Uma nova etapa da recuperação do , no centro histórico de Salvador levou à criação de uma associação de moradores locais dispostos a lutar para não serem removidos. De seu trabalho surgiu uma nova maneira de revitalizar a região, preservando a dignidade de seus habitantes

Casarões em reforma na Rua do Bispo (no alto e à esquerda); Jecilda Mello, presidente da Amach (acima); Lidian Correia (direita) e Isabel dos Santos (abaixo), moradoras já instaladas nos imóveis restaurados. O casario em ruínas (à direita, abaixo) contrasta com os imóveis reformados (abaixo)

A Rua do Bispo é como muitas outras vias do centro histórico de Salvador. Nas várias edificações repletas de manchas de umidade, os cubículos que servem de moradia estão a poucos metros dos dejetos de seus habitantes. Numa atmosfera decadente e opressiva, indivíduos vivem deita- Ados ou sentados nas calçadas em pleno dia, com poucas opções de ganha-pão.

No alto, vista do , no centro histórico de Salvador. Graças à ação da Amach, moradores como a filha de Maria de Lurdes (acima) têm agora moradia decente.

Mas existe algo diferente na Rua do Bispo. Em casarões recuperados e pintados em tons suaves moram, com dignidade, pessoas que até recentemente habitavam as casas enegrecidas ao lado. A rua deixou de ser igual às outras quando, há nove anos, moradores da área começaram a receber uma ordem judicial de despejo, indicativa da sétima etapa do programa de revitalização do (ou “Pelô”, apelido pelo qual o centro histórico da capital baiana também é conhecido). Como nas fases anteriores, em que os habitantes receberam uma pequena indenização ou foram deslocados para a periferia, a notícia soou “como a pior da vida”, recorda Elisangela Nunes, 24 anos. “O medo então apareceu”, reforça Jecilda Mello, 53, há 19 anos moradora daquela região. E a Rua do Bispo não foi mais a mesma. Mas, para se entender tudo o que aconteceu, é preciso recuar até a década passada.

Em 1992, 3 mil casarões do centro histórico de Salvador retratavam a arquitetura de um conjunto colonial com mais de 400 anos, considerado o mais importante da América Latina. Mas muitos visitantes o evitavam, por receio de encarar o assédio de uma multidão de camelôs e de sofrer “puxões” de mulheres pedintes com uma fila de crianças a reboque – isso para não falar no risco de assaltos. A própria vista dessa jóia do Patrimônio da Humanidade, tombada pela Unesco, se perdia em meio à dificuldade de achar beleza num lugar tão depauperado.

Conhecendo o valor histórico do lugar e seu potencial turístico para Salvador, o então governador Antônio Carlos Magalhães assumiu a recuperação do e de seu entorno. Etapas tinham de ser rapidamente cumpridas para que o centro histórico fosse preservado, urbanizado e revitalizado. Desse modo, os habitantes locais tiveram de se mudar na marra; alguns receberam uma indenização média, na época, de R$ 1.500,00, outros foram realocados na periferia, longe de seu hábitat de mais de 30 ou 40 anos.

“Não entro no mérito de se foi certa ou errada a forma, naqueles dias, de desalojar os moradores”, afirma Walfredo Ribeiro, arquiteto da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder), que acompanha desde o início a recuperação do . “O certo é que, se não fosse daquele jeito, o centro histórico teria desaparecido.” Hoje em dia, basta caminhar por ruas não alcançadas pelo programa de revitalização para comprovar as palavras do arquiteto. Vários dos magníficos casarões locais não passam de fachadas, pois seus interiores já ruíram.

Uma nova etapa da recuperação do , no centro histórico de Salvador levou à criação de uma associação de moradores locais dispostos a lutar para não serem removidos. De seu trabalho surgiu uma nova maneira de revitalizar a região, preservando a dignidade de seus habitantes

Quem andou pela região do no final dos anos 1990 encantou-se com a reforma. Havia restaurantes, joalherias e lojas de antigüidades. O governo baiano bancava programações culturais, com shows diários de artistas, que serviam de atração principalmente para turistas. Mais tarde, sem verba, a brincadeira acabou.

Sucesso no início, o programa também teve sérios equívocos. “O erro histórico da sociedade brasileira é achar natural ter gente de um lado e ‘subgente’ de outro”, critica o sociólogo Jessé Souza. Não demorou para a maioria dos desalojados dos anos anteriores voltar ao centro e se tornar sem-teto. Quase todos desse grupo eram ambulantes que, longe dali, não souberam como sobreviver. Outros partiram para a prostituição, o tráfico ou a mendicância.

À esquerda, abaixo, Jecilda (de azul) com as moradoras Simone e Benedita. As outras fotos mostram o contraste entre áreas reformadas e à espera de restauração no .

As mulheres que vivem na área da sétima etapa da reforma se viram refletidas naqueles que haviam passado por essa experiência e pioraram sensivelmente de vida. Arregaçaram as mangas e foram à luta para não ver sua cidadania encurralada. Em 3 de julho de 2002, criaram a Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico (Amach), com o lema “Do Pelô não saio, daqui ninguém me tira. Resistência.” O bom senso prevaleceu e não houve confrontos, mas, por via das dúvidas, a sede da entidade continua ativa na Rua da Glória, nº 24. As mulheres associadas não têm interesse em negociar indenizações com o Estado; querem, isso sim, o valor moral da sua cidadania, e se empenham para fortalecer a sociedade em que vivem.

A LÍDER DO MOVIMENTO e presidenta da associação quase desde seu início é Jecilda Mello – a Prô, pois era professora antes de sua integral dedicação à iniciativa. “A Amach vai além da luta pela permanência no centro histórico, pois quer priorizar a qualificação profissional para que os moradores possam ser inseridos no mercado”, explica ela. A reivindicação é reforçada pelas palavras do sociólogo Souza: “Precisamos ir além das práticas assistencialistas, que apenas alimentam a dependência face ao Estado e só empurram os problemas com a barriga.”

No início, ninguém ligou para as mulheres da Amach, que lutaram sozinhas. As 104 famílias cadastradas para se mudar não desistiram e puseram a boca no trombone. Pequenas notícias da resistência surgiram então nos jornais. “Aí os partidos da oposição se juntaram à causa”, recorda Prô. “Venceram as eleições e tiraram o corpo fora. Hoje nossos parceiros são Deus e a comunidade.”

Mas, como em toda resistência com causa justa, vieram aliados. O mais forte surgiu da dobradinha entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Monumenta, um programa do Ministério da Cultura que prestigia a preservação do patrimônio com desenvolvimento econômico e social. São eles, aliás, os responsáveis pela sétima etapa, embora não tenham participado das anteriores.

OS HABITANTES VÃO PAGAR ENTRE R$ 35 E R$ 50 POR MÊS PELOS IMÓVEIS, DURANTE DEZ ANOS

Para reparar uma injustiça social e corrigir os erros cometidos nas outras fases do programa, representantes da parceria sentaram-se à mesa de negociações com a Amach. Das conversas surgiram providências que garantiram a presença na área dessas famílias, às quais foram oferecidas moradias em imóveis tombados pelo patrimônio. No projeto original, todo casario recuperado seria vendido a servidores públicos.

Na etapa atual, dos 76 imóveis a serem recuperados, 21 serão transformados em apartamentos de um, dois ou três quartos para as 104 famílias.

Do inferno ao paraíso, com estada no purgatório: dessa forma o programa vem sendo implementado. As pessoas deixam suas habitações miseráveis e vão para “casas de passagem”, situadas na própria área e bancadas pelo governo estadual, antes de se instalarem de vez na nova moradia. “Não receberemos de graça os novos imóveis, que têm valor médio de R$ 58 mil”, explica Prô. “Pagaremos durante dez anos de R$ 35 a 50 por mês. Não poderemos vender os imóveis, pois serão hereditários. Também não podemos escolher os apartamentos que nos serão destinados. Eu morava sozinha num casarão com quatro pontos de pequeno comércio; agora, vou dividir o mesmo espaço com mais três famílias”, Prô sorri, sem disfarçar a tristeza. Sabe que é impossível agradar a todos. Das 104 famílias, 11 já estão de casa nova.

Uma nova etapa da recuperação do , no centro histórico de Salvador levou à criação de uma associação de moradores locais dispostos a lutar para não serem removidos. De seu trabalho surgiu uma nova maneira de revitalizar a região, preservando a dignidade de seus habitantes

BENEDITA BARBOSA, 57, morava num cortiço com uma das filhas e sem nenhuma esperança. “Rezava para minha padroeira, Santa Bárbara, me tirar dessa situação. Aí, minha casa pegou fogo e eu me desesperei”, recorda. Mas a Amach veio ajudá-la e lhe deu a primeira casa do projeto. “Me orgulho demais dessa danada associação”, emociona-se.

“Veio visitar meu palácio, moço?”, nos recebe Maria de Lurdes, 52, em seu apartamento asseado, decorado com simplicidade. Isabel Conceição, 54, considera “uma bênção de Deus” sua nova moradia. “A melhor notícia da minha vida foi quando recebi a informação de que meu apartamento estava pronto”, lembra Elisangela Nunes – a jovem que, no início da reportagem, havia se desesperado diante da notícia do despejo. A vitória da Amach é também a vitória de um povo que, com seus movimentos sociais, adquire resiliência, ou seja, a capacidade de se regenerar, de recriar a vida.

Mais além, como retrato do futuro do , as palavras de Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan, têm efeito de realidade e presságio. De realidade porque a revitalização do centro histórico de Salvador foi a senha que levou outras cidades do Brasil a se interessar em investir na preservação de seus centros e casarios antigos. De presságio porque Almeida tem certeza de que, a partir do assentamento correto de seus moradores, haverá garantia da sustentabilidade do patrimônio e a volta do turismo. Livre das verbas públicas, o Pelô terá luz própria.