Aspecto da rua principal de Dharamsala, com sua fileira de moinhos de oração. Ao passarem, as pessoas os fazem girar. A cada giro corresponde uma prece.

A principal rua de Dharamsala, na província indiana de Himachal Pradesh, está sendo palco de um evento repentino esta noite. No Ameio do trânsito caótico de veículos e pessoas, um grupo de velhos tibetanos forma um círculo e começa a dançar uma tradicional música de sua terra, o gorshe. Os homens tocam e brandem no ar exóticos instrumentos de cordas. As mulheres, unidas por um abraço comunitário, realizam passos cadenciados, ora contraindo, ora abrindo a roda, enquanto entoam alegremente canções sobre as belezas do Tibete.

Turistas, comerciantes e monges detêm- se para ver o espetáculo. Um miserável mendigo indiano aproveita a comoção para pedir alguns trocados. Desde um bar, a poucos metros de distância, um grupo de jovens, também tibetanos, parece dar mais importância às garrafas de cerveja sobre a mesa do que à música que lhes chega aos ouvidos. Como pano de fundo, paredes pintadas com frases de ordem contra a China e as Olimpíadas de Pequim de 2008.

A cena promove uma síntese do que é Dharamsala hoje. Localizada nas colinas do norte da Índia, à sombra das montanhas nevadas da cadeia do Dhauladhar, a cidade, vista de longe, lembra um paradisíaco Shangri-lá nas encostas do Himalaia. Os templos budistas que compõem a paisagem ajudam a reforçar essa impressão.

Dois monges de um dos mosteiros locais e uma tibetana com penteado típico e adereço de turquesas.

Dharamsala, porém, está longe de ser apenas isso. Escolhido como refúgio oficial dos exilados tibetanos, que tiveram de abandonar a sua terra após a invasão da China em 1950, o local transformou-se não só em abrigo de expatriados ávidos em preservar sua cultura, mas em destino para desiludidos que perderam tudo e tentam reerguer- se em um país estrangeiro. Budismo, política, alcoolismo, tradições, capitalismo, ativismo social. Em Dharamsala, graças à presença dos refugiados, todas essas questões ganham matizes intensos.

São aproximadamente 19 mil pessoas que moram na cidade: 14 mil indianos e cinco mil tibetanos. O mais ilustre deles é Tenzin Gyatso, 72, também conhecido como a 14ª reencarnação do Dalai Lama, líder espiritual supremo do povo do Tibete. Ele chegou a Dharamsala em 1959, após fracassar em retirar os chineses de sua terra e, segundo seu próprio relato, ter sua vida ameaçada pelo governo de Mao Tsétung. Fundou ali a Administração Central do Tibete (ACT), sede de um movimento político no exílio que luta para ver sua pátria livre.

A presença do Dalai Lama em Dharamsala motivou e motiva a vinda de refugiados para a cidade (todos os anos chegam cerca de dois mil, muitos dos quais são posteriormente direcionados a outros distritos indianos). O percurso entre o Tibete e a Índia – cerca de 1.500 quilômetros – é feito a pé. “É um trajeto muito difícil”, diz Lhabu Dharpo, 23, exilado que vive em Dharamsala há quatro anos. “Temos de cruzar as montanhas do Himalaia, passando fome e frio. Duas senhoras que vieram comigo morreram no caminho.”

Os que sobrevivem à viagem são acolhidos pela Secretaria do Bem-Estar Tibetano, órgão da ACT responsável por providenciar cuidados médicos e ajudálos a conseguir trabalho na cidade. Preservar a identidade dessas pessoas é, no entanto, o desafio mais árduo. “Estamos empenhados em defender nossa religião, o ensino da cultura tibetana dado às crianças e a identidade do nosso povo”, relata Thubten Samphel, secretário do Departamento de Informação e Relações Internacionais do governo exilado. “Mas é difícil afastar algumas pessoas das desilusões do exílio.”

A partir da esquerda, em sentido horário: crianças de Dharamsala; monges na entrada do mosteiro; na fachada de um templo, as caveiras significam a transitoriedade de todas as coisas; a bandeira do Tibete; na fachada de um pequeno restaurante, cartazes apelam para um Tibete novamente livre; senhora tibetana prepara um novelo de lã.

NAS ESTREITAS ruas de Dharamsala, destacam-se as instituições erguidas pela ACT para manter viva a cultura de seu país. Ensina-se lhamo (a ópera tibetana) no Instituto Tibetano de Artes. Na Biblioteca de Arquivos Tibetanos podem ser encontrados manuscritos budistas centenários salvos da invasão chinesa. Para as crianças e jovens, inclusive os que perdem seus pais na travessia entre o Tibete e a Índia, foi construída a Vila das Crianças Tibetanas. Sobre a última, Thubten Samphel explica: “Trata-se de um misto de escola e residência onde se ensina a educação formal do Tibete.” São cerca de 1.700 alunos na cidade.

A presença do DALAI LAMA tem motivado a ida de REFUGIADOS para Dharamsala. Cerca de 2 mil pessoas chegam à cidade por ano

A invasão chinesa

Era o ano de 1950 e Mao Tsé-tung acabava de levar o comunismo ao poder na China. Liberar o vizinho Tibete de “práticas atrasadas e bárbaras” estava entre os seus primeiros objetivos de governo. Ele argumentava que o território tibetano, apesar de ter cultura, moeda e idioma próprios, era parte inalienável da “Pátria-Mãe” chinesa. E no mundo ateu dos comunistas de Mao, o país, governado então por uma teocracia budista, precisava passar por reformas.

A invasão do Tibete pela China provocou o êxodo, para países como Índia e Nepal, de milhares de monges e camponeses que julgaram ter seus direitos usurpados pelos novos donos de sua terra. Hoje, são mais de 120 mil tibetanos vivendo no exílio. Os refugiados acusam os chineses de promover violações de direitos humanos e de haver destruído 90% dos monastérios em seu país.

Em 1987, o Dalai Lama apresentou um plano de solução para o impasse no Tibete. Batizada “Proposta do Meio-Termo”, a iniciativa propunha que China e governo exilado cedessem parte de suas exigências históricas para chegar a um acordo. A China recusou a proposta, dizendo que ela interferia na soberania do país. O Dalai Lama segue pregando, em suas viagens pelo mundo, a defesa de soluções pacíficas para a situação do Tibete, o que já lhe rendeu um Prêmio Nobel da Paz, em 1989. Por enquanto, não há nenhum resultado prático em vista.

À frente da residência oficial do Dalai Lama está o Templo Tsuglagkhang, construção que abriga três formidáveis imagens budistas: a de Buda Sakyamuni (como também era conhecido Siddhartha Gautama, o fundador do budismo), a de Avalokitesvara (divindade da compaixão, da qual o Dalai Lama é considerado a reencarnação) e a de Padmasambhava (o sábio indiano que introduziu o budismo no Tibete no século 8).

NO LOCAL, MONGES podem ser vistos criando enormes mandalas de areia, debatendo textos filosóficos do budismo ou recitando suas orações diárias. É lá também que o Dalai Lama promove encontros públicos com os moradores da cidade e turistas. Há espaço até para a presença de um oráculo, entidade divina que, por meio de um médium, ajuda o governo exilado a tomar decisões. Conhecido como Nechung, ele é personagem fundamental na rotina do budismo tibetano.

O governo exilado é baseado em premissas democráticas. A ACT é dividida em Executivo, Legislativo e Judiciário. A população refugiada elege seus representantes. Há também os movimentos políticos panfletários, que, de algum modo, estão ligados à ACT. Em muros, outdoors e sacadas da cidade, vêem-se protestos contra a prisão de monges tibetanos pela China, pedidos de boicote às Olimpíadas de Pequim e imagens de autoritarismo associadas a Mao Tsé-tung.

O acesso dos exilados ao mercado de trabalho também gera inquietações. Cerca de 25% dos tibetanos de Dharamsala em idade economicamente ativa estão desempregados. Os que conseguem algo vão trabalhar em hotéis, restaurantes e na manufatura e comércio de produtos tibetanos. Nessa última área, eles enfrentam a forte concorrência local. Talentosos por natureza para o comércio, os indianos têm luxuosas lojas de produtos tibetanos em Dharamsala. Vendem esculturas budistas em bronze e belíssimas thankgas (intricadas pinturas com motivos budistas) por preços salgados. Os turistas são seu grande público. Aos tibetanos restam tendas mais modestas ou mascatear pelas ruas. A relação entre os dois povos é pacífica, mas distante.

Stupa, monumento sagrado do budismo tibetano, significando a ascensão em etapas da consciência até a chegada ao nirvana, a consciência absoluta.

ENTRE OS QUE NÃO conseguem acesso a bons empregos, muito se entregam ao álcool e à violência. Lhabu Dharpo, o jovem que penou para chegar à Índia, é um exemplo. Sentado no bar, ele parece não se importar com a manifestação cultural que se desenrola sob seus olhos. Enquanto o grupo de senhores tibetanos dança o gorshe no meio da rua, ele prefere conversar com dois amigos – conterrâneos seus – em um inglês americanizado e acabar com mais uma garrafa de cerveja. “Fugi do Tibete, pois não queria alistar- me no exército chinês”, diz ele, que hoje faz bicos em restaurantes. “Pretendo voltar para a minha terra, mas não sei quando.” Dharpo define-se como budista praticante, mas entra em uma feia briga com outro jovem no bar.

Um dos músicos que acabam de fazer o espetáculo na rua é o tibetano Chon Dhen. Professor no Centro Tibetano de Música de Dharamsala, ele acredita que o futuro de seu povo será positivo. “Há um ativismo muito grande para manter nossa cultura viva aqui no exílio. Tenho mais de 200 alunos tibetanos interessados em aprender algum instrumento e vejo que todo eles têm uma grande vontade de retornar ao Tibete. O segredo é nos reafirmarmos a cada dia”, conclui.