Para que servem os festivais de cinema? A surpreendente pergunta que um crítico do jornal The New York Times fez em maio deste ano, pouco antes da abertura do Festival de Cannes, já vinha com a resposta embutida. Ao relacionar os filmes que habitualmente freqüentam esse festival (e saem dele com a Palma de Ouro) como produtos comerciais fadados ao fracasso no sabidamente impermeável mercado americano, ele deixou bem claro que Cannes – e por extensão outros importantes festivais europeus, como Veneza, Berlim, Locarno e San Sebastián – são estéreis como geradores de platéias, e portanto seriam inúteis.

A questão comporta outras indagações, outros pontos de vista que se distanciam desse pragmatismo mercantil imediatista e predador. Os festivais servem aos filmes ou estes aos festivais? São uma vitrine útil para os produtos cinematográficos ou são seus próprios produtores de conteúdo? Qual seria o objetivo prioritário de um festival ?

Na página ao lado, acima, Jessica Woodworth e Peter Brossens, diretores do premiadíssimo Khadak. Abaixo, cena do filme, inteiramente rodado na Mongólia. Nesta página, no alto, cena de Lição em Bam, do iraniano Alizera Ghanie; Memória sem visão, de Marco Vale, rodado em São Paulo; Pirínop, meu primeiro contato, rodado no Xingu, dirigido por Mari Corrêa e Karané Ikpeng.

Ninguém duvida hoje que eles proliferam sem maior critério mundo afora (só no Brasil já são mais de 100 festivais) e cada vez mais hiperdimensionados como eventos festivos em que a mundanidade mais frívola dita as regras de comportamento. A principal motivação, claro, atende a interesses prioritariamente econômicos e políticos da sede. Por conta disso, o desafio cada vez mais difícil enfrentado por quem promove um festival é o de obter e manter o equilíbrio entre o que o importa de fato para o cinema – exercer seu papel artístico, social e cultural – e os interesses da comunidade.

Os FESTIVAIS mais recentes têm permitido ao público conhecer poduções que o convidam a refletir e a, em conseqüência, AGIR OU REAGIR

Apesar dessa crise de identidade, não cabe qualquer dúvida: os festivais de cinema são indispensáveis. Essa certeza passa obrigatoriamente pela descoberta de novos autores, pela afirmação de outros que precisam de reconhecimento, pela oferta, análise crítica e fortalecimento de cinematografias nacionais ameaçadas pelo avanço hollywoodiano. Pelo incremento de dinâmicos encontros e fecunda troca de idéias entre profissionais do meio. E, por fim, mas não por último, pelas propostas originais, temáticas e/ou estéticas.

Uma das vertentes que justificam não apenas sua permanência, mas também a capacidade de amoldar-se a novos tempos, é a segmentação, a busca de nichos especializados. A essa altura já se sabe que o congestionamento no tráfego intenso dos festivais “generalistas”, sem que resolva satisfatoriamente a circulação mundial desses filmes, abre mais espaços à exclusividade de temas. A especificidade parece ser uma alternativa com inegável fascínio e apelo.

Nesse sentido, os festivais mais recentes vêm reunindo forças e talentos para que o público descubra um cinema manifestamente moderno, com filmes que incitem mais do que nunca à reflexão e à conseqüente ação/reação efetiva. Construir pontes entre o cinema e os problemas agudos que atropelam a humanidade jamais foi tão necessário como neste início de século. E uma dessas pontes sensibilizadoras são as mostras internacionais de cinema e vídeo ambiental.

Esses festivais, surgidos há pouco mais de uma década, têm dois objetivos comuns: sensibilizar a cidadania a partir das temáticas ambientalistas e criar um espaço privilegiado para que, além da veiculação de uma instigante produção audiovisual de autores sem maiores espaços para projetar seus trabalhos, sejam exibidos produtos de organizações governamentais e da sociedade civil. Capitaneados pelo pioneiro Festival de Washington, encontros influentes como o Festival Internacional de Cinema do Meio Ambiente (Ficma, da Espanha), o Cineambiente (Itália), o Ecofilmes (Grécia) e o Cine Eco (Portugal) já venceram aquela fase inicial de empolgação e estão consolidados como permanentes e combativos fóruns de discussão sobre o meio ambiente.

Cena de Quando a ecologia chegou, de Pedro Novaes, rodado na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, Paraná.

NO BRASIL, NUMA iniciativa do governo de Goiás, surgiu em 1999 o FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental. Sediada na secular Goiás, elevada pela Unesco à condição de Patrimônio da Humanidade, a mostra evoluiu de “uma aventura” (como a definiu seu primeiro coordenador, o cineasta João Batista de Andrade) à condição de sólida referência entre seus congêneres de outros países – em que pesem eventuais intercorrências registradas ao longo de quase uma década e de certa forma previstas num cenário brasileiro em que mudanças políticas provocam incertezas e instabilidades em projetos culturais e artísticos.

ECOLOGICAMENTE correto ao traçar sua linha de atuação nesse cenário de aceleradas transformações (para pior, o registro se impõe) no organismo terrestre, o FICA chegou em 2007 à sua nona edição.

Durante seis dias, de 12 a 17 de junho, 32 produções em celulóide e vídeo, de curta, média e longa metragens, predominantemente nos limites do documentário, desfilaram seus testemunhos sobre as mudanças que vêm desfigurando o planeta e as catástrofes provocadas que estão comprometendo a qualidade de vida das populações. Os filmes estavam ali para lembrar, não sem angústia, que o homem afronta sistematicamente o ciclo natural da Terra. Que, apesar de sábia e equilibrada por si só, não vai conseguir reverter esse processo insano de perdas e danos.

Foram muitos os bons registros no âmbito de uma seleção que contemplou jóias da produção internacional e outras realizadas nos domínios domésticos – a produção goiana em vídeo merece especial atenção. Entre os mais dotados, menção obrigatória para a única ficção em celulóide, o longa belgoalemão Khadak, sobre culturas ancestrais atropeladas pela globalização que não reconhece valores culturais de povos e raças, tutelados por regimes políticos repressores e corruptos.

Entre os documentários que sensibilizaram o público (e o júri) estiveram o grande vencedor da mostra, o português Ainda Há Pastores?, poético lamento sobre o fim da tradição secular do pastoreio de cabras na região de Casais de Folgosinhos, na Serra da Estrela; o média metragem espanhol Radiophobia, que revisita, 20 anos mais tarde, a região onde ocorreu o desastre nuclear de Chernobyl; e o alarmante mas divertido King Corn, realizado nos Estados Unidos, minucioso levantamento sobre as origens da alimentação básica dos norte-americanos – o vilão dessa trama real é o popular milho, todo-poderoso na muito barata, mas letal, cadeia alimentar de quem vive nos EUA.

Nessa edição do FICA, como alternativa extracinematográfica, mas organicamente integrada à temática comprometida com o social e o humano, o clima e seu induzido desgoverno mereceram especial enfoque dos organizadores. Paralelamente à grade de títulos selecionados, foi encomendada ao jornalista Washington Novaes a curadoria do fórum “O Clima, a Amazônia e o Cerrado”, tratado com status de prioridade e desenvolvido em duas bem-sucedidas jornadas matinais por oito especialistas nacionais em alterações climáticas.

As opiniões dos cientistas e pesquisadores palestrantes foram convergentes na constatação de que o caos climático é o inimigo número um, mas deixaram muito claro que não é a temperatura que está liquidando a vida no planeta, e sim o homem, esse diligente sabotador da própria espécie.

(*) Carlos Eduardo Lourenço Jorge é crítico de cinema do jornal Folha de Londrina, do Paraná.