Artigo publicado na revista “Neotropical Ichthyology” apresenta o mais robusto trabalho já feito sobre a alimentação dos poraquês na natureza. A análise do conteúdo estomacal de 43 exemplares da espécie Electrophorus varii mostrou que o peixe-elétrico amazônico se alimenta predominantemente de outros peixes, inclusive alguns dos mais difíceis de engolir. O estudo refuta hipóteses levantadas anteriormente de que o animal seria um carnívoro generalista ou mesmo um onívoro.

A investigação foi conduzida por pesquisadores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Universidade Federal do Amapá (Unifap), no âmbito do projeto “Diversidade e evolução de Gymnotiformes”, financiado pela Fapesp e coordenado por Naércio Menezes, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP).

Realizado em parceria com o Museu Nacional de História Natural, da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos, o projeto vem ampliando o conhecimento sobre os peixes-elétricos nos últimos anos. A E. varii, aliás, foi uma das duas novas espécies descritas em 2019 pelo grupo liderado por Carlos David de Santana, pesquisador associado do museu norte-americano (leia mais em: agencia.fapesp.br/31422).

Visão ruim

“Ainda há poucos estudos sobre a biologia desse peixe, sobretudo a respeito da sua alimentação. Os existentes até então são baseados em observações feitas em cativeiro ou reproduzem relatos anedóticos”, conta Raimundo Nonato Gomes Mendes Júnior, analista ambiental do ICMBio e primeiro autor do trabalho.

No estudo, os pesquisadores encontraram peixes em 96,6% dos estômagos analisados, sobretudo bagres, como o tamuatá, e ciclídeos, como os acarás. Insetos e crustáceos foram considerados presas ocasionais ou acidentais. Os peixes encontrados possuem muitos espinhos e por isso costumam ser alvos de predadores maiores, como jacarés e ariranhas. O tamuatá tem, inclusive, placas ósseas externas que formam uma “armadura” ao longo do corpo, além de espinhos nas nadadeiras.

Ocasionalmente, foram observados alguns poraquês cujos estômagos continham somente uma única semente de açaí (Euterpe oleracea). “Os poraquês têm uma visão muito ruim, são praticamente cegos e, por isso, se orientam por meio de descargas elétricas fracas. Na hora do ataque, o que está junto da presa provavelmente acaba sendo engolido junto. Em alguns estômagos foram encontrados folhas e galhos. Não quer dizer que eles se alimentem disso”, explica o pesquisador.

Faça chuva ou faça sol, a dieta é a mesma

Os animais analisados foram coletados na Área de Proteção Ambiental (APA) do rio Curiaú. A unidade de conservação fica no perímetro urbano de Macapá (AP) e abriga uma comunidade remanescente de quilombo. Uma vez que pescam as espécies favoritas dos poraquês, os quilombolas estão acostumados com a presença dos peixes-elétricos e participaram da coleta de todos os exemplares analisados no estudo.

Os poraquês foram capturados durante o ano todo, com coletas realizadas a cada dois meses. O objetivo era verificar se havia diferenças na dieta entre o período de cheias (janeiro a junho) e o de seca (julho a dezembro). Em planícies alagadas, como a região estudada, o regime de chuvas é um ingrediente crucial na dinâmica alimentar. Na cheia, os peixes têm mais área disponível e ficam mais dispersos. Por isso, são mais difíceis de serem pegos por predadores guiados pela visão, como os tucunarés (Cichla melaniae) e as traíras (Hoplias spp.), por exemplo, e são obrigados a incluir camarões e outras presas à dieta nesse período do ano.

Na seca, contudo, as águas baixam e formam lagos e poças, aprisionando os peixes e facilitando a captura por predadores. O estudo mostrou que, para os poraquês, as estações não influenciam a dieta. “Ela não muda ao longo do ano. Nossa hipótese é que as táticas de localização e de caça do poraquê, que independem da visão, eliminam os impedimentos para comer peixes o ano todo”, afirma Mendes.

Grupos para caçar

Os poraquês podem formar grupos para caçar e até mesmo paralisar presas a distância com suas descargas elétricas fortes, que na espécie estudada chegam a 650 volts. Além disso, sobem à superfície para respirar e por isso podem caçar presas que vivem em águas rasas e com pouco oxigênio, como o tamuatuá e outros bagres (leia mais em: agencia.fapesp.br/34996).

Além da estação do ano, os pesquisadores puderam determinar que indivíduos juvenis e adultos (de 40 centímetros a 1,80 metro de comprimento) têm basicamente a mesma dieta, mudando apenas o tamanho das presas. A medição dos intestinos mostrou ainda que estes são relativamente curtos, uma característica de espécies carnívoras. Mais uma evidência que refuta argumentos de que o poraquê seria onívoro.

“Conhecer a biologia das espécies é fundamental para traçar estratégias de proteção e garantir que as futuras gerações possam conhecer os poraquês não apenas em zoológicos e aquários, mas em seu habitat natural”, explica Mendes.

O artigo Feeding ecology of electric eel Electrophorus varii (Gymnotiformes: Gymnotidae) in the Curiaú River Basin, Eastern Amazon, de Raimundo Nonato Gomes Mendes-Júnior, Júlio César Sá-Oliveira, Huann Carllo Gentil Vasconcelos, Carlos Eduardo Costa-Campos e Andrea Soares Araújo, pode ser lido em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-62252020000300202&tlng=en.