Relatório final de inquérito aberto em 2015 confirma a intensa relação entre a montadora alemã e regime militar. Golpe de 1964 chegou a ser elogiado por presidente da Volks no Brasil.O relatório final da investigação sobre a participação da Volkswagen na repressão do regime ditatorial no Brasil concluiu que a montadora alemã manteve uma intensa colaboração com a ditadura militar sem ter sido pressionada para tal. Com uma postura colonialista, o presidente da Volks no país à época chegou ainda a elogiar o golpe de 1964.

“Está claro que a Volkswagen estabeleceu por disposição própria uma intensa relação de contribuição com os órgãos da repressão política, muito além dos limites da fábrica. A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura”, destaca o documento divulgado nesta quarta-feira (31/03).

Produzido em conjunto pelo Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP), Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), o relatório é fruto de uma investigação que começou em 2015, quando foram abertos inquéritos civis contra a empresa, após pedido de vários sindicatos e da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Em 2020, os inquéritos culminaram em um acordo assinado com a empresa, que prevê o pagamento de R$ 36,3 milhões em indenizações, além do reconhecimento público dos fatos e retratação.

O relatório final destaca uma carta do presidente da subsidiária brasileira de 1964, na qual o ex-filiado ao partido nazista Friedrich Schultz-Wenk elogia “a organização da revolta, que havia sido extremamente bem-preparada”. A correspondência, dirigida ao presidente da companhia na Alemanha, demonstra ainda conivência com a violência por parte do Estado.

Logo após o golpe de 1964, diz o relatório, a filial brasileira da Volks compartilhava da ideologia do regime e, a partir do fim da década de 1970, tinha interesses comerciais, ao desejar utilizar o “maquinário repressivo do Estado” para impedir greves. O entendimento dos órgãos é de que tudo era feito não só com o conhecimento da alta cúpula da VW no Brasil, mas também da matriz na Alemanha.

Colaboração com repressão política

Segundo o documento, a empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, “sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura”. A cooperação incluiu a delação de funcionários aos órgãos de repressão, a contribuição com a prisão ilegal, a entrega de funcionários a esses órgãos e o falseamento da verdade sobre a prisão de funcionários aos familiares, “colaborando com o desaparecimento forçado, ainda que temporário, desses profissionais”.

Fazia parte do aparato de colaboração, tanto na VW quanto em outras companhias, a contratação de egressos das Forças Armadas para suas equipes de segurança. Em 1969, a VW contratou o coronel Adhemar Rudge, que montou seu grupo, dando preferência a indivíduos também oriundos das Forças Armadas. Rudge, diz o relatório, era influente e foi peça fundamental para que a Volkswagen colaborasse com o sistema repressivo estatal.

Ainda, há indícios de que a Volkswagen tenha chegado a ajudar materialmente a Operação Bandeirante (Oban). Primeiro aparato repressor criado pelos militares, a Oban funcionou à margem das estruturas oficiais e sem orçamento público, financiada por empresas.

Apesar da lealdade ao regime, ambos os pesquisadores externos, o alemão Christopher Kopper e Guaracy Mingardi, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que colaboraram com o MPF, não identificaram elementos de participação direta ou indireta da VW do Brasil no planejamento ou execução do golpe de Estado propriamente.

Preso no pátio da fábrica

Tarcisio Tadeu Garcia Pereira ainda se recorda do dia chuvoso, em março de 1979, quando foi preso no pátio da fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, por policiais da Rota. Apanhou por quatro horas, e foi levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Acabou liberado após uma negociação que envolveu o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já despontava como uma liderança de relevo.

Militante sindical, Pereira começou a trabalhar efetivamente na VW em 1972, e acompanhou a repressão dentro da fábrica, incluindo a prisão de sete funcionários naquele ano. Hoje ele preside a Associação Henrich Plagge, que defende os interesses de trabalhadores da VW vítimas de perseguição política.

“Desde 1975, a VW já dava para os órgãos de repressão a minha foto, a minha ficha funcional, o nome da minha mãe, a atividade que eu fazia”, diz. Para ele, o relatório divulgado nesta quarta é uma prova cabal das digitais da empresa na repressão, embora considere que a VW não tenha admitido completamente os fatos.

Benefícios econômicos

Fundada em 1955, a VW do Brasil foi a primeira fábrica da empresa a produzir fora da Alemanha. Para sua instalação no país, contou com incentivos de políticas comerciais, cambiais e de créditos conferidos pelo governo brasileiro. Em poucos anos, tornou-se líder de mercado.

Segundo o relatório, isso garantiu à companhia forte influência sobre o governo. Como indício, é apontado que, apesar de as subsidiárias de empresas estrangeiras estarem sujeitas ao controle de remessa de lucros e outras taxas, a VW do Brasil, até a mudança da lei em 1974, transferia à matriz alemã, além dos dividendos, as licenças e taxas de consultoria no valor contratualmente estipulado.

“Por que uma empresa se alinha a esse passado tenebroso? Para mim, é muito claro, é uma questão de negócios”, afirma o procurador da República Pedro Machado, que atuou no caso. “A empresa não é por princípio contra a democracia”.

Investigações futuras

Ao longo dos anos de investigação, o depoimento de dois ex-empregados da fábrica, com detalhes sobre as torturas impactaram Machado. “Isso chama a atenção para que cuidemos bem da democracia, para que não tenhamos saudosismo dessa época”, disse em entrevista à DW Brasil.

O MPF tem a expectativa de instaurar mais inquéritos sobre o envolvimento de empresas, inclusive estatais, com a repressão na ditadura. Como parte do acordo com a VW, uma verba será destinada à Unifesp para financiar linhas de pesquisa nesse sentido.

“Passadas décadas desse período tenebroso, nenhuma pessoa jurídica ou física foi condenada judicialmente a reparar danos”, afirma o procurador do MPT Ricardo Nino Balarini. “Isso mostra o quanto a sociedade brasileira – especialmente a justiça brasileira – tem sido permissiva com graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura”.