Seja nas sociedades maias ou astecas do México, ou entre os incas do Peru, há poucos registros sobre a vida sexual na época précolombiana. Essa é uma das razões do interesse pela rara coleção de arte erótica do Museu Rafael Lar co Herrera, que funciona em num palacete do século 18, em Lima, e reúne mais de 45 mil objetos. Ao chegar ao museu, os turistas descobrem que o sexo é apenas um dos temas intrigantes de civilizações com mais de cinco mil anos de história.

Garrafa da cultura virú (200 a.C. – 200 d.C.), da costa Norte do Peru. Homem e mulher usam turbantes e pintura facial.

O Larco Herrera fica a 15 minutos de táxi de Miraflores ou San Isidro, bairros nobres da capital que concentram boa parte dos hotéis. Todos os taxistas da cidade conhecem o museu, que fica em Pueblo Libre. Os peruanos costumam dizer que se for preciso escolher e visitar um único museu na cidade “vá ao Larco”. Mas atenção: há profusão de táxis baratos em Lima, porém a maioria é clandestina – não tem sequer taxímetro -, o que obriga a negociar o preço antes.

Muros altos escondem os jardins floridos do palacete branco cujas grandes portas de madeira dão entrada para um pátio interno, com bancos e almofadas, teares e adornos nas paredes.

Reinaugurado em setembro de 2010, depois de uma criteriosa reforma, o museu exibe peças em estantes fechadas por vidros, catalogadas por época e por cultura, recuando até 8.000 a.C.: tecidos, cerâmicas, vasos, flechas, estátuas, joias e objetos de ouro e de prata.

Os detalhes arquitetônicos do prédio chamam atenção, como a pedra da soleira das portas e o piso de madeira antiga das áreas de exposição, que dialogam com as peças e revelam que o museu é a casa de um colecionador aberta ao público. Construída sobre uma pirâmide pré-colombiana do século 7, a propriedade foi comprada já com o intuito de expor o acervo privado de um dos pioneiros da arqueologia peruana, Rafael Larco Hoyle.

Nascido no Vale de Chicama, perto da cidade de Trujillo, Larco Hoyle passou a vida colecionando vestígios de civilizações passadas no norte do país. Para homenagear seu pai, Rafel Larco Herrera, que também promovia a arqueologia peruana, Hoyle fundou o museu em 1926, na fazenda da família, em Chiclin, e mais tarde o transferiu para o palacete de Lima.

Garrafa mochica (100 a.C. – 800 d.C.). Mulher amamenta o filho.

 

Garrafa da cultura salinar (200 a.C. – 200 d.C.). Mulher acaricia o órgão sexual masculino.

Os vestígios arqueológicos expostos no Museu Larco recuam até 8.000 a.C.

As 45 mil peças reunidas integram uma espécie de livro dos mortos pré-colombiano. Quase todas foram encontradas em tumbas e estão ligadas a práticas funerárias e de sacrifício. Cada uma à sua maneira, seja pela forma, pelo material ou pelos desenhos, conta algo sobre as culturas ancestrais da região. Uma ânfora de cerâmica, por exemplo, revela hipóteses sobre a guerra, o poder dos xamãs e as divindades.

Nos desenhos, há profusão de imagens sobre o sacrifício humano, que não abatia apenas os vencidos, mas também caía sobre mulheres e crianças, cujo coração era retirado. A oferenda aos deuses visava manter o mundo em equilíbrio. Sacerdotes e xamãs, intermediários entre a sociedade dos vivos e os outros mundos, exibem peles, plumas e objetos rituais ligados à ingestão de substâncias alucinógenas, usadas desde 1.500 a.C.

Quando se fala em civilizações pré-colombianas peruanas, pensa-se logo nos incas. “O equívoco acontece sempre”, diz a arqueóloga Ulla Holmquist, curadora do museu. O império incaico durou apenas um século, mas marcou a história porque era a cultura dominante que os espanhóis encontraram ao se instalarem no Peru no século 16. “Os incas duraram três ou quatro gerações, enquanto a presença humana no país tem mais de dez mil anos. A domesticação dos animais e a agricultura começaram em 7.000 a.C. As sociedades sedentárias se consolidaram entre 3.000 a.C. e 2.500 a.C. Portanto, é uma história bem mais longa.”

Vaso mochica (100 a.C. – 800 d.C.). Morto com pênis ereto, uma alusão à continuidade da potência dos ancestrais.

A mais antiga sociedade do Peru foi a civilização caral, que floresceu ao longo da costa do Pacífico entre 3.000 a.C. e 1.800 a.C. Há indícios de presença humana recuando até 10.500 a.C. Depois da cultura caral, há camadas de culturas arqueológicas distintas: cupisnique, salinar, chavin, paracas, virú, mochica, nazca, huari, lambayeque e chimu. Só depois dos chimus vieram os incas que criaram um Estado baseado na agricultura em terraços, irrigação, pecuária de lhamas e vicunhas e pesca – uma sociedade sem mercado nem dinheiro.

Em 1524, a varíola, introduzida a partir do Panamá, devastou o império antecipando a conquista empreendida por Francisco Pizarro, que derrotou e executou o Sapa Inca Atahualpa, em 1532. Dez anos depois, a coroa espanhola estabeleceu o vice-reinado do Peru controlando todas suas colônias na América do Sul.

O ouro e a prata inca atraíram a cobiça dos espanhóis que conquistaram o Peru em 1532.

Vasos, cerâmicas, estátuas, joias, tecidos e flechas, num total de 45 mil objetos oferecem um panorama das civilizações pré-colombianas.

Mortos-vivos

Garrafa mochica mais popular de Lima. (100 a.C. – 800 d.C.). Casal com pintura facial e peitoral.

Holmquist ressalta que a arte erótica é apenas uma das manifestações vitais da arte précolombiana. Muitas culturas dividiam a vida entre o mundo dos vivos e o dos mortos, um exterior e outro interior, invisível. “Achar que aqui temos uma espécie de Kama Sutra précolombiano revela a nossa visão ocidental a do sexo e não a de pessoas que viviam em outra época com conceitos diversos.”

Muitas cenas retratadas remetem à sociedade dos mortos. A maior parte dos objetos pertence à cultura mochica, que colonizou os vales do Norte, entre 300 a.C. e o ano 1.000. Os mochicas não chegaram a constituir um Estado ou uma unidade política que integrasse os centros populacionais, apesar da extensão da sua civilização e do tempo que perduraram. Para eles, os ancestrais seguiam fertilizando a terra e assegurando a continuidade do ciclo produtivo,no mundo invisível no qual viviam após a morte. Aí continuavam a cantar, a dançar e a manter relações sexuais. Muitas cenas mostram práticas sexuais tradicionais como masturbação e felação. Segundo os antropólogos, os mortos expeliam sêmen, embora a fecundação não fosse mais possível.

O prédio colonial foi reformado em 2010 para abrigar o museu mais popular de Lima.

Garrafa mochica (100 a.C. – 800 d.C.). Casal em relação sexual com o filho dormindo.

“Os seres do passado são considerados seres sociais que possuem desejos”, explica o antropólogo alemão Jürgen Golte, especialista na América andina. “Eles viviam conflitos, sentiam repugnância, atração, estabeleciam alianças, faziam oferendas, feriam, assaltavam e violavam. O cosmos sociomorfo era um cosmos de seres ativos.” Para Golte, o sentido das imagens legadas não é de simples decifração. “O Kama Sutra dos andinos carece de um prazer expresso aparente. Mas isso não significa que eles não tivessem prazer”, ressalta.

 

 

Serviço

Museu Rafael Larco Herrera

Avenida Bolivar, 1.515 – Pueblo Libre

Telefone: (00511) 461-1312

Café e restaurante abertos de segunda-feira

a domingo, das 9 às 18 horas

Mais informações: www.museolarco.org