Há décadas que as montadoras vendem carro exibindo todo o conforto de se dirigir um automóvel, sempre nos percursos mais lindos a serem percorridos. Mas há décadas que a cena também é uma falácia. O uso do carro, principalmente nos grandes centros urbanos, se mostrou um grande mal para a saúde humana e o meio ambiente.

Mesmo com os avanços técnicos nos motores, os carros ainda são grandes poluidores do ar, por emitirem grande quantidade de dióxido de carbono, um dos gases causadores do efeito estufa. Devido ao seu acúmulo na atmosfera, eles colaboram para que a temperatura média da Terra aumente ao longo dos anos, o que tem acarretado sérias mudanças climáticas e desestabilizado os ciclos naturais do planeta.

Nos anos 1960 e 1970, o principal agente causador da poluição do ar eram as fábricas, mas depois esse posto passou a ser ocupado pelas emissões de veículos motores, que se tornaram a causa número um de doenças e mortes por problemas respiratórios. O trânsito ainda ameaça a vida de outra forma. Calcula-se que 1 milhão de pessoas morram anualmente vítimas de acidente com veículos.

O caminhão programado para levar cerveja sem motorista nos Estados Unidos
O caminhão programado para levar cerveja sem motorista nos Estados Unidos

Locomover-se também pode significar passar um bom tempo praticamente parado nas ruas e avenidas. Em muitos centros urbanos, virou rotina demorar mais de hora nos congestionamentos. Muitas pessoas chegam a perder seis horas por dia no trajeto casa-trabalho-casa. Ruim para a saúde e para a qualidade vida, ruim para a economia. Urbanistas são unânimes em ressaltar o impacto da qualidade da mobilidade urbana na influência no crescimento econômico, na geração de emprego, na indústria e nos negócios de uma cidade.

“Há uma visão de que esse modelo precisa mudar”, afirma Marcos de Sousa, diretor de comunicação da ONG de mobilidade sustentável Mobilize Brasil. “Ele foi desenhado no fim do século 19, início do 20, e começou a dar sinais de problemas por volta dos anos 1940 e 1950, chegando ao limite na década de 1980.” A mudança começou aos poucos, com o surgimento dos carros híbridos e elétricos no fim do século passado e o progressivo incentivo ao uso das bicicletas nas cidades. Mas agora, um novo leque de opções promete transformar para sempre essa paisagem.

Admirável transporte novo

No fim de outubro, um caminhão carregado com 50 mil latas de cervejas percorreu 75 km de estrada para fazer uma entrega no Colorado (EUA) sendo guiado não por um motorista, mas por um sistema de software e hardware avaliado em US$ 30 mil. Na Alemanha, o governo decretou que os carros a combustão deixarão de ser produzidos em 2030 e serão proibidos de circular no país a partir de 2050. Ao mesmo tempo, as autoridades alemãs anunciaram que destinarão US$ 1,3 bilhão em subsídios para carros elétricos até 2019.

Ford Fusion híbrido
Ford Fusion híbrido

A GM, assim como a Ford (veja sobre essa montadora a entrevista concedida pelo executivo Luciano Driemeier em PLANETA 527) e outras gigantes do setor automotivo, agora se posiciona como uma empresa de serviço de mobilidade e não mais uma montadora. Em paralelo, ela está apostando no Maven, um serviço de carros compartilhados (carsharing). A montadora já investiu pesado também no Lyft (concorrente do Uber), que comprou por US$ 500 milhões.

Esses são apenas alguns dos exemplos mais emblemáticos de para onde se move a mobilidade, incluindo modais como veículos elétricos ou híbridos, autônomos e compartilhados. “As montadoras estão hoje num movimento mundial de reacomodação para um cenário futuro. Todas as grandes estão vislumbrando uma mudança na forma de utilização dos automóveis”, avalia Sousa.

Sem virar fumaça

Os departamentos de pesquisa e desenvolvimento buscam há anos uma solução para as emissões dos veículos. O problema das mudanças climáticas favoreceu o investimento em novas tecnologias menos poluentes e reforçou a urgência da mudança para uma economia de baixo carbono. Por isso, as grandes do setor automotivo se adiantaram em suas ofertas de modelos “verdes”.

Usuária do Maven, sistema da montadora GM de carros compartilhados
Usuária do Maven, sistema da montadora GM de carros compartilhados

A Volkswagen, que há dois anos ocupou os noticiários por conta da adulteração intencional dos dados sobre as emissões de seus veículos, esforça-se agora para vender sua linha de elétricos. A grande aposta, apresentada no último Salão do Automóvel de Paris, é o ID. A montadora pretende vender 1 milhão de carros elétricos até 2025.

Para isso, a ideia é oferecer o automóvel, na Europa, pelo valor de um carro popular por lá, como o Golf, em torno de € 20 mil. Na mesma linha, o Bolt, da GM, foi apresentado por US$ 30 mil no Salão de Detroit de 2016. A popularização desses modelos será um desafio, sobretudo nos países com moedas desvalorizadas, como no Brasil, onde o carro elétrico mais vendido no mundo hoje, o Nissan Leaf, custa em torno de R$ 120 mil, valor parecido ao do híbrido Toyota Prius.

Mãos livres

A condução do caminhão de cervejas no Colorado foi programada pela Otto, uma startup comprada recentemente pelo Uber por US$ 680 milhões. O valor dá a dimensão do quanto o Uber aposta nos autônomos. É o caso também do Google, que investe cerca de US$ 200 milhões em autonomia de direção. Entre as montadoras, a lista das que apostam nos autônomos é extensa. Quase todas já colocaram um pezinho no acelerador dos carros inteligentes. Os mais recentes salões do automóvel trazem um cardápio de carros que já chegam com algum grau de autonomia.

O ID, aposta da Volkswagen em carro elétrico
O ID, aposta da Volkswagen em carro elétrico

A Ford planeja uma frota de autônomos nível 4 – o maior deles – a circular já em 2021. Para isso, triplicou seus investimentos em startups do Vale do Silício e em sua própria equipe de pesquisa e desenvolvimento. Alguns protótipos já são vistos nas ruas americanas. Isso é possível graças ao aval do governo dos EUA, que tem incentivado regulamentações para os testes. Nove estados autorizam que os protótipos circulem em fase de prova.

Entre eles está a Califórnia, único a permitir a circulação de autônomos sem nenhum acompanhante – em geral, nessa fase há um motorista humano de prontidão.
E o incentivo por parte do governo americano vai além. Tendo como porta-voz o próprio (então) presidente Barack Obama, o país anunciou US$ 4 bilhões em subsídios nos próximos dez anos para o desenvolvimento de tecnologias destinadas ao incremento da autonomia dos carros.

Propriedade em xeque

Se, por um lado, a autonomia dos veículos ajuda a aumentar a segurança e os motores verdes diminuem (mas não eliminam) a poluição do ar, por outro, nenhum deles acaba com os congestionamentos significativamente responsáveis pela queda na qualidade de vida nas grandes cidades. Assim, o compartilhamento que começou a existir nas múltiplas esferas da economia se estendeu também à locomoção.

Veículo para compartilhar da frota da Car2Go em Stuttgart, na Alemanha
Veículo para compartilhar da frota da Car2Go em Stuttgart, na Alemanha

Não por acaso, a Car2Go, serviço de carro compartilhado, em atuação na Alemanha desde 2008, possui 1,5 milhão de clientes em países da Europa, nos EUA, no Canadá e na China. Da mesma forma, será possível ver rodando pelas ruas de São Paulo veículos da Maven, a aposta da GM em compartilhados que já faz sucesso em San Francisco e em outras oito cidades americanas.

Se analisados os números, vamos perceber que demorou para fazermos esse balanço. A taxa média de ocupação de um carro é de 1,1 pessoa. Enquanto isso, 90% dos carros ficam parados durante 95% do tempo. Um terço da área urbana é ocupado por eles. “Percebeu-se que a mobilidade individual é inviável”, ressalta Ana Nassar, diretora de Programas do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, o ITDP.

O diário americano Wall Street Journal chegou a decretar em um artigo o fim da propriedade de veículos para daqui a 25 anos. Segundo o autor do texto, Dan Neil, as únicas pessoas a possuir um carro nessa época serão aqueles que o fazem por hobby ou que acreditam que a Terra é plana.

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Táxi-drone

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Meca do luxo e do vanguardismo no Oriente Médio, Dubai não poderia se furtar a (tentar) lançar moda também na área da mobilidade urbana. Sua proposta é ultraousada: em julho, a maior cidade dos Emirados Árabes Unidos (EAU) pretende usar drones autônomos para transportar passageiros. Os veículos a serem usados são fabricados pela chinesa EHang, que já tem alguma experiência com drones de transporte e faz testes em outros locais do mundo. A proposta, divulgada em fevereiro por Mattar al-Tayer, diretor da Agência de Estradas e Transportes da cidade, não esclarece se os aparelhos a serem utilizados em Dubai – todos do modelo 184, de formato oval e dotados de quatro pernas – comporão uma frota do governo ou se o novo serviço será aberto à iniciativa privada.

Por enquanto, não dá para pensar em transporte coletivo no que se refere aos drones. O EHang 184, que funciona de modo autônomo, sob a supervisão de uma central de comando, só pode levar um (certamente endinheirado) passageiro por vez. Sua capacidade de transporte chega a 100 quilos. Ele possui um compartimento para se colocar um objeto do porte de uma maleta, e sua autonomia de voo chega a 30 minutos, que seria suficiente para deslocamentos de até 50 quilômetros. O usuário precisa simplesmente sentar-se no assento e inserir seu destino numa espécie de tablet posicionado à sua frente, num procedimento parecido com o que se faz no Waze ou no Uber. A velocidade máxima do aparelho é de 160 km/h, mas em circunstâncias normais ele deverá voar a 100 km/h.

Dubai não quer se limitar aos drones de transportes. Em outubro, as autoridades locais assinaram um acordo com a Hyperloop One, do bilionário Elon Musk, para estudar a viabilidade de construir uma linha de hyperloop entre a cidade e Abu Dhabi, capital dos EAU. O sistema envolve cápsulas movidas por eletricidade de eletromagnetismo que se deslocam em tubos a mais de 1.200 km/h. Musk havia proposto esse modo de transporte em 2013 para unir San Francisco e Los Angeles, na Califórnia.


A vez dos pedestres

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A venda de automóveis ainda mantém trajetória para cima em muitos países. No México, por exemplo, cuja capital tem um dos piores trânsitos do mundo e foi uma das primeiras metrópoles a instituir o rodízio de veículos, a indústria automobilística é a que mais cresce. Nos Estados Unidos, o aumento no financiamento de veículos tem deixado vendedores animados. O Brasil também não foge dessa tendência. Em 17 cidades e regiões metropolitanas do país houve um aumento de 95% na taxa de motorização entre 2001 e 2014.

Ao mesmo tempo, iniciativas – sobretudo em cidades europeias – mostram que o carro perde cada vez mais espaço nas ruas. Na espanhola Barcelona (foto acima) estão sendo criados superquarteirões onde a circulação de carros está sendo autorizada apenas aos moradores locais. Muitas outras cidades do Velho Continente já anunciaram seus planos para reduzir cada vez mais a circulação veicular nas ruas. “Não é uma moda. Estamos importando o modelo do desuso do automóvel, assim como importamos o uso”, avalia Marcos de Sousa, da ONG Mobilize.


A força da conectividade

Os carros digitais – dotados de sistemas de navegação, que permitem aos condutores escolher as melhores rotas – já são uma realidade há algum tempo, e é por aí que as montadoras traçam suas apostas. De acordo com a consultora McKinsey, esses veículos abrem três novas fontes de receita para as montadoras. Começa pela customização do carro; depois, com venda de dados dos usuários para empresas interessadas, como seguradoras; em seguida, vem a publicidade integrada às mídias no veículo e direcionada ao condutor. Apenas para ilustrar o potencial desse mercado, o GoogleMaps, sistema de GPS para consultar rotas e tráfego, possui cerca de 1 bilhão de acessos todos os meses.