Enquanto o Itamaraty brilha nas negociações internacionais, as ações climáticas internas são periféricas na agenda desenvolvimentista do governo brasileiro.

Protesto em Durban: diante das mudanças do clima, países ricos enterram a cabeça na areia.

Com uma vasta experiência de 40 anos de militância ecológica e três mandatos de deputado federal – o primeiro parlamentar brasileiro a ser eleito para defender o ambiente –, o paulistano Fabio Feldmann vê paradoxos na política brasileira de mudanças climáticas. Para o novo coordenador do Conselho Temático de Meio Ambiente do Espaço Democrático (a fundação do Partido Social Democrático do prefeito Gilberto Kassab), a diplomacia brasileira marcou um gol ao criar uma ponte entre os países ricos e os emergentes na Conferência das Partes do Clima, a COP-17, em Durban, na África do Sul. Apesar do pessimismo que rondava as negociações desde a conferência de Copenhague em 2009, Durban terminou com a extensão do Protocolo de Kyoto por cinco anos (até 2017) e com um acordo global para se criar um novo tratado de redução das emissões de carbono a partir de 2020 – com a participação dos Estados Unidos e da China, até ontem recalcitrantes. Mas o mesmo governo que brilha na arena internacional, e que pretende atrair 120 chefes de Estado para a Rio+20 em junho, trata marginalmente a questão climática na agenda de desenvolvimento. Uma evidência, nota Feldmann, é o fato de a presidenta Dilma Rousseff não ter se encontrado uma única vez, em 2011, com o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.

Fabio Feldmann é advogado, consultor, ambientalista, exdeputado federal e ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1995-1998). Sustentabilidade planetária, onde eu entro nisso?, seu mais recente livro, foi lançado em dezembro pela editora Terra Virgem.

O resultado positivo da conferência do clima de Durban pode alimentar um otimismo moderado sobre o futuro das negociações climáticas?

Durban surpreendeu. Do ponto de vista político, conseguiu a continuidade do Protocolo de Kyoto e obteve um compromisso de todos os países em reduzir suas emissões. Lembre-se que durante a COP-16, em Cancun (México), no final de 2010, temia-se que as negociações fossem interrompidas definitivamente e perdêssemos todos esses anos de negociação. Mas certamente continua a haver um divórcio entre a ciência e as decisões políticas, uma vez que a primeira aponta um senso de urgência que não se reflete nas negociações.

As expectativas para Durban eram baixas e Kyoto estava à beira do colapso. O que explica essa reversão de tendência?

A vantagem de Durban é que a reunião se iniciou com baixa expectativa, o que de certo modo permitiu o avanço. Além de que é mais fácil, do ponto de vista político, se chegar a um acordo quando a implementação prevê prazos longos. A política é que nem o clima, ou seja, não tem linearidade, de modo que existem mudanças inesperadas que alteram a trajetória. Mas há que se considerar que existe um longo caminho de detalhamento do compromisso político, que vai exigir da sociedade civil e da mídia uma continuidade em termos de pressão sobre os governos. Talvez o que mais me surpreendeu, e isso gerou resultado positivo na reunião, foi a disposição da China em reduzir suas emissões. Muitos atribuem essa atitude ao fato de que as emissões chinesas poderão superar, em médio prazo, a soma das emissões europeias e norte-americanas.

Apesar de Durban, o mercado de carbono voltou a cair ladeira abaixo. A crise econômica europeia pesa mais do que a diplomacia no mercado de carbono?

Com as decisões de Durban, o mercado de carbono, segundo as regras de Kyoto, sobreviveu. Infelizmente, não se conseguiu criar uma estratégia que permitisse o enfrentamento da crise econômica mundial com investimentos em uma economia verde ou sustentável. Em outras palavras, a crise do clima e a crise econômica estão sendo tratadas de maneira independente. Continua a se estimular o consumo nos moldes tradicionais, o que certamente significará maior impacto sobre os ecossistemas e o planeta.

 

Em Durban, as negociações vararam a noite e esgotaram os delegados.

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que permite aos países ricos investir em mitigação do clima nos emergentes, terá algum respiro com a extensão de Kyoto até 2017?

Apesar de todas as dificuldades, o MDL tem sido uma experiência bem-sucedida, ainda que precisemos estimular investimentos em transporte público e assegurar mais transferência de tecnologia renovável, o que não aconteceu até o momento. Creio que devemos ficar atentos à criação dos mercados de carbono na China e na Índia e pensar que o Brasil também deverá aumentar o foco nesse tipo de instrumento a partir de agora. É importante se levar em conta que a distinção entre países industrializados e não industrializados caducou. China, Índia, Brasil e África do Sul se encontram em uma categoria diferente. Isso terá significado no mercado de carbono mundial.

A atuação do Itamaraty vem mudando desde a conferência de Copenhague em 2009. Em Durban, o Brasil foi um moderador entre o bloco dos ricos e a China e a Índia. O que explica essa nova postura?

O Brasil mudou de posição desde a conferência de Copenhague, passando a aceitar compromissos de redução de gases de efeito estufa. No caso de Durban, a diplomacia para viabilizar a Rio+20 também pesou, de modo que tivemos um papel absolutamente estratégico na África do Sul: o Brasil teve diálogo permanente com os Estados Unidos e a Europa, além de manter uma liderança durante toda a reunião. Somos, inegaentrevista velmente, o principal articulador nas negociações climáticas.

Os mais críticos dizem que o resultado de Durban embute um aquecimento de 4ºC até 2100, enquanto os cientistas recomendavam impedir um acréscimo superior a 2ºC.

Do ponto de vista diplomático e legal, a comunidade internacional manteve o compromisso de admitir apenas um aumento na temperatura de 2°C até o final do século. O próprio Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) demonstrou que há uma lacuna numérica em termos de mitigação que merece atenção. Em outras palavras, há o risco de não se conseguir atender à meta dos 2°C, o que pode trazer o caos climático ao planeta, com graves consequências, como desastres naturais, comprometimento da produção agrícola e perdas econômicas incalculáveis. O que mais me chamou a atenção em Durban foi o impacto do aquecimento global nos oceanos, que pode comprometer milhões de pessoas que vivem da pesca.

A Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) ajuda o Brasil a se preparar para o futuro tratado que imporá metas a todos os países a partir de 2020?

A PNMC poderá assegurar nossa transição a uma economia de baixa intensidade de carbono. Entretanto, vejo com preocupação o fato de que os tomadores de decisão não compreendem a importância de incorporarmos a dimensão climática nas nossas estratégias de desenvolvimento. Em Durban, fiquei absolutamente surpreso com os chineses. Eles já estão quantificando os investimentos necessários para adequar sua economia a um cenário mundial de manutenção do aumento da temperatura em 2°C no máximo. É inevitável que o Brasil passe a levar realmente a sério a questão climática do ponto de vista de competitividade. Caso contrário, vamos enfrentar dificuldades econômicas em poucos anos.

O senhor está sugerindo a existência de um paradoxo: o Itamaraty virou um ator influente nas negociações climáticas internacionais, mas o governo federal não leva a sério a PNMC?

Temos de assinalar que a presidenta Dilma Rousseff manifestou pouco apreço pelo tema do aquecimento global. Pela primeira vez em muitos anos, não houve encontro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas com a presidenta. Além disso, a falta de liderança no governo em relação ao tema agravou-se com a saída do ministro Antônio Palocci, que mostrava interesse por ele. O Brasil terá de se envolver mais com o assunto e compreender que o foco não deve ser única e exclusivamente a redução do desmatamento, até mesmo porque com o pré-sal poderemos nos tornar um grande produtor e exportador de petróleo, com fortes repercussões internas e externas nas emissões de carbono. Também é necessário observar que uma política moderna de combate ao aquecimento global exigirá instrumentos econômicos e engajamento efetivo da área econômica do governo federal.

Apesar de Durban, o governo teme pelo esvaziamento da Rio+20. Qual é seu prognóstico para a conferência?

A Rio+20 continua nebulosa para ecomim. Tecnicamente, os temas contemplados pelas convenções internacionais não serão discutidos. Assim, teremos de usar muita criatividade para assegurar o sucesso dessa reunião, que deve ter seu foco em implementação de ações concretas e empreendedorismo. Nas conversas que tive em Durban, ficou claro para mim que devemos estimular o setor empresarial cosmopolita a assumir compromissos aliando-se à sociedade civil com o objetivo de pressionar os governos a ser mais audaciosos. Os políticos estão aprisionados por estratégias de curtíssimo prazo em função de objetivos eleitorais. É o caso dos Estados Unidos e também do Brasil, quando pensamos no Código Florestal.

A Rio+20 é a primeira conferência a ter a economia verde como um de seus principais temas. Poderemos reconciliar a economia e o meio ambiente?

Certamente ela poderá ser um marco importante, caso tenha a capacidade de estimular mecanismos como a licitação sustentável e a taxação ambiental. Com isso, assinalo a importância de que a Rio+20 valorize os instrumentos públicos, valendo lembrar que o outro tema da conferência é “Governança para o Desenvolvimento Sustentável”. Em 1972, Estocolmo criou o Pnuma. Infelizmente, não se avançou muito nesse tema na Rio-92. Essa conferência criou a Comissão de Desenvolvimento Sustentável na ONU, que se revelou até aqui um retumbante fracasso. Caso se avance nessa discussão de uma nova arquitetura institucional, daremos um grande passo.