Ruínas das Termas de Antonino, patrimônio da humanidade, que preserva a cultura cartaginesa, nos arredores de Túnis.

O coliseu romano de El-Jem, o segundo maior anfiteatro do mundo antigo.

A primeira vez que ouvi ecoar os sons do Alcorão no alto de dezenas de mesquitas, todas ao mesmo tempo, os sentimentos me confundiram. No primeiro momento, veio à memória a imagem imposta pela mídia, por filmes e documentários que insistem em relacionar o mundo muçulmano ao terrorismo e ao fundamentalismo religioso. Mas essa impressão durou milionésimos de segundo. No instante seguinte fui tomado pelo som melódico das orações entoadas nos minaretes que colocam o ouvinte numa atmosfera envolvente, mântrica e transcendente. Com boa vontade, silenciei para ouvir com religiosa atenção.

Estava na pequena cidade de Sidi Bou Saïd, onde comecei minha primeira viagem a um país muçulmano, a Tunísia, a porta do Saara, o maior deserto do planeta. Uma janela privilegiada para conhecer o norte muçulmano da África, região habitada por importantes culturas e civilizações, como fenícios, romanos, berberes, turcos otomanos e franceses. Cada um desses povos deixou marcas imponentes na região.

A origem do país remonta ao ano 1000 a.C., quando o território foi colonizado por fenícios. Esse povo de origem semita fundou ali, em 814 a.C., a cidade de Cartago, uma potência comercial da Antiguidade que disputou com Roma o controle do Mar Mediterrâneo. As ruínas da cidade podem ser vistas a poucos quilômetros da capital, Túnis. Estão entre as mais importantes joias arqueológicas do mundo. O sítio mais preservado são as Termas de Antonino, de onde brotam colunas gigantes e um labirinto de caminhos que indicam a existência de um banho público de grandes dimensões, digno de um sofisticado centro urbano.

As cores intensas da cidade de Sidi Bou Said, na costa do Mediterrâneo.

A tecelagem de tapetes está presente em todos os mercados.

 

 

Portas trabalhadas de Sidi Bou Said.

A cultura cartaginesa ficou famosa no seu apogeu marítimo e comercial, durante o século 3 a.C., e pelas colônias fundadas na Sicília, na Espanha e na Sardenha. Mas sucumbiu ao Império Romano, em 146 a.C., depois das chamadas Guerras Púnicas. Os conquistadores romanos arrasaram a cidade adversária, chegando a salgar seu chão para que nada nele nascesse, e impuseram seus costumes. Um dos vestígios mais importantes desse período é o coliseu romano na cidade de El-Jem, cuja grandiosidade pode ser medida em números: é o segundo maior anfiteatro do mundo, perdendo apenas para o Coliseu de Roma; podia acolher 35 mil espectadores; e pode ser visto a 10 quilômetros de distância. Construído no final do século 2 d.C., foi tombado como Patrimônio da Humanidade, pela Unesco, em 1979. Um passeio por seus corredores dá a dimensão do que foi a cultura cartaginesa-romana no deserto africano.

Entre conquistas

As invasões não pararam com os romanos. Por volta do século 7, a região foi conquistada por árabes, que transformaram Túnis no maior centro religioso islâmico do norte da África. Desde essa época estão em pé grandiosas mesquitas e seculares medinas, palavra árabe que significa cidade antiga. Há várias espalhadas pelo país, preservadas como sinônimo de cultura e de comércio. A tradição comercial está viva nas ruelas estreitas onde, ainda hoje, mercadores oferecem de tudo: tecidos, tapetes, especiarias, prataria, véus e comidas típicas.

O visitante curioso não deve se limitar às ruas comerciais. É nos becos estreitos que se percebe a vida do povo. É fácil se livrar de preconceitos, pois a Tunísia não é violenta nem perigosa, e a simpatia carinhosa do povo é evidente. Além disso, o comércio facilitou a difusão de idiomas. É comum encontrar tunisianos que falam mais de três. As línguas oficiais são o francês e o árabe, mas também se ouvem espanhol, inglês, italiano e português. Tudo depende da cara do cliente.

A escolha do francês como idioma oficial deriva do fato de a Tunísia ter sido protetorado da França de 1883 a 1956, quando conquistou sua independência. Antes do domínio francês, o país havia sido incorporado pelo Império Otomano em 1574, cuja influência perdurou até 1881.

Três anos depois de conquistarem sua liberdade, os tunisianos elegeram como presidente o líder nacionalista Habib Bourguiba, que permaneceu no cargo por 30 anos, governando o país em regime de partido único. Apesar de ditatorial, Bourguiba implantou reformas modernizantes que deram à Tunísia seu feitio ocidental e cosmopolita, estendendo, às mulheres, direitos civis como o divórcio e a não obrigatoriedade de usar véu.

Em 1987, Bourguiba foi derrubado em um golpe de Estado apoiado pelo Exército e comandado por Zine El Abidine Ben Ali. Esse instalou nova ditadura no país durante mais 23 anos. Em janeiro passado, Ben Ali foi derrubado por uma onda de protestos contra o desemprego e as denúncias de corrupção que espalhou a semente de mudança pelo mundo árabe. A imprensa francesa acusou sua família de fugir para a Arábia Saudita levando 1,5 tonelada de ouro do Banco Central da Tunísia.

O comércio intenso na medina de Sousse, perto de Túnis.

Casas trogloditas da aldeia berbere de Matmata.

O interior das moradas dos beduínos berberes.

Rumo ao Saara

É de Túnis que partem as expedições para entrar no deserto, com carros 4×4 equipados com GPS. No Saara descortina-se a civilização antiquíssima dos berberes, beduínos nômades que habitam o deserto há séculos. Uma das primeiras paradas é a aldeia de Matmata, a 420 quilômetros de Túnis, local dos mais visitados do país. Suas casas são conhecidas como casas trogloditas por serem incrustadas nas montanhas, como cavernas, na tentativa de escapar do calor intenso. Ali, os berberes vivem ainda como seus ancestrais. É possível visitar as habitações e conhecer um modo de vida adaptado ao meio ambiente inóspito, que obriga obriga a população a viver em casas subterrâneas, mesmo assim enfeitadas com artesanato, cerâmica e tapeçaria.

Seguindo a caminho do deserto chega-se a outro lugar famoso, o oásis de Chebika, um sítio montanhoso que apresenta paisagens singulares.

Uma trilha pedregosa leva a locais onde brotam água, vegetação e palmeiras. Há cachoeiras e rios límpidos que atraem visitas regulares de tunisianos e de estrangeiros. A paisagem é exótica, mas o mais encantador é a simpatia do povo, que canta e dança com alegria e exuberância.

Mais adiante está Douz, cidade famosa pelo mercado de animais (dromedários, burros, mulas, cavalos, ovelhas e cabras), da qual partem os camelos – perdão, dromedários -, que levam os turistas para conhecer o grande mar de areia do Saara. Aqui, é fácil descobrir que as roupas e os tecidos que cobrem o rosto e o corpo dos beduínos não são meros adereços. O deserto sopra uma areia fina e invasiva, um pó penetrante que dificulta a respiração e a visão, enche de areia as casas e obriga a procurar refúgio.

Oásis de Chebika, no deserto do Saara.

Passeio de dromedário sob tempestade de areia moderada, em Douz.

Nosso guia avisa que o passeio não será fácil, pois há indícios de que pegaremos uma pequena tempestade de areia. Protegidos por bonés e óculos escuros, os visitantes vão tomando assento nos dromedários. Em pouco tempo, os pontos de referência da paisagem desaparecem na vastidão monótona e é a marcha da fila de animais bamboleando com turistas que sobressai no deserto. Como é fim de tarde, o sol já não castiga tanto e sugere que, ao sumir no horizonte, dará lugar a um frio intenso, tão típico do deserto quanto o calor do dia.

Não demora muito estamos quase cegos, envoltos na tempestade. Seguimos assim mesmo. Uns se frustram, pois é impossível registrar o cenário mítico com máquinas fotográficas levadas a tiracolo. Meia hora sacolejando pelas dunas é o suficiente para constatar que o deserto é impenetrável ao viajante inexperiente. O passeio de poucos quilômetros nos arredores de Douz basta para mostrar que o Saara é um desafio perpétuo. É preciso coragem para adentrá-lo. Uma força que os beduínos ensinam com fé e perseverança.