Final de férias, movimento intenso no aeroporto. Uma jovem atriz de televisão, viajando sozinha, resolveu comprar uma revista, uns biscoitinhos e um refrigerante para ir se distraindo enquanto esperava o vôo. Como ainda não era famosa a ponto de merecer a sala VIP, foi se misturando discretamente à agitação da sala de embarque, procurando não chamar atenção, para não parecer exibida.

Com a modéstia necessária, nossa estrela acomodou-se numa das raras poltronas vagas, ao lado de um elegante senhor de meia-idade mergulhado na leitura de um jornal. Abriu a revista, tomou um gole do refrigerante e quando se lembrou do pacote de biscoitos, colocado entre os assentos, flagrou o tal senhor pegando um, na maior tranqüilidade, sem sequer pedir licença. Tamanha foi a surpresa, que ela não soube como reagir.

Procurou com os olhos um outro lugar vago. Não havia nenhum. Com raiva, pegou o pacotinho como quem defende um filho. Só que agora ficou obrigada a segurá-lo, enquanto tinha de segurar também a revista, a latinha com o canudo, a bolsa, virar as páginas… Não, isso era um abuso. O biscoito ia ficar ali sim, no espaço entre as poltronas, e o cara não ia ter o desplante de repetir a façanha.

Acontece que o distinto, sem interromper a leitura, pegou mais um biscoito. A menina não acreditava no que estava acontecendo. Sentiu que precisava tomar alguma atitude, mas qual? Podia ser que alguém a estivesse reconhecendo e não pegava bem para uma Fernanda Montenegro em princípio de carreira criar caso em pleno aeroporto. Preferiu fechar a revista e ficar encarando duramente o intruso, que não tirava os olhos do jornal.

Quando o discreto senhor fez menção de pegar mais um, a única reação que ela teve foi se apressar para pegálo antes. Fez isso ostensivamente, como quem adverte: “Pára com isso ou eu chamo o segurança.” Ele percebeu, claro. Mesmo assim, não se abalou. Deu um tempo e, quando foi pegando outro, ela tornou a atropelar a mão dele. Apesar de não saber como reagir, a garota era daquelas que sustentam uma questão até vencer ou criar algum tipo de impasse. Resistir seria seu protesto.

A partir daí a coisa virou disputa. Tira biscoito, atropela mão, tira outro, atropela de novo, uma vontade irresistível de largar um tapão na cara do sujeito com todo aquele cabelo branco. Difícil acreditar, mas a batalha foi continuando até restar apenas um biscoito. Unzinho. A moça pensou: “E agora? Vai ter a cara-de-pau de comer o último?”

Lembrou-se das aulas de judô que tivera com o namorado. Estava preparada para tudo. Nesse momento um novo vôo foi anunciado. O homem então dobrou o jornal e com a maior tranqüilidade dividiu o biscoito ao meio, comeu uma das metades, deixou a outra e afastou-se para embarcar, sem uma palavra, sem dar sequer uma olhadinha para trás.

Cabeça fervendo, a moça ficou ali por mais alguns minutos. Longos indignados minutos. Lá pelas tantas, o vôo da nossa heroína ultrajada foi anunciado. Ainda trêmula, abriu a bolsa para pegar o cartão de embarque e quase caiu dura: seu pacote de biscoitos estava lá dentro, fechadinho. Levou alguns segundos para acreditar no que se passara.

Mal conseguia se mexer. Queria sumir. E durante um tempo pareceu mesmo sumir no meio daquela agitação de fim de férias, música no ar, alto-falante, bagagem de mão por todos os lados, berimbau, cadeira de rodas, um time inteiro de basquete, adolescentes coloridos, mochilas, o grupo Olodum viajando, crianças se esforçando por confundir ainda mais aqueles passageiros tipicamente confusos. E a moça ali. Passada.

O alto-falante anunciou a última chamada para o vôo.

Um zumbi pelo túnel de embarque

Caminhando como um zumbi pelo túnel de embarque, a infeliz morria de vergonha imaginando o que teria pensado aquele senhor que, além de tudo, em nenhum momento se mostrara revoltado. Pelo contrário. Suave, compreensivo, meio pai. Imagine, dividindo generosamente o último biscoitinho e ela quase apelando para o judô. De arrasar. Pior que não tinha mais jeito de se explicar. Nada a fazer. Aquela sensação terrível de “nunca mais”…

Quarenta minutos depois, o avião pairava tranqüilamente acima do bem e do mal. Reclinada, respirando como o professor de ioga ensinou, a menina pensou: “É… Às vezes a gente está comendo o biscoito dos outros e nem se toca…”

Aos poucos, ela foi atingindo o estado alfa, que acabou se transformando numa boa soneca. Quando acordou, tinha certeza de que aprendera um pouquinho mais sobre a vida. Com o olhar perdido nas nuvens lá embaixo, lembrou-se daquelas velhas advertências que a gente vive escutando e nunca tem paciência para pensar a respeito. Por exemplo, que certas coisas dificilmente são recuperáveis. Coisas tipo confiança depois de traída. Uma boa oportunidade, depois de perdida. E principalmente o tempo, depois que passou…

Pedro Camargo é cineasta, jornalista, escritor e professor de comunicação no Rio de Janeiro e no Paraná.