Dificilmente você encontrará alguém que nunca tenha ouvido falar em Alice no País das Maravilhas. Seria necessário se entocar em um buraco sem fundo por quase dois séculos para ser completamente alheio a personagens como o Coe­lho Branco, o Gato de Cheshire, o Chapeleiro Louco e a Rainha de Copas. E nem é preciso ter lido o livro – embora ele seja altamente recomendável – para conhecer a garotinha mais famosa da história da ficção, que, em julho, completa 150 anos.


Imagens clássicas da obra: ao topo da reportagem, o Gato de Cheshire do filme da Disney de 1951; acima, as imagens feitas por John Tenniel, são da primeira edição do livro

Apesar de todo esse tempo, a obra do inglês Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, não envelhece e ainda estimula a imaginação de seus leitores. Alice é, sem sombra de dúvida, uma das personagens que mais marcaram o imaginário de todo o mundo. Isso pode ser quantificado pelas incontáveis adaptações do universo criado pelo autor desde o lançamento do primeiro livro, em 4 de julho de 1865.

A influência da obra extrapolou – e muito – a literatura, indo além das releituras do livro. Há ecos de Carroll nas mais diversas manifestações artísticas: no cinema, na música, na moda, nos quadrinhos, nas artes plásticas (Salvador Dalí foi um dos grandes artistas que criaram sua própria versão de Alice), em todo o universo pop, em resumo. Mas, afinal de contas, quem é Alice? E por que todo esse frisson em torno dela?


A festa de chá com o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março, vista respectivamente por Antonio Peticov (à esq.) e pelo filme de 1951 (à dir.)

Há uma resposta simples, que pode parecer simplista, mas não é: porque é genial! Como explica Eduardo José Afonso, professor de História Social da Cultura da Unesp, especialista e aficionado em Lewis Carroll, Alice é uma obra de arte que contém um olhar singular da complexidade da experiência humana. “Alice é uma menina que carrega angústias como as nossas. É uma criança em um mundo opressor, que não aceita isso e questiona o tempo todo”, diz.

Outro aspecto destacado pelo professor como diferencial do trabalho de Carroll é a capacidade de ter expressado sentimentos e percepções de uma forma original. “Toda obra de arte tem essa característica de chamar a atenção e destacar aspectos que as pessoas ainda não tinham olhos para ver”, explica.

 

Caminhos infinitos

Há muitas respostas possíveis sobre quem é Alice. A melhor delas talvez seja a da própria personagem. Quando questionada no livro sobre quem era ela, pela lânguida lagarta, que fumava longamente seu narguilé no jardim das maravilhas, a menina responde: “Eu – eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento – pelo menos eu sei quem eu era quando levantei esta manhã, mas acho que tenho mudado muitas vezes desde então”.

O trecho é um exemplo precioso da sofisticação do texto do autor, que logo se revelou estar acima do rótulo de literatura infantil, distraidamente atribuí­do à obra até hoje. Quando responde à lagarta, Alice não fala apenas das mudanças de tamanho que sofreu depois de comer e beber alimentos mágicos, mas de questões existenciais. “A história é uma alegoria à jornada do crescimento de uma criança”, afirma Morton Cohen, biógrafo de Lewis Carroll.


Pela Toca do Coelho, uma das 12 ilustrações feitas por Salvador Dalí para uma edição da obra publicada em 1969 nos Estados Unidos

Há, também, referências claras às mudanças sociais na Inglaterra vitoriana. Dodgson criou a história em 4 de julho de 1862, em um passeio de barco, para entreter as filhas de Henry George Liddell, deão da Christ Church, onde ele lecionava matemática. Naquela época, o país vivia a Segunda Revolução Industrial. Nesse período, foram introduzidos nas fábricas os relógios de ponto; o tempo tornava-se uma obsessão inglesa – até hoje é hábito acertar os relógios pelo Big Ben.

A lagarta, Alice, o Coelho Branco (correndo contra o tempo, checando sem parar seu relógio de bolso) são alegorias do ser humano em transformação no século 19. “Todo o indivíduo está transmutando: sua cabeça, seus hábitos, até seu organismo. Essas metáforas nos levam a questionar quem somos nós”, diz Afonso.

 

Mundos possíveis

Entre as inúmeras teorias que tentam explicar o significado das metáforas do universo de Carroll, três delas se destacam. Olhares psicanalíticos apontam para o mergulho no inconsciente e no mundo dos sonhos – sem ignorar as referências aos desejos sexuais do autor (veja a esse respeito o texto ao final da reportagem).


Cena de Alice no País das Maravilhas, filme de 2010 do diretor Tim Burton que revisita os personagens do livro original

Há também quem veja no livro uma grande sátira a uma corrente matemática que ganhava força à época com conceitos abstratos e controversos (como números mágicos). E, é claro, a interpretação de que a história seria uma grande alusão a experiências com drogas alucinógenas, difundida pela contracultura dos anos 1960.

Tudo é possível. Em um mundo muitas vezes desprovido de lógica, Alice no País das Maravilhas nos oferece novos rumos e alento. A busca por liberdade, a contestação, o elogio à imaginação são frequentemente citados como pontos fortes da obra. “É a primeira história para crianças que não tem uma lição de moral no final”, afirma Antonio Peticov, artista plástico e estudioso de Carroll, que homenageou Alice em uma exposição recente, em São Paulo. Um dos grandes legados de Alice é justamente a pluralidade de possibilidades. Vida longa à menina.

 

5 coisas que você talvez não saiba sobre Alice

O nome verdadeiro de Lewis Carroll é Charles Lutwidge Dodgson
Lewis Carroll foi o pseudônimo escolhido por Dodgson para publicar suas obras literárias. Reverendo anglicano que ensinava matemática na tradicional Christ Church, em Oxford, no século 19, ele era descrito como tímido, gago, religioso, severo e conservador.

Alice foi inspirada em uma pessoa real
A história de Alice no País das Maravilhas foi criada por Dodgson em um passeio de barco para entreter três garotinhas: Edith, Lorina e Alice. Elas eram filhas de Henry George Liddell, deão da Christ Church, de Oxford, onde Dodgson lecionava. Dodgson adorava Alice, na época com 7 anos, e a homenageou na criação de sua heroína.

Há quem acuse Dodgson de pedofilia
Ele tinha uma adoração declarada por meninas, tanto estética quanto afetiva. Amava o universo delas e Alice Liddell era sua favorita. Dodgson estava sempre cercado por garotas e tirava fotos delas – algumas, nuas. São muitos os indícios que sugerem que ele tivesse atração sexual por elas, mas não há nenhuma prova de que tenha consumado esse suposto desejo.

A rainha Vitória adorou o livro
A rainha Vitória era conhecida pela sua rigidez moral. Não é preciso muito esforço para associá-la à Rainha de Copas do livro, que mandava decapitar súditos sem grandes motivos. Ao contrário do que se poderia imaginar, Vitória adorou a história e sugeriu que Dodgson a homenageasse em sua próxima obra. Em resposta, Dodgson escreveu para ela uma dedicatória em um tratado de álgebra.

Dodgson tinha alucinações visuais
Por causa de um distúrbio neurológico raro, o autor tinha uma percepção alterada do tamanho dos objetos, que ora parecem grandes, ora pequenos – qualquer semelhança com o país das maravilhas não é coincidência. Descoberto pelo psiquiatra inglês John Todd, em 1955, o transtorno ficou conhecido como síndrome de Todd (hoje também conhecido como síndrome de Alice no país das maravilhas).