Diagnosticada nos anos 1990, a sobrepesca –  a captura que reduz as populações de peixes além de sua capacidade de reprodução – é um problema global cada vez mais grave. Cerca de 70% das espécies de peixes dos mares estão sendo exploradas de forma insustentável.

Há muito tempo suspeito de abrigar pesca excessiva, o Golfo Pérsico é um desafi o para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) porque o Irã, dono do maior litoral da região, não informa à agência sua produção pesqueira. Recentemente, imagens do Google Earth conseguiram abrir uma brecha no nevoeiro: analisando-as, os biólogos marinhos Dalal Al-Abdulrazzak e Daniel Pauly, da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), concluíram que o país dos aiatolás produz 12 mil toneladas de pescado por ano, graças sobretudo a 728 grandes barreiras visíveis nas fotos. 

Mais importante que isso, porém, foi o cálculo do total pescado na área. Em 2005, foram 31.433 toneladas – seis vezes o que as nações do Golfo haviam informado à FAO. “Nossos resultados documentam a falta de confi abilidade da coleta de informações originárias do Golfo Pérsico, uma pequena parte de um problema de desinformação global”, afi rmam Dalal e Pauly em artigo publicado em novembro de 2013 no ICES Journal of Marine Science.

A frase resume o frágil compromisso da maioria dos governos e da indústria pesqueira do mundo com a prática da pesca sustentável. Para muitos, os oceanos ainda são uma fonte inesgotável de peixes e, portanto, não exigem atenção. Até os anos 1990, a pesca em mar aberto se expandia continuamente. De 5 milhões de toneladas capturadas em 1900, o total saltou para 90 milhões em 1990. A evolução tecnológica da indústria fazia crer que esses números seguiriam crescendo, mas eles pouco mudaram desde então (em 2012, foram 93,2 milhões de toneladas, segundo a FAO). Mesmo descontando a desinformação do setor, fi cou nítida, então, a prática da sobrepesca – a pesca que supera a capacidade de reprodução dos peixes.

“Estimativas recentes apontam que cerca de 70% de todos os estoques de peixes marinhos estão sendo explorados de forma insustentável”, diz Tito Lotufo, professor do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará. “Muitos estoques já colapsaram e os grandes predadores, essenciais ao funcionamento dos ecossistemas marinhos, são os que estão em situação mais crítica. Para alguns especialistas, a situação tem melhorado no mundo, a partir de estatísticas da FAO, por exemplo, mas isso não é consenso. Por outro lado, tais estatísticas são defi cientes, pois não conseguem medir o que acontece nos países menos desenvolvidos, de forma que não temos ainda uma noção adequada da situação em termos mundiais. Ao seguirmos nessa direção, certamente teremos problemas graves.” 

Devolver aos peixes marinhos condições de crescer sustentavelmente é o desafi o dos governos e do setor pesqueiro. Sem resolvê-lo, seremos cada vez mais reféns da produtividade das fazendas de pescado – a aquicultura –, uma prática geradora de muito impacto ambiental.

Equilíbrio abalado

A sobrepesca perturba fortemente o equilíbrio marinho, a começar pela espécie-alvo. Uma lista ampla da devastação inclui a anchova peruana, colapsada nos anos 1980, o arenque europeu, com estoques baixos desde os anos 1960, o bacalhau canadense e, mais recentemente, alguns tipos de atum e tubarão. 

A redução da presença desses peixes no mundo amplia a população das espécies que são seu alimento e reduz o número de seus predadores. Isso causa mudanças signifi cativas nos ecossistemas, analisadas em um estudo da Universidade Estadual da Flórida publicado em janeiro na revista PNAS. 

Um dos casos examinados ocorreu nos anos 1970 na costa da Namíbia, onde a pesca excessiva de sardinhas e anchovas abriu espaço para a multiplicação de águas-vivas e de um pequeno peixe, o caboz. A pobreza calórica resultante derrubou a produção local de merluzas de 725 mil toneladas métricas, em 1972, para 110 mil, em 1990. As populações de pinguins africanos e alcatrazes-do-cabo caíram 77% e 94%, respectivamente, desde os anos 1970. “Quando você põe exemplos assim juntos, percebe que há de fato algo importante ocorrendo nos ecossistemas do mundo”, afi rma Joseph Travis, biólogo da Universidade Estadual da Flórida e coautor do estudo. 

A sobrepesca reduz o número de peixes de maior porte das espécies, alvos preferenciais da indústria. Em 2010, esse segmento encolhera 78% ante 1910, enquanto a população dos peixes menores crescera 133%. Isso não signifi ca que peixes de menor porte, mas cruciais para a cadeia alimentar, estejam a salvo. Por ter valor comercial inferior, a sardinha, por exemplo, fica atraente para a produção de rações animais e, assim, é alvo de sobrepesca. Para a FAO, 37% do peso total pescado  anualmente nos oceanos entra no preparo de rações. Outro problema colateral é o estrago causado pelas redes de arrasto dos barcos. “Três em cada dez peixes são mortos pela captura por ‘engano’ e jogados de volta à água”, diz o ambientalista Henrique Cortez. 

Administração nebulosa
A situação da sobrepesca no Brasil é semelhante à do resto do mundo, avalia Tito Lotufo. Para ele, um fator complicador é a responsabilidade sobre a regulação da pesca brasileira migrar de ministério para ministério, culminando em 2003 com a criação do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). “Não é difícil prever que, num futuro governo, tal ministério seja extinto e suas funções repassadas a outro”, afi rma o pesquisador. “Com isso, toda a administração da atividade fi ca complicada. Estamos há anos sem estatísticas adequadas, pois essa atribuição foi retirada do Ibama, que já estava estruturado para fazer o trabalho, e passada ao MPA.”

Lotufo lembra ainda que enfrentamos sérios problemas em termos de populações de peixes. “O governo estima que 80% dos nossos estoques estejam sobre-explorados”, diz, citando como exemplos a lagosta no Nordeste e grandes peixes oceânicos, como tubarões. O Ministério do Meio Ambiente contabiliza 19 espécies de peixes marinhos ameaçadas de extinção e 32 espécies sobre-exploradas ou ameaçadas de sobre-exploração.

Reverter esse quadro não é fácil. Há um Código de Conduta para a Pesca Responsável da ONU que não é respeitado, como revela o estudo “Not honouring the code”, publicado na revista Nature em 2009. E a crônica falta de fi scalização afl ige o Brasil e outros países. As estratégias aplicadas ao setor incluem a criação de períodos de defeso, imposição de tamanho mínimo de captura, cotas ou, em casos extremos, a moratória. “As experiências mais interessantes, e que têm dado resultados surpreendentes, são o estabelecimento de áreas de exclusão de pesca”,diz Lotufo. “Elas garantem um local protegido para as espécies viverem e se reproduzirem e passam a funcionar como exportadoras de larvas e (organismos) juvenis para as áreas adjacentes, permitindo a recuperação da atividade pesqueira e sua sustentabilidade. 

A prática ainda é incipiente no Brasil e no mundo, mas os paises desenvolvidos têm tomado a dianteira “É importante ressaltar que essas áreas devem contemplar uma ampla gama de habitats, garantindo a preservação da biodiversidade”, explica Lotufo. “Além disso, a maiorias das espécies usa mais de um habitat ao longo da vida.” Investir nas estratégias bem-sucedidas e fiscalizar com efi ciência a atividade pesqueira são as maneiras mais promissoras de combater a sobrepesca. Mas Joseph Travis alerta que implementá-las é um trabalho para ontem. “É bem mais fácil recuar para evitar que o copo transborde do que achar um jeito de voltar depois que o copo transbordou”, afirma.