa realidade, com formação de nossos professores. Professores baniwas nas aldeias baniwas, professores barés nos povoa dos barés, e assim por diante. A verdade de cada tribo tem de ser vivida, e não ensinada teoricamente.

A escola que queremos será para ensinar e estudar tudo aquilo que gostamos de fazer, e não para aquilo que a cultura branca indica ANDRÉ FERNANDO

O vice-prefeito André Fernando, com sua esposa e o filho caçula.

E o futuro?

PEDRO GARCIA – Ainda teremos de lutar muito pela nossa existência (a população indígena no Brasil é estimada em 400 mil pessoas). Hoje, de fato, há mais justiça para os indígenas. Mas o que é certo é que, se não lutarmos, ninguém vai fazer nada para a gente. O mais importante: queremos nos integrar à sociedade brasileira, mas sem abandonar nossa história, nossa cultura e nossas tradições.

ANDRÉ FERNANDO – Eu sempre me pergunto: de onde vem tanto desamor para com os índios? Minha obsessão pelas escolas talvez tenha origem na necessidade de encontrar uma resposta para essa pergunta. E que sejam escolas capazes de formar futuras gerações fortes e livres, que não mais façam parte de povos exauridos.