Os povos autóctones do Brasil e as pessoas que se dedicam a estudar suas culturas e a garantir que elas sobrevivam são, desde o início, tema de interesse de PLANETA. Cláudio Villas Bôas (1916-1998), que, com os irmãos Orlando e Leonardo, inscreveu o nome da família na história do indigenismo brasileiro, foi tema de uma extensa matéria assinada por Edenilton Lampião na edição 91 da revista, lançada em abril de 1980. O texto revela um Cláudio “sertanista-filósofo”, na expressão de Lampião, interessado em temas espiritualistas, no relacionamento entre culturas diversas e na continuidade da experiência terrena. Conheça a seguir as palavras do sertanista, que em 2016 completaria 100 anos.

A relação do índio com o planeta

“Talvez a grande lição que a cultura deles tenha a nos oferecer esteja na questão da sobrevivência. Os índios são sobretudo coerentes, vivem plenamente a realidade deles, dentro de uma lógica saudável e integrada à sua condição de ser vivente da Terra. Veja bem: o índio não danifica o meio ambiente, pois o meio ambiente é sobretudo seu meio de vida. Se dependesse apenas da atitude indígena, nosso planeta seria paraíso ainda por muitos milhões de anos. Mas, assim como a marcha da civilização não consegue compreender as concepções indígenas, também o índio fica perplexo diante do estilo de vida que observa entre os brancos.

É comum eles comentarem comigo: ‘Cláudio, caraíba (homem branco) é tudo louco, tudo doido.’ A pressa é, para eles, uma coisa incompreensível e insuportável. Quando algum deles vê pela primeira vez uma cidade grande, simplesmente coça a cabeça. É um choque cultural realmente muito grande, onde infelizmente quem sai perdendo é o índio, violado em seus próprios domínios. Esse esmagamento cultural gera distorções horríveis, como a corrupção da moral, o consumo de aguardente nas tribos, a perda da velha dignidade e identidade tribais.”

Risco de aculturação

“O mundo civilizado corrói em ritmo incrível, o desgaste é crescente e permanente. O índio sabe que vai morrer, que vai deixar de ser índio, ele também sente os ventos da mudança soprando. Não se justifica, em hipótese al­guma, a imposição do nosso padrão cultural a eles. Deveria haver mais respeito e conhecimento por parte do branco. A ideia que uma pessoa faz do índio está intimamente ligada à sua concepção a respeito da vida e das coisas vivas. Entre os trabalhadores da frente de ocupação, o conceito do índio é abaixo de animal, numa demonstração total de insensibilidade.”

Áreas ocupadas

“Por características próprias de sua cultura e modo de vida, o índio precisa de bastante espaço; são viajantes por excelência, tribos inteiras migram de região para região. Roubar o direito a esse espaço é o mesmo que decretar a morte do índio.”

UFOs na floresta

“O índio simplesmente acha que aqueles seres que tripulam os aparelhos são bons espíritos. Veja bem: para o índio, tudo é natural; se as coisas acontecem, é porque são naturais. O índio não tem medo. Algumas lendas dizem que os seres que chegam nessas naves são todos viajantes das estrelas. Como o nosso nativo é um apaixonado pelas coisas da Terra, nas suas impressões sobre esse mundo do chamado ‘pós-morte’ estão incluídas praticamente as mesmas delícias que apreciam na existência atual,­ como a natureza, a fauna e a flora, o som e os perfumes, a boa comida e colheitas eternamente abundantes.”­

A partir da esquerda, Cláudio, o índio Izarari Kalapalo, Orlando e Leonardo Villas Bôas, em foto tirada na década de 1940
A partir da esquerda, Cláudio, o índio Izarari Kalapalo, Orlando e Leonardo Villas Bôas, em foto tirada na década de 1940

Intercâmbio cultural

“Tudo está unido pelo mesmo fio. O importante é que os civilizados saibam absorver o que os índios têm de positivo e vice-versa. (…) Tudo, a meu ver, caminha para um conhecimento maior. O conhecimento é único, seja aqui ou nas selvas. Conheci índios sábios, assim como conheci muitos brancos sábios. A sabedoria não está contida apenas na cultura, mas sobretudo no ser. Embora o ser seja repositório natural da cultura, acrescenta a esta suas inclinações pessoais próprias. A realidade da existência da vida espiritual é, para os índios, ponto pacífico.”

Fim e começo de ciclo

“A história caminha aos trancos e não se pode deixar ser atropelado por ela. A mudança que se aproxima não ocorrerá exatamente em função da destruição física do planeta, pois independe dela, já que a destruição faz parte da realidade da matéria, com ou sem apocalipse. Ou seja: por esse ângulo, tanto faz o sujeito morrer atropelado, de sarampo, assassinado ou vítima de cataclismos. É sempre a mesma morte. O que está morrendo é todo um estado de alma e de sentir a presença da criação. Já está havendo um grande salto de qualidade na área do conhecimento. Isso significa que o homem encontrará cada vez mais os meios para se desvendar, saber de suas potencialidades e ser capaz de enriquecer a grande obra da criação.”

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